Por Matheus Cavichiolo Flores*
Reconhecida
como uma das principais obras contemporâneas do pensamento das Relações
Internacionais, “A Grande Ilusão”, de Norman Angell, é um texto publicado em
1909, abordando duas questões muito atuais para sua época: (a) o diagnóstico e
a análise de um caso concreto de eminência de conflito entre duas influentes
potências (Inglaterra e Alemanha), que acabaria despontando na Primeira Guerra
Mundial, apenas cinco anos mais tarde, em 1914, e (b) a exposição e a revisão
dos axiomas considerados fundamentais na relação entre a guerra e a economia,
que no momento era abordada como uma relação de afirmação mútua.
Ambas
as questões são quase sempre abordadas pelo autor em relação uma à outra,
colocando as tensões entre Inglaterra e Alemanha e suas possíveis consequências
para ambos os países sempre como um caso concreto da abordagem relativa entre a
guerra e a economia.
De
acordo com Angell (1909),
Admite-se, de modo geral, que
a rivalidade europeia em matéria de armamentos - e particularmente a que reina
hoje entre a Inglaterra e a Alemanha - não pode prolongar-se indefinidamente na
sua forma atual (ANGELL, 1909, p. 3).
Evidencia-se,
desse modo, a impossibilidade de haver um ponto de equilíbrio estático e que as
tensões automaticamente teriam de participar de uma dinâmica de progressão ou
de retroação do conflito, visto que o constante aumento no poder militar de
cada um dos polos inferia um dilema de segurança entre ambos os Estados.
Entretanto, Angell (1909) passa longe
de ter uma perspectiva ofensiva sobre o caso, sendo um dos mais técnicos
idealistas de sua geração, o que passa a ser evidenciado a partir do capítulo 2
de sua obra, logo após terminar as exposições gerais sobre o corpo já
desenvolvido da questão. De forma muito interessante, passa a trazer à luz uma
concepção desconhecida e muito pouco intuitiva sobre a relação guerra-economia,
demonstrando no capítulo 3 a divergência entre o crescimento econômico e o
poder militar, que faz o leitor concluir que não há, de fato, nenhuma relação
positiva entre ambos, podendo haver, inclusive, uma relação indiferente e, até
mesmo, prejudicial, na grande maioria das situações.
Em contrapartida, também mantém-se cético em relação ao pensamento
de seus colegas contemporâneos da escola idealista no que diz respeito a uma
abordagem pacifista do eminente conflito, levando em conta que seu objeto de
análise era uma abordagem da relação entre a economia e a guerra, afirmando que
O defensor da paz invoca o
"altruísmo" das relações internacionais e, ao fazê-lo, admite de fato
que o êxito na guerra favorece os interesses do vencedor, mesmo quando imorais (ANGELL,
1909, p. 6-7).
Essa posição crítica dá-se, pois, para Angell (1909), como é exposto
posteriormente, no capítulo 3, não há nenhuma vantagem no conflito bélico, seja
de que forma for, estando os axiomas vigentes quase que hegemonicamente em sua
época da relação que lhe é objeto completamente fundados no que ele vem a
denunciar como “o caráter de uma ilusão de ótica” (ANGELL, 1909, p. 22). Não
havendo fundamento prático e verdadeiro para o benefício econômico vindo da
guerra, logo não haveria como concordar com os pacifistas que compartilhavam
com ele o espaço no campo teórico da escola de pensamento.
Desse modo, Angell (1909) passa a maior parte do capítulo 1
expondo a composição dividida do corpo doutrinário da questão, majoritariamente
composto pelo pensamento ofensivo e minoritariamente pelo pensamento pacifista,
sendo esse segundo grupo descrito, com muita propriedade, pelo autor, como “uma
minoria de pessoas, consideradas nos dois países como sonhadoras e
doutrinárias” (ANGELL, 1909, p. 3).
Mencionando, desse modo, pensadores participantes do mesmo
contexto, como o historiador inglês Frederick Harrison, que o autor anunciou
como sendo “conhecido como o filósofo protagonista do pacifismo” (ANGELL, 1909,
p. 5), e o “liberal” Barão Karl von Stegel (ANGELL, 1909, p. 14), Angell (1909)
traz extensos exemplos de como a formatação do pensamento da época estava
completamente voltado à crença de que a guerra, em si mesma, era um fator
inalterável da natureza humana e da importância do armamento ofensivo para o
bom desenvolvimento da economia em uma nação próspera e estável,
independentemente da perspectiva particular de cada pensador sobre se isso era
o correto ou não, tendo alguns pacifistas, inclusive, afirmado que “as leis
naturais contradizem, neste ponto, a lei moral” (ANGELL, 1909, p. 6).
Posteriormente,
no terceiro capítulo, o autor constrói uma abordagem revisionista dos axiomas
considerados quase que hegemônicos sobre o tema, deixando evidente sua
perspectiva de que a guerra é essencialmente um atraso para o desenvolvimento na
dimensão econômica, independentemente da situação. Dessa forma, são
explicitados sete novos axiomas para a análise dessa relação, fundamentados
numa comutatividade negativa entre os dois agentes, buscando demonstrar que, em
quaisquer sejam casos, a economia de ambos os Estados é afetada prejudicialmente
pelo conflito bélico (ANGELL, 1909, p. 22-25).
Entretanto,
o que acaba por ficar evidente na obra é que seu autor não passa de um produto
de um espírito cultural antecipado em sua época. Sua cosmovisão, profundamente
enraizada na análise dos níveis de prosperidade econômica, acaba por descartar
a importância da guerra como motor dialético da História, o grau máximo dos
conflitos culturais e estruturais do Sistema Internacional, que precisam
constantemente evoluir em seu fluxo de criação, destruição e reestruturação.
De
acordo com a perspectiva que pode ser pinçada desde as páginas dos escritos de
Thomas Carlyle (1841) sobre as relações entre os heróis e o próprio progresso
histórico, valendo ressaltar a obra “On Heroes, Hero Worship and the Heroic in
History” (CARLYLE, 1841) pode-se afirmar que a História pode ser descrita com
base na análise dos papéis dos heróis em suas próprias histórias particulares
em relação ao todo do contexto ordenado do momento histórico, como se o próprio
motor da História fosse o heroísmo de alguns poucos espíritos elevados.
Ademais,
afirma Hegel (1820) que
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- A verdade e o destino das ideias concretas dos espíritos dos povos residem na
ideia concreta que é a universalidade absoluta. Esse é o Espírito do mundo. Em
volta do seu trono, os povos são os agentes da sua realização, testemunhas e
ornamentos do seu esplendor. Como espírito, é ele o movimento da atividade em
que a si mesmo se conhece absolutamente, se liberta da forma da natureza
imediata, se reintegra em si mesmo, e, deste modo, os princípios das
encarnações desta consciência de si no decurso da sua libertação, que são
impérios históricos, são quatro. (HEGEL, 1820, p. 312)
Essa
concepção de que o Mundo é uma imensa composição animada pelo fluxo constante
de um espírito próprio, expresso como uma consciência dinâmica, corrobora
diretamente com a visão carlyleana de que o corpo e a estrutura da História
podem ser explicados pela vida dos próprios heróis que integram esse processo
dialético. Pode-se ver esse pensamento expresso no momento em que Hegel
encarnou em Napoleão o chamado “Espírito do Mundo”: “Eu
vi o Imperador, essa alma (espírito) do mundo, atravessar a cavalo as ruas da
cidade (...) Sentado sobre um cavalo,
estende-se sobre o mundo e o domina” (apud NÓBREGA, 2005, p.8).
Naturalmente, de modo denominável
“progressista” e “avançado” para alguns, essa perspectiva seria essencialmente
“reacionária” ou “retrógrada”, mas os fatos existem objetivamente a certo grau,
e as características ontológicas que compõem a realidade humana, tanto como sua
natureza quanto como sua própria existência, são objetivas. Seguindo nessa
linha, torna-se evidente que a importância do heroísmo é fundamental para
exaltação e completude do Homem enquanto ente ontologicamente reafirmado e para
toda a construção histórica, visto que todo o processo civilizacional é
resultado dessa reafirmação para a constituição de um imaginário cultural e
coletivo.
Tanto o heroísmo carlyleano quanto o
heroísmo napoleônico de Hegel só podem ser alcançados por meio do conflito,
cuja expressão máxima é, de fato, a guerra. Desse modo, torna-se claro que parte
da existência humana, em uma de suas formas mais elevadas, necessita da guerra.
De forma clara Angell (1909), cujos
sete axiomas explicitaram magistralmente as profundas divergências entre
prosperidade econômica e a progressão de conflitos bélicos, acaba por focar-se
estritamente no plano individual dos Homens, tentando minimizar a existência da
dor e maximizando o avanço da prosperidade. Entretanto, essa tendência de
unidimensionalização normativa da História acaba por não compreender de forma
convergente o processo de construção civilizacional em seu âmago, gerando,
desse modo, uma abordagem materialista e desconexa da própria realidade dinâmica
e transcendental.
Em conclusão, sua obra torna-se
incompleta no que diz respeito a um diagnóstico completo da circunstância por
(a) não compreender de forma profunda a importância da guerra para própria
dinâmica do progresso histórico, (b) não compreender a função do conflito
enquanto forma de reafirmação ontológica do Homem na História e (c) não
compreender que o caso concreto, em si mesmo, não era resumível apenas a uma
análise de dimensão econômica ou estrutural, no que diz respeito às motivações
da guerra, mas também participante do determinismo próprio da História enquanto
espírito do mundo. Sem contribuir para esses três setores da análise,
essenciais para a compreensão profunda do tema, sua análise torna-se estéril ou,
no mínimo, incompleta para a visão do panorama verdadeiro que compõem a
estrutura das próprias relações internacionais.
Fontes:
ANGELL, N. A Grande Ilusão, 1909.
HEGEL, G.W.F. Princípios da Filosofia do Direito, 1820.
CARLYLE, T. On Heroes, Hero Worship and the Heroic in
History, 1841.
*Matheus
Cavichiolo Flores é acadêmico do terceiro período de Relações Internacionais. A leitura do livro "A Grande Ilusão" foi uma sugestão da Professora Jannifer Zarpelon, que ministra a disciplina de Teoria das Relações Internacionais no UNICURITIBA.
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