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quarta-feira, 27 de maio de 2020

"É para o meu TCC!": O Brasil na rota do refúgio LGBTQ



Por José Vinícius Vidolin*

    A legislação e o respeito dos direitos humanos em relação a população LGBTQ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Queers – termo originário da palavra inglesa queer, que engloba outras identidades de gêneros e orientações sexuais –) apresenta uma grande complexidade e enormes variações ao redor do mundo. Desde a década de 1970 vem acontecendo nos Estados Ocidentais uma maior flexibilização da legislação a respeito dos direitos da população LGBTQ, a discriminação de várias práticas homo afetivas e uma maior garantia de direitos até então concedidos apenas a relações heteronormativas, como o direito a união estável e casamento, assim como o direito a adoção. 
   Infelizmente essa realidade ainda é bem diferente em diversos Estados mais conservadores, como a maioria dos Estados africanos e asiáticos. Atualmente ser LGBTQ é crime em 77 países, sendo passível de punição a morte em 6 territórios diferentes. 
       Mesmo quando não há uma legislação que de fato condene o grupo LGBTQ a prisão ou a morte, em muitos destes países há uma imensa perseguição institucionalizada, impedindo o acesso à educação, promovendo políticas institucionalizadas de segregação social, políticas de restrição ao mercado de trabalho e etc. O que caracteriza uma grave e generalizada afronta aos princípios mais básicos dos direitos humanos.
       Por esse motivo, muitos membros da comunidade LGBTQ são forçados a abandonar os seus países de origem pois são vítimas dessas perseguições, temendo pela sua própria vida. O que os caracteriza como refugiados, segundo a Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951. 
     Segundo o artigo 1º da Convenção, emendado pelo Protocolo de 1967 define como refugiado “toda a pessoa que, em razão de fundados temores de perseguição devido a sua raça, religião, nacionalidade, associação a determinado grupo social ou opinião política, encontra-se fora de seu país de origem e que, por causa dos ditos temores, não pode ou não quer fazer uso da proteção desse país ou, não tendo uma nacionalidade e estando fora do país em que residia como resultado daqueles eventos, não poderá, em razão daqueles temores, não quer regressar ao mesmo”.
    No Brasil, a mudança do tratamento de direitos em relação a população LGBTQ começou a surgir a partir da redemocratização do país, em 1985. A atual Constituição brasileira diz que um dos objetivos principais da República brasileira “é promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Todavia não garantia explicitamente alguns direitos básicos a população LGBTQ, como direito a união civil, casamento e adoção. 
   Ao longo dos anos a normativa brasileira passou por inúmeras mutações e interpretações que refletiam a sociedade como um todo, e então, somente em 2011, o STF equiparou as relações homoafetivas à de união estável, garantindo assim uma maior proteção jurídica em todo o território nacional. Em 2013 o Conselho Nacional de Justiça emite a resolução 175 que proíbe todos os cartórios em território nacional de recusarem a habilitação de casamentos homoafetivos, garantindo assim o direito ao casamento civil a população LGBTQ. 
      Mais recentemente o Supremo Tribunal Federal determinou que o crime de racismo seja equiparado aos casos de agressão contra a população LGBTQ, até que uma norma especifica seja elaborada pelo Congresso Nacional.
      Isso fez com que o Brasil entrasse na rota internacional de quem procura refúgio em relação a sua orientação sexual e diversidade de gênero. Segundo dados do Ministério da Justiça, o primeiro caso de acolhida a um refugiado LGBTQ no país ocorreu em 2002. De lá pra cá, com o aumento na garantia dos direitos básicos a população LGBTQ no nosso país, esse número só aumentou. 
      De acordo com uma pesquisa realizada pelo Ministério da Justiça em conjunto com o ACNUR (Alto Comissariado das Nações zunidas para os Refugiados) em 2018, pelo menos 369 solicitações de reconhecimento da condição de refugiado com base em orientação sexual e identidade de gênero foram acolhidas pelas autoridades brasileiras, entre 2010 e 2016, fazendo com que o Brasil fosse o 4º país no mundo a tornar estes dados públicos. 
     Porém esse número poderia ser muito maior, pois no Brasil o levantamento desses dados apenas começou a ser realizado e divulgado a partir de 2010 e também em muitos dos casos os solicitantes LGBTQ temem pelo estigma, atrelado a homofobia e vergonha institucionalizadas existentes no seu país de origem, e por isso quando possuem mais de um motivo para pedir refúgio, acabam opinando por omitir a sua orientação sexual. 
     Na maioria dos casos, os solicitantes do refúgio são provenientes de países africanos, como Nigéria, Serra Leoa, Camarões e Gana. Sabem pouco ou nada da normativa brasileira referente aos direitos da população LGBTQ e pretendiam ou tentaram solicitar refúgio na Europa Ocidental, Estados Unidos e Canadá, mas devido a medidas de contenção do fluxo migratório (principalmente de refugiados) nestes Estados, acabaram por solicitar o refúgio aqui no Brasil. 
      No entanto o contexto brasileiro apresenta uma dúbia realidade, se na normativa vigente garante uma série de direitos a população LGBTQ, a realidade é totalmente diferente. Temos altos índices de violência de gênero e contra a população LGBTQ, segundo um relatório “Assassinatos LGBTQ no Brasil” divulgado pelo Grupo Gay da Bahia em 2016, 343 pessoas foram vítimas de assassinato ligado a LGBTQfobia naquele ano, representando 1 morte a cada 25 horas no país. 
   Apesar dessa violenta realidade, muitos refugiados se sentem mais confortáveis e seguros no Brasil, pois embora ainda vivemos em uma sociedade LGBTQfóbica, o Brasil não criminaliza os corpos LGBTQ e garante, pelo menos no âmbito jurídico, uma série de direitos, ao contrário do que ocorre em seus países de origem. 
    No entanto essa realidade de proteção institucional vem sofrendo mudanças. No passado o país era um dos grandes promotores dos direitos LGBTQ em nível internacional, conseguindo avanços sobre a temática no sistema ONU, como a resolução do Conselho de Direitos Humanos da ONU sobre os direitos da população LGBTQ. 
    Após a última eleição presidencial, um revisionismo da política interna e externa brasileira vem sendo institucionalizado, e o posicionamento em relação às mulheres, gênero e a comunidade LGBTQ como um todo mudou. No último ano por exemplo, diplomatas receberam instruções oficiais diretas do Ministério das Relações Exteriores para reiterar o novo posicionamento do governo de que “a palavra gênero é referente ao sexo biológico: feminino ou masculino” e que o próprio termo deveria ser vetado em resoluções da ONU, assim como em qualquer negociação internacional. 
    Atrelado a isso há o próprio posicionamento pessoal do atual presidente, que em inúmeras vezes proferiu falas abertamente LGBTQfóbicas, como em uma de suas falas em que após o PSOL entrar com uma representação no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados contra o atual presidente, Jair Bolsonaro disse: “ninguém gosta de homossexual, a gente suporta”. Em outro momento em entrevista à revista Playboy disse: “prefiro filho morto em um acidente a um homossexual”. 
    Ao longo da história brasileira analisamos que a maioria das conquistas de direitos humanos em prol da população LGBTQ partiram do Poder Judiciário, sendo que a pauta sempre teve pouca expressão e representatividade dentro do Poder Legislativo e principalmente do Poder Executivo. Porém nas últimas décadas o pensamento de grande parte da população vem mudando, tendo rumos mais progressistas e abraçando a causa dos direitos humanos. Não podemos negligenciar ou negar os direitos mais básicos a qualquer grupo minoritário que seja. 

*Acadêmico do 7º período do Curso de Relações Internacionais do UniCuritiba.
Texto preparado sob a orientação acadêmica do Prof. MSc. Michele Hastreiter

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
DELFIN, Rodrigo Borges. Gênero, Sexualidade e Migrações: a realidade dos refugiados LGBTTI.MigraMundo. São Paulo, 05 fevereiro 2015. Disponível em: https://migramundo.com/genero-sexualidade-e-migracoes-a-realidade-dos-refugiados-lgbtti/. Acesso em 17 de mar. 2020. 
UN High Commissioner For Refugees (UNHCR). Summary Conclusions: Asylum-Seekers and Refugees Seeking Protection on Account of their Sexual Orientation and Gender Identity, 2010b [s.l:s.n.]Disponível em http://www.refworld.org/docid/4cff99a42.html. Acesso em 15 de nov. 2019. 
ANDRADE, Vitor Lopes. Refúgio por motivos de orientação sexual: um estudo antropológico na cidade de São Paulo.Florianópolis: Editora da UFSC, 2019. 
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domingo, 3 de maio de 2020

Direito Migratório: como ficam os imigrantes venezuelanos em meio à pandemia?



Imagem de André Coelho



Pedro Henrique de Oliveira da Costa e Maria Emília Vaz Cavet**


A situação recente da Venezuelana tem sido complicada e mundialmente conhecida. Desde 2013, quando o atual presidente Nicolás Maduro tomou posse, o país tem enfrentado uma crescente crise econômica, que acarretou decadência dos serviços básicos, aumento dos casos de violência e grande movimentação popular nas ruas, em protesto contra a situação política e social.

Com a crise econômica se transformando também em uma alarmante crise humanitária, muitos venezuelanos optaram por deixar o país, migrando em busca de ofertas de emprego e principalmente melhores condições de vida para suas famílias. Contudo, agora os imigrantes se deparam com um novo contexto mundial: a pandemia do Coronavírus.



O COVID-19 (novo coronavírus), que teve seus primeiros registros no final de 2019 na China, ganhou status de pandemia mundial nos primeiros meses de 2020. A doença é de fácil transmissão, com apresentação de sintomas graves, que podem inclusive levar à morte e que apresenta riscos ainda maiores para as populações idosas, portadores de doenças crônicas e de deficiência no sistema imunológico.

Com esse panorama, chefes de Estado de todo o mundo mobilizaram-se para agir contra o avanço desta crise sanitária, fechando fronteiras, pedindo isolamento da população, fechamento de estabelecimentos e proibindo temporariamente voos internacionais. Os índices de infectados pela doença são assustadores na Europa, Ásia e na América do Norte.

Em meio à crise econômica, humanitária e agora sanitária, o Brasil continua sendo um dos principais destinos dos venezuelanos. O território brasileiro recebeu, segundo dados da Folha (10/2019), quase 455 mil imigrantes venezuelanos entre 2017 e 2019. Entretanto, diante da pandemia, a situação é mais delicada. O governo brasileiro publicou no dia 18 de março, através do Diário Oficial da União, a decisão de fechar parcialmente as fronteiras do Brasil com Venezuela e Guiana.

Encontramos então algumas questões: A Venezuela está preparada para lidar com uma pandemia? Como ficam os venezuelanos que já estão em território brasileiro?

 De certa forma, a crise econômica vivida na Venezuela pode afetar as recomendações das autoridades de saúde. Segundo dados da BBC, existem muitas comunidades sem acesso à água corrente, o que dificulta a lavagem frequente das mãos. Além disso, muitos venezuelanos não podem comprar sabão.

Entretanto, a Venezuela também mostra dados positivos em meio a pandemia: devido ao bom relacionamento com a China, os venezuelanos recebem carregamentos com itens hospitalares, como equipamentos e remédios, que são ainda distribuídos para países vizinhos. Também é a Venezuela a líder latina em números de exames, conforme dados do RBA, até 11/04 foram feitos mais de 180 mil testes rápidos. O presidente russo, Vladimir Putin, também garantiu o envio de suplementos à Venezuela.

Segundo notícias recentes do portal de notícias do Uol, Juan Guaidó, presidente autoproclamado, propôs um “governo de emergência” para conter Covid-19 no país. O plano seria unir todos os setores políticos do país para estudar as necessidades e agir em prol da população.

Porém, apesar do reconhecimento de governo por mais 50 países, ainda é Maduro quem está efetivamente no controle do país. Este, que já ordenou quarentena no Estado, suspendendo atividades escolares e de trabalho não essenciais, defendeu que 100% dos casos confirmados de COVID-19 devem ser internados. Ele segue dizendo que contam com mais de 20 mil leitos para o isolamento, mas segundo especialistas independentes há apenas 206 leitos para cuidados intensivos em toda a Venezuela.

Já do lado de cá da fronteira, a Operação Acolhida (apoiada pela Agência da ONU para Refugiados) continua no trabalho de apoio a refugiados e migrantes. A resposta para a pandemia foi a construção de um Hospital Temporário (Área de Proteção e Cuidados) em Boa Vista, com capacidade de 1.200 leitos hospitalares para o tratamento de infectados e mais 1.000 vagas para observação de casos suspeitos. Esta obra está trazendo oportunidades para trabalhadores venezuelanos que aguardavam encaminhamento.

 O ACNUR, agência da ONU para refugiados, também presta papel importante em meio a pandemia, a instituição vem pedindo aos governos atenção para com as fronteiras, para que as mesmas recebam restrições, mas que também seja mantido o respeito para com os padrões internacionais de direitos humanos e proteção de refugiados. A limitação da circulação, a quarentena, e a promoção de exames de saúdes são medidas necessárias na recepção dos refugiados.

 Diante de tempos difíceis como o que estamos vivendo, é importante que sejamos cuidadosos: lavar as mãos com frequência, utilizar álcool gel, evitar aglomerações e respeitar o distanciamento social. Mas é importante também que lembremos daqueles que não podem seguir essas recomendações, por não terem uma casa para se isolarem, por não terem acesso à higiene básica ou por não estarem em seus países e culturas de origem. Também é pela empatia para com estas pessoas em situação frágil, que devemos ter cuidado para não sermos um transmissor do vírus. Juntos, podemos vencer o coronavírus.

O ACNUR está recolhendo doações para enviar insumos de grande importância como remédios, artigos de higiene, água potável e kits de proteção pessoal para famílias de refugiados em situação de vulnerabilidade.

Doe através do link:






Fontes:




ACNUR  





REDE BRASIL ATUAL - https://www.redebrasilatual.com.br/mundo/2020/04/venezuela-cuba-coronavirus/

** Pedro e Maria Emília são alunos do terceiro período de Relações Internacionais e escreveram este texto a convite da Professora Michele Hastreiter, com quem cursam a disciplina de Direito Internacional Público, na qual manifestaram interesse sobre o tema ora analisado. 
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quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Mulheres de Destaque: A história de Maha Mamo e a luta de 12 milhões de pessoas pelo direito de pertencer.


Por Sofia Chanoski**

Maha Mamo é uma das mulheres fortes que estão no mundo lutando, resistindo e fazendo a diferença. Hoje ela é brasileira, mas por 30 anos viveu como apátrida. Isso significa que por 30 anos, Maha Mamo viveu sem nacionalidade, sem documentos, sem nenhum registro da sua existência e sem nenhuma via de garantia de direitos.
O artigo 15 da Declaração Universal dos Direitos Humanos é claro: todo ser humano tem direito a uma nacionalidade. Sabe-se que entre os países do mundo existem dois critérios para alguém ser considerado nacional: jus soli, aquele que é nascido no território em questão (esse critério foi o escolhido pelo Brasil e pelos EUA, por exemplo), e jus sanguini, aquele que tem ascendentes nacionais (é o caso da Itália). A nacionalidade pode ser algo banal para quem a tem por direito desde o nascimento, mas sua importância merece ser ressaltada afinal ela é o vínculo jurídico criado entre o Estado e o indivíduo. A partir desse conceito que o Estado passa a se responsabilizar pelo indivíduo e a dever facilitar o acesso deste a direitos. Além do mais, é através do reconhecimento da nacionalidade que é possível a emissão de documentos, e, com esses, a contratação de um serviço telefônico, abrir uma conta no banco, ir à escola, entre muitas outras coisas citadas por Maha Mamo, em sua fala em um TEDx Talk (evento independente no mesmo formato do TED Talks), onde, mais uma vez, contou sua história e chamou a atenção do mundo para a causa dos apátridas.
 Ela conta que no Líbano, país onde nasceu, o critério para ser nacional é ter o pai libanês. Seu pai é sírio, e na Síria o critério é ter nascido no país. Assim, ela não tinha direito a nenhuma nacionalidade e, por causa disso, não podia realizar seu sonho de cursar Medicina, não podia se tratar da urticária em um hospital, ir à balada com os amigos ou contratar um seguro de saúde, pois absolutamente tudo exigia documentos de identificação. “Ousarei sonhar?”, Maha Mamo disse no TEDx Talk, relembrando do tempo em que ela e os irmãos pensavam ser os únicos nesta difícil situação.
Ela enviou sua história para todas as embaixadas no Líbano e depois de muitas respostas negativas, apenas uma positiva: o Brasil. Maha Mamo veio com os irmãos para o país em 2014 com um visto humanitário concedido para refugiados sírios e em 2016, com 28 anos, conseguiu seu primeiro documento de identificação. Um mês depois disso, seu irmão, Edi, foi assassinado em uma tentativa de assalto. Ele morreu como apátrida, um mês depois de ter sua existência reconhecida pela primeira vez. Depois disso, Maha Mamo passou a se envolver cada vez mais com a sua causa, a causa dos apátridas, através da campanha “I Belong” (“Eu Pertenço”) da ACNUR (Agência da ONU para Refugiados). Essa campanha tem por objetivo mobilizar os países na erradicação dos casos de apatridia até 2024.
Em 2017 a nova Lei de Migração (n° 13. 445/17) foi aprovada. Com ela os apátridas (incluindo Maha Mamo e sua irmã) passam a ser reconhecidos no Brasil através de um instituto protetivo especial e processo simplificado de naturalização. Em 28 de junho de 2018, Maha Mamo e sua irmã foram reconhecidas como apátridas, e em 4 de outubro do mesmo ano elas foram reconhecidas como brasileiras. Hoje, a ACNUR estima que existam mais de 12 milhões de apátridas no mundo. A luta de Maha Mamo e dessas 12 milhões de pessoas deve ser a de todos nós, a nacionalidade e o pertencimento são direitos humanos que precisam ser defendidos e reivindicados.
**Sofia Chanoski é aluna de Direito no Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA. Ela faz parte do Grupo de Estudos "Direito Migratório: em Curitiba, no Brasil e no Mundo", ligado ao Curso de Relações Internacionais e coordenado pela Professora Michele Hastreiter. 

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segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Opinião: Portaria 666 e o Direito Migratório





Por Rafaella Pacheco*.



“o homem, esse fenômeno dialético, é obrigado a estar sempre em movimento. [...] Como são vergonhosos, então, todos os padrões fixos. Quem jamais poderá fixar um padrão? O homem é uma “escolha”, uma luta, um constante vir a ser. Ele é uma migração infinita, uma migração dentro de si próprio [...] ele é um migrante dentro de sua própria alma.” (Ali Shariati)



            A crise migratória tem sido debate recorrente em termos globais. As dificuldades enfrentadas por migrantes, refugiados e apátridas — que se encontram na difícil situação de terem que abandonar seus lares em busca de uma vida digna em outros países —, movimentaram a criação de dispositivos legais internacionais preocupados em assegurar uma acolhida humanitária a estas pessoas. Mas, os países signatários de tais tratados e convenções internacionais de Direitos Humanos possuem autonomia, em seus territórios, para definirem as medidas jurídicas, políticas e sociais a serem tomadas em relação ao tema, comprometendo-se em estarem alinhados com o acordo firmado. O Estado brasileiro, em 2017, publicou a Nova Lei de Migração que, rompendo com posturas autoritárias do antigo Estatuto do Estrangeiro, estabeleceu um íntimo diálogo com princípios constitucionais, além de, trazer consigo um forte viés humanitário e de direitos humanos. 


Um pouco mais de dois anos após a publicação da Nova Lei de Migração[1] o Ministério da Justiça estabeleceu, em 25 de julho deste ano, a Portaria nº 666[2]. Esta, conforme descrito em Diário Oficial, “dispõe sobre o impedimento de ingresso, a repatriação e a deportação sumária de pessoa perigosa ou que tenha praticado ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal.”[3] Desde então, houveram muitas manifestações contrárias à referida portaria, sendo as mais recentes a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 619, proposta pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge; e a denúncia realizada pelas ONGs Conectas Direitos Humanos e Missão Paz, na 19º reunião do Conselho dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, realizada na última quarta-feira, dia 18. 


Para compreendermos o regresso jurídico, político e social que a presente Portaria nº 666 representa, iniciaremos por uma breve contextualização sobre a receptividade brasileira aos imigrantes. Tal matéria migratória sempre foi orientada por interesses políticos e econômicos específicos que, apoiados por instrumentos legais, estruturaram a identidade nacional brasileira e promoveram a manutenção de um cenário migratório marcado por violações e preconceitos.



1.         Um país não tão acolhedor assim

A concepção de que nós brasileiros somos um povo acolhedor, receptivo e hospitaleiro contém em si grandes equívocos. Parte desta premissa advém do fato de possuirmos uma grande diversidade cultural e étnica que, um olhar leviano à história de nosso país, se iludiria com a ideia de um povo aberto e convidativo à presença de imigrantes. Mas será que isso é verdade? Somos cordiais, afetuosos, solícitos e receptivos com todos? Sem distinções?

O estímulo à emigração europeia é o exemplo mais contundente em nossa história política migratória. Em 1808, o Decreto de 25 de novembro, concedia as sesmarias aos estrangeiros residentes no Brasil com objetivo de aumentar a lavoura e a população. Na década de 1850, a repressão do tráfico de escravos com a promulgação da Lei n.º 581 de setembro de 1850 e, posteriormente, a abolição da escravatura pela Lei Áurea, em maio de 1888, determinou significativamente as ações em relação à imigração no Brasil.[4]

Juntamente ao descaso e a criminalização de escravos recém libertos, o governo julgou mais rentável a importação de mão de obra estrangeira para as lavouras de café ao inserir os recém libertos ao mercado de trabalho. Para organizar e estimular tal mão de obra europeia, como um braço da Secretaria da Agricultura, foi criado o Departamento de Imigração e Colonização de São Paulo. O recorte na mão de obra bem quista às lavouras continha em si a finalidade do branqueamento da raça, pois acreditava-se na existência de uma hierarquização entre as raças, considerando pessoas brancas de ascendência europeia como sendo superior às demais.

Dadas as condições análogas ao trabalho escravo das lavouras, a precariedade de condições culminou no êxodo destes trabalhadores rurais aos centros urbanos. Estes, não possuíam direitos civis ou políticos até 1891, com a Constituição Republicana. Porém, tal conquista cívica advinda de reivindicações dos imigrantes, fomentou a representação simbólica subversiva, instigadora de desordem e militância do estrangeiro anarquista e comunista no século XX. Para a Primeira República, o estrangeiro estava associado ao perigo à ordem nacional, ou seja, era indesejado em nosso território. No Estado Novo, os efeitos da Primeira Guerra Mundial foram sentidos na crise do café brasileiro, o que influenciou um projeto nacionalista de proteção e nacionalização do trabalho, restringindo o ingresso de trabalhadores estrangeiros.

Acreditou-se que o progresso do Brasil dependia da homogeneização da população e, sob tal justificativa, violações culturais, educacionais e religiosas foram tomadas em nome da construção de uma identidade nacional brasileira.[5] O Decreto-Lei nº 383/1938[6], determinava o envio de tropas do Exército em áreas de concentração de imigrantes com a finalidade de nacionalizá-los. O Estado brasileiro manteve na Constituição de 1937 o sistema de cotas para a entrada de imigrantes ao Brasil, que já vinha estipulado na Constituição de 1934. Concomitantemente, emitiu circulares pelo Ministério das Relações Exteriores restringindo a entrada de imigrantes judeus e negando o visto temporário de imigrantes semitas.[7]

No ano seguinte, o Decreto-Lei nº 406[8] estabeleceu requisitos à entrada de estrangeiros em nosso território que reforçou a política eugenista de nosso Estado. Este, negava a entrada de pessoas com deficiência e com doenças contagiosas; indigentes, vagabundos, ciganos e congêneres; que não possuíam posses suficientes para o seu sustento e de seus dependentes; que tivessem costumes manifestamente imorais ou de conduta manifestamente nociva à ordem pública, e segurança nacional ou à estrutura das instituições; entre outras. Cabe destacar ainda o teor racista e xenófobo do referido decreto que, em seu artigo 2º, reserva ao Governo Federal a limitação ou suspensão da entrada de indivíduos de raças ou origens específicas, por motivos de ordem econômica e social.

            Meses após o término da Segunda Guerra Mundial, no governo Vargas foi publicado o Decreto-Lei nº 7.967[9], de setembro de 1945. Este, regulava sobre a imigração e colonização. E, logo em seu capítulo primeiro, destinado a admissão dos imigrantes é categórico:



Art. 1º Todo estrangeiro poderá, entrar no Brasil desde que satisfaça as condições estabelecidas por esta lei.

Art. 2º Atender-se-á, na admissão dos imigrantes, à necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência européia, assim como a defesa do trabalhador nacional. (grifo nosso)

           

No final da década de 1950 ao início da década seguinte, a preferência como destino migratório direcionou-se à países de maior potência econômica, como os Estados Unidos, o que justificou a redução no fluxo migratório aos países latino-americanos de forma geral. Neste período, novas políticas de atração de imigrantes foram tomadas, objetivando o desenvolvimento econômico em setores específicos. Mas, no período ditatorial brasileiro, de 1964 a 1985, a matéria “imigração” estava associada a ponderações acerca da segurança nacional, vedando a entrada de asilados, refugiados e pessoas em busca de enriquecimento e melhores condições de vida no país.[10]

Trazendo consigo reflexos de uma herança autoritária, o Estatuto do Estrangeiro, de 1980, manteve a intenção produtiva quanto a migração, sob a égide da segurança nacional em detrimento de premissas dos Direitos Humanos. Tal postura fica clara ao olharmos para o artigo 65, que determinava como passível de expulsão todo estrangeiro que atentasse de alguma forma contra “a segurança nacional, a ordem política ou social, a tranqüilidade ou moralidade pública e a economia popular, ou cujo procedimento o torne nocivo à conveniência e aos interesses nacionais.”[11].

O Estatuto do Estrangeiro foi revogado pela Nova Lei de Migração, publicada em maio de 2017. Mas, antes de ponderarmos sobre a presente lei de migração, faz-se necessário reflexionarmos sobre as informações até o momento apresentadas a respeito de nossa história jurídico-política migratória. O que podemos perceber, é que nossa identidade nacional foi forjada por interesses políticos e econômicos específicos. Tais interesses, geridos por uma restrita elite no poder, determinavam, através de preceitos discriminatórios, os aptos e os não aptos a entrar ou mesmo permanecer em nossa terra. As portas de entrada de nosso país foram mediadas por políticas e regulamentações segregadoras, preconceituosas, racistas e xenófobas.



2.         A Nova Lei de Migração

Como já mencionado, a Nova Lei de Migração, que dispõe acerca dos direitos e deveres do migrante, aproximou-se de princípios constitucionais e de tratados internacionais de Direitos Humanos. Seu teor tem como princípio estruturante a dignidade da pessoa migrante que, conforme a literatura sobre o tema, compreende as vertentes dos direitos humanos, do direito humanitário e do direito do refugiado.

Dentre os princípios e diretrizes dispostos na Reforma Migratória, gostaríamos de ressaltar o “repúdio e prevenção à xenofobia, ao racismo e a quaisquer formas de discriminação; a não criminalização da migração; a acolhida humanitária; a igualdade de tratamento e de oportunidade ao migrante e a seus familiares; e o repúdio a práticas de expulsão ou de deportação coletivas’. Garante-se, ainda, ao “migrante no território nacional, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, assim como o direito de sair, de permanecer e de reingressar em território nacional”. Quanto aos impedimentos de ingresso em nosso território, a Nova Lei determinou que, estes se dão após entrevista individual e mediante ato fundamentado, reforçando, ainda, que “ninguém será impedido de ingressar no País por motivo de raça, religião, nacionalidade, pertinência a grupo social ou opinião política”.

Quanto a deportação, a Lei 13.445/17 a definiu como uma medida administrativa de retirada compulsória da pessoa migrante que se encontre em situação de irregularidade em nosso território. Para tal, o legislador orientou sobre as ações a serem tomadas no artigo 50 e seguintes, da referida lei. Neles, estabeleceu que a deportação só ocorrerá depois de realizada a notificação pessoal ao deportando constando as irregularidades verificadas e o prazo, não inferior a 60 dias, para a sua regularização, podendo ser prorrogado por despacho fundamentado. Porém, este prazo pode ser reduzido quando a pessoa migrante tenha vindo a “praticar ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal”. Pontua-se, ainda, que a “deportação não exclui eventuais direitos adquiridos em relações contratuais ou decorrentes da lei brasileira” e, que tais procedimentos referentes à “deportação devem respeitar o contraditório e a ampla defesa e a garantia de recurso com efeito suspensivo”.



3.       Portaria nº 666

A Portaria nº 666, publicada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública restabeleceu o diálogo com nosso passado autoritário, através de dispositivos que são incompatíveis com preceitos fundamentais ao exercício da dignidade da pessoa migrante.

Logo em seu primeiro artigo justificou tais posturas invocando dispositivos do ordenamento jurídico brasileiro isolados de seus contextos. Dentre eles, o §2º do artigo 7º do Estatuto dos Refugiados[12] que retira o benefício do princípio do non-refoulement[13] para refugiados que forem considerados perigosos à segurança nacional; ou mesmo, a Reforma Migratória, em seu o inciso IX do artigo 45 — sobre o possível impedimento de ingresso ao Brasil de pessoa que tenha praticado ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal — e o § 6º do artigo 50 — este, fundamental para justificar a redução no prazo para a regularização de pessoa em situação migratória irregular de 60 dias para o prazo absurdo de 48 horas[14].

Além de um conceito aberto de pessoa perigosa à segurança do Estado brasileiro que pode justificar atos discricionários, a Portaria nº 666 estabeleceu como prazo para recurso, com efeito suspensivo, 24 horas a partir da notificação do deportando ou de seu defensor. Tais prazos, tanto o de regularização como o de recurso, inviabilizam qualquer possibilidade de exercício do contraditório e ampla defesa por parte da pessoa migrante, assim como, violam o devido processo legal e a presunção de inocência.

Entrevistamos a professora Michele Hastreiter, docente de Direito Internacional Público e Privado do UNICURITIBA, para compreendermos melhor os aspectos da Portaria 666/2019 do Ministério da Justiça e Segurança Pública, em relação à Nova Lei de Migração.

Hastreiter concebe a referida portaria ministerial como ilegal e inconstitucional, uma vez que, através dela, criou-se um instituto jurídico próprio, o que não seria cabível por meio de instrumento desta natureza (uma Portaria).  Isto porque, ao contrariar a Nova Lei de Migração, a portaria, sendo um ato inferior a uma lei ordinária e consequentemente a própria Constituição, afrontou a hierarquia das normas jurídicas. Como vimos, a Lei nº 13.445/17 alterou o paradigma da condição migratória no Brasil, promovendo uma profunda reorientação principiológica no tema, trazendo a questão migratória para o centro dos debates de Direitos Humanos. Para Michele, tal reorientação as práticas do Estatuto do Estrangeiro que eram consideradas autoritárias.  Como exemplo, citou o instituto da expulsão, que dispunha sobre a deportação das pessoas que atentassem contra a segurança nacional. Atualmente, só serão expulsos indivíduos acusados de crimes internacionais (como genocídio e crimes contra a humanidade) ou crimes graves após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. 

Para a professora, os prazos reduzidos e a abertura do termo "pessoa perigosa" são demonstrações da retomada de um autoritarismo na política migratória que não condiz, nem com a Constituição — que estabeleceu o princípio da igualdade entre nacionais e estrangeiros já no caput do art. 5º —, nem com a Reforma Migratória, pois contraria todos os seus princípios, a começar pela ideia de não criminalização, repúdio ao racismo e xenofobia.



A migração tem sido um tema atacado pela extrema direita em diversos países, não apenas no Brasil, e existe uma visão do estrangeiro como bode expiatório para os problemas nacionais. Tal fato, está presente na história da nossa política migratória, desde o momento em que os estrangeiros eram classificados como "anarquistas estrangeiros", com possíveis associações de italianos que trabalhavam em fábricas paulistas e movimentos sindicais. Mas, não há qualquer comprovação científica de que tal ameaça exista de fato; o que infelizmente ocorre é o preconceito, e a imagem do Brasil ser acolher aos estrangeiros, não poderia estar mais distante da realidade. O Brasil é e sempre foi extremamente seletivo sobre quais imigrantes são ou não acolhidos, e tal acolhimento é orientado por critérios econômicos e, inclusive, raciais. [15]



Diante do exposto, podemos perceber que os artifícios debruçados em dispositivos abertos e supressores de direitos da presente portaria, resultam em sérias violações à pessoa migrante, bem como, reforçam a postura não acolhedora mitigada por um discurso nacionalista deturpado que, imbuído de uma noção de defesa da soberania e proteção à nação, apenas ratifica nossa construção identitária nacional que sempre foi pautada na violência, na discriminação e na desigualdade. Outro ponto a destacar, são os mecanismos jurídicos a serviço de ideologias políticas autoritárias que legitimam o retrocesso em termos de direitos e garantias já positivados.

A ruptura promovida pela Nova Lei de Migração permitiu, através do alinhamento constitucional e com os Direitos Humanos, um feixe de esperança em nosso ordenamento quanto a matéria migratória. Mas, para que continuemos a caminhar em direção da concretização de tais princípios fundamentais à orientação de políticas migratórias preocupadas com a dignidade humana, ao acolhimento e à inserção social, laboral e produtiva do migrante em nosso lar, regredir — em termos jurídicos, políticos e sociais — não pode ser uma opção.





[1] Lei de Migração n. 13.445, de 24 de maio de 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13445.htm
[3] BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública/Gabinete do Ministro.  Regula o impedimento de ingresso, a repatriação, a deportação sumária, a redução ou cancelamento do prazo de estada de pessoa perigosa para a segurança do Brasil ou de pessoa que tenha praticado ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal. Portaria n. 666, de 25 de julho de 2019. Disponível em: <http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-666-de-25-de-julho-de-2019-207244569>. Acesso em: 10 ago. 2019.
[4] MORAES, Ana Luisa Z. de. A formação da Política Imigratória brasileira: da Colonização ao Estado Novo. Porto Alegre: Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, vol. especial, 2014, p. 143-163.
[5] MORAES, 2014, p. 157-158.
[7] Circular secreta nº 1.323/1939, proposta pelo Min. Osvaldo Aranha.
[10] FRAZÃO, Samira Moratti. Política (i)migratória brasileira e a construção de um perfil de imigrante desejado: lugar de memória e impasses. Londrina: ANTÍTESES, 2017. v. 10, n. 20, p. 1103-1128.
[11] Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6815.htm.
[13] Princípio da “não devolução” de asilados e refugiados para a fronteira de território em que sua vida ou liberdade estejam ameaçadas, seja em virtude de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política.
[14] Art. 3º, da Portaria nº 666, de julho de 2019.
[15] Professora Michele Hastreiter, em entrevista para o Internacionalize-se, em 2019


* A acadêmica Rafaella Pacheco faz parte do Grupo de Pesquisa "Direito Migratório, em Curitiba, no Brasil e no Mundo", coordenado pela Professora Michele Hastreiter. Ela também integra a equipe editorial do Blog Unicuritiba Fala Direito.

** As opiniões expressas no texto pertencem a sua autora, e não necessariamente refletem o posicionamento da Instituição.
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