segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Opinião: Portaria 666 e o Direito Migratório





Por Rafaella Pacheco*.



“o homem, esse fenômeno dialético, é obrigado a estar sempre em movimento. [...] Como são vergonhosos, então, todos os padrões fixos. Quem jamais poderá fixar um padrão? O homem é uma “escolha”, uma luta, um constante vir a ser. Ele é uma migração infinita, uma migração dentro de si próprio [...] ele é um migrante dentro de sua própria alma.” (Ali Shariati)



            A crise migratória tem sido debate recorrente em termos globais. As dificuldades enfrentadas por migrantes, refugiados e apátridas — que se encontram na difícil situação de terem que abandonar seus lares em busca de uma vida digna em outros países —, movimentaram a criação de dispositivos legais internacionais preocupados em assegurar uma acolhida humanitária a estas pessoas. Mas, os países signatários de tais tratados e convenções internacionais de Direitos Humanos possuem autonomia, em seus territórios, para definirem as medidas jurídicas, políticas e sociais a serem tomadas em relação ao tema, comprometendo-se em estarem alinhados com o acordo firmado. O Estado brasileiro, em 2017, publicou a Nova Lei de Migração que, rompendo com posturas autoritárias do antigo Estatuto do Estrangeiro, estabeleceu um íntimo diálogo com princípios constitucionais, além de, trazer consigo um forte viés humanitário e de direitos humanos. 


Um pouco mais de dois anos após a publicação da Nova Lei de Migração[1] o Ministério da Justiça estabeleceu, em 25 de julho deste ano, a Portaria nº 666[2]. Esta, conforme descrito em Diário Oficial, “dispõe sobre o impedimento de ingresso, a repatriação e a deportação sumária de pessoa perigosa ou que tenha praticado ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal.”[3] Desde então, houveram muitas manifestações contrárias à referida portaria, sendo as mais recentes a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 619, proposta pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge; e a denúncia realizada pelas ONGs Conectas Direitos Humanos e Missão Paz, na 19º reunião do Conselho dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, realizada na última quarta-feira, dia 18. 


Para compreendermos o regresso jurídico, político e social que a presente Portaria nº 666 representa, iniciaremos por uma breve contextualização sobre a receptividade brasileira aos imigrantes. Tal matéria migratória sempre foi orientada por interesses políticos e econômicos específicos que, apoiados por instrumentos legais, estruturaram a identidade nacional brasileira e promoveram a manutenção de um cenário migratório marcado por violações e preconceitos.



1.         Um país não tão acolhedor assim

A concepção de que nós brasileiros somos um povo acolhedor, receptivo e hospitaleiro contém em si grandes equívocos. Parte desta premissa advém do fato de possuirmos uma grande diversidade cultural e étnica que, um olhar leviano à história de nosso país, se iludiria com a ideia de um povo aberto e convidativo à presença de imigrantes. Mas será que isso é verdade? Somos cordiais, afetuosos, solícitos e receptivos com todos? Sem distinções?

O estímulo à emigração europeia é o exemplo mais contundente em nossa história política migratória. Em 1808, o Decreto de 25 de novembro, concedia as sesmarias aos estrangeiros residentes no Brasil com objetivo de aumentar a lavoura e a população. Na década de 1850, a repressão do tráfico de escravos com a promulgação da Lei n.º 581 de setembro de 1850 e, posteriormente, a abolição da escravatura pela Lei Áurea, em maio de 1888, determinou significativamente as ações em relação à imigração no Brasil.[4]

Juntamente ao descaso e a criminalização de escravos recém libertos, o governo julgou mais rentável a importação de mão de obra estrangeira para as lavouras de café ao inserir os recém libertos ao mercado de trabalho. Para organizar e estimular tal mão de obra europeia, como um braço da Secretaria da Agricultura, foi criado o Departamento de Imigração e Colonização de São Paulo. O recorte na mão de obra bem quista às lavouras continha em si a finalidade do branqueamento da raça, pois acreditava-se na existência de uma hierarquização entre as raças, considerando pessoas brancas de ascendência europeia como sendo superior às demais.

Dadas as condições análogas ao trabalho escravo das lavouras, a precariedade de condições culminou no êxodo destes trabalhadores rurais aos centros urbanos. Estes, não possuíam direitos civis ou políticos até 1891, com a Constituição Republicana. Porém, tal conquista cívica advinda de reivindicações dos imigrantes, fomentou a representação simbólica subversiva, instigadora de desordem e militância do estrangeiro anarquista e comunista no século XX. Para a Primeira República, o estrangeiro estava associado ao perigo à ordem nacional, ou seja, era indesejado em nosso território. No Estado Novo, os efeitos da Primeira Guerra Mundial foram sentidos na crise do café brasileiro, o que influenciou um projeto nacionalista de proteção e nacionalização do trabalho, restringindo o ingresso de trabalhadores estrangeiros.

Acreditou-se que o progresso do Brasil dependia da homogeneização da população e, sob tal justificativa, violações culturais, educacionais e religiosas foram tomadas em nome da construção de uma identidade nacional brasileira.[5] O Decreto-Lei nº 383/1938[6], determinava o envio de tropas do Exército em áreas de concentração de imigrantes com a finalidade de nacionalizá-los. O Estado brasileiro manteve na Constituição de 1937 o sistema de cotas para a entrada de imigrantes ao Brasil, que já vinha estipulado na Constituição de 1934. Concomitantemente, emitiu circulares pelo Ministério das Relações Exteriores restringindo a entrada de imigrantes judeus e negando o visto temporário de imigrantes semitas.[7]

No ano seguinte, o Decreto-Lei nº 406[8] estabeleceu requisitos à entrada de estrangeiros em nosso território que reforçou a política eugenista de nosso Estado. Este, negava a entrada de pessoas com deficiência e com doenças contagiosas; indigentes, vagabundos, ciganos e congêneres; que não possuíam posses suficientes para o seu sustento e de seus dependentes; que tivessem costumes manifestamente imorais ou de conduta manifestamente nociva à ordem pública, e segurança nacional ou à estrutura das instituições; entre outras. Cabe destacar ainda o teor racista e xenófobo do referido decreto que, em seu artigo 2º, reserva ao Governo Federal a limitação ou suspensão da entrada de indivíduos de raças ou origens específicas, por motivos de ordem econômica e social.

            Meses após o término da Segunda Guerra Mundial, no governo Vargas foi publicado o Decreto-Lei nº 7.967[9], de setembro de 1945. Este, regulava sobre a imigração e colonização. E, logo em seu capítulo primeiro, destinado a admissão dos imigrantes é categórico:



Art. 1º Todo estrangeiro poderá, entrar no Brasil desde que satisfaça as condições estabelecidas por esta lei.

Art. 2º Atender-se-á, na admissão dos imigrantes, à necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência européia, assim como a defesa do trabalhador nacional. (grifo nosso)

           

No final da década de 1950 ao início da década seguinte, a preferência como destino migratório direcionou-se à países de maior potência econômica, como os Estados Unidos, o que justificou a redução no fluxo migratório aos países latino-americanos de forma geral. Neste período, novas políticas de atração de imigrantes foram tomadas, objetivando o desenvolvimento econômico em setores específicos. Mas, no período ditatorial brasileiro, de 1964 a 1985, a matéria “imigração” estava associada a ponderações acerca da segurança nacional, vedando a entrada de asilados, refugiados e pessoas em busca de enriquecimento e melhores condições de vida no país.[10]

Trazendo consigo reflexos de uma herança autoritária, o Estatuto do Estrangeiro, de 1980, manteve a intenção produtiva quanto a migração, sob a égide da segurança nacional em detrimento de premissas dos Direitos Humanos. Tal postura fica clara ao olharmos para o artigo 65, que determinava como passível de expulsão todo estrangeiro que atentasse de alguma forma contra “a segurança nacional, a ordem política ou social, a tranqüilidade ou moralidade pública e a economia popular, ou cujo procedimento o torne nocivo à conveniência e aos interesses nacionais.”[11].

O Estatuto do Estrangeiro foi revogado pela Nova Lei de Migração, publicada em maio de 2017. Mas, antes de ponderarmos sobre a presente lei de migração, faz-se necessário reflexionarmos sobre as informações até o momento apresentadas a respeito de nossa história jurídico-política migratória. O que podemos perceber, é que nossa identidade nacional foi forjada por interesses políticos e econômicos específicos. Tais interesses, geridos por uma restrita elite no poder, determinavam, através de preceitos discriminatórios, os aptos e os não aptos a entrar ou mesmo permanecer em nossa terra. As portas de entrada de nosso país foram mediadas por políticas e regulamentações segregadoras, preconceituosas, racistas e xenófobas.



2.         A Nova Lei de Migração

Como já mencionado, a Nova Lei de Migração, que dispõe acerca dos direitos e deveres do migrante, aproximou-se de princípios constitucionais e de tratados internacionais de Direitos Humanos. Seu teor tem como princípio estruturante a dignidade da pessoa migrante que, conforme a literatura sobre o tema, compreende as vertentes dos direitos humanos, do direito humanitário e do direito do refugiado.

Dentre os princípios e diretrizes dispostos na Reforma Migratória, gostaríamos de ressaltar o “repúdio e prevenção à xenofobia, ao racismo e a quaisquer formas de discriminação; a não criminalização da migração; a acolhida humanitária; a igualdade de tratamento e de oportunidade ao migrante e a seus familiares; e o repúdio a práticas de expulsão ou de deportação coletivas’. Garante-se, ainda, ao “migrante no território nacional, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, assim como o direito de sair, de permanecer e de reingressar em território nacional”. Quanto aos impedimentos de ingresso em nosso território, a Nova Lei determinou que, estes se dão após entrevista individual e mediante ato fundamentado, reforçando, ainda, que “ninguém será impedido de ingressar no País por motivo de raça, religião, nacionalidade, pertinência a grupo social ou opinião política”.

Quanto a deportação, a Lei 13.445/17 a definiu como uma medida administrativa de retirada compulsória da pessoa migrante que se encontre em situação de irregularidade em nosso território. Para tal, o legislador orientou sobre as ações a serem tomadas no artigo 50 e seguintes, da referida lei. Neles, estabeleceu que a deportação só ocorrerá depois de realizada a notificação pessoal ao deportando constando as irregularidades verificadas e o prazo, não inferior a 60 dias, para a sua regularização, podendo ser prorrogado por despacho fundamentado. Porém, este prazo pode ser reduzido quando a pessoa migrante tenha vindo a “praticar ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal”. Pontua-se, ainda, que a “deportação não exclui eventuais direitos adquiridos em relações contratuais ou decorrentes da lei brasileira” e, que tais procedimentos referentes à “deportação devem respeitar o contraditório e a ampla defesa e a garantia de recurso com efeito suspensivo”.



3.       Portaria nº 666

A Portaria nº 666, publicada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública restabeleceu o diálogo com nosso passado autoritário, através de dispositivos que são incompatíveis com preceitos fundamentais ao exercício da dignidade da pessoa migrante.

Logo em seu primeiro artigo justificou tais posturas invocando dispositivos do ordenamento jurídico brasileiro isolados de seus contextos. Dentre eles, o §2º do artigo 7º do Estatuto dos Refugiados[12] que retira o benefício do princípio do non-refoulement[13] para refugiados que forem considerados perigosos à segurança nacional; ou mesmo, a Reforma Migratória, em seu o inciso IX do artigo 45 — sobre o possível impedimento de ingresso ao Brasil de pessoa que tenha praticado ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal — e o § 6º do artigo 50 — este, fundamental para justificar a redução no prazo para a regularização de pessoa em situação migratória irregular de 60 dias para o prazo absurdo de 48 horas[14].

Além de um conceito aberto de pessoa perigosa à segurança do Estado brasileiro que pode justificar atos discricionários, a Portaria nº 666 estabeleceu como prazo para recurso, com efeito suspensivo, 24 horas a partir da notificação do deportando ou de seu defensor. Tais prazos, tanto o de regularização como o de recurso, inviabilizam qualquer possibilidade de exercício do contraditório e ampla defesa por parte da pessoa migrante, assim como, violam o devido processo legal e a presunção de inocência.

Entrevistamos a professora Michele Hastreiter, docente de Direito Internacional Público e Privado do UNICURITIBA, para compreendermos melhor os aspectos da Portaria 666/2019 do Ministério da Justiça e Segurança Pública, em relação à Nova Lei de Migração.

Hastreiter concebe a referida portaria ministerial como ilegal e inconstitucional, uma vez que, através dela, criou-se um instituto jurídico próprio, o que não seria cabível por meio de instrumento desta natureza (uma Portaria).  Isto porque, ao contrariar a Nova Lei de Migração, a portaria, sendo um ato inferior a uma lei ordinária e consequentemente a própria Constituição, afrontou a hierarquia das normas jurídicas. Como vimos, a Lei nº 13.445/17 alterou o paradigma da condição migratória no Brasil, promovendo uma profunda reorientação principiológica no tema, trazendo a questão migratória para o centro dos debates de Direitos Humanos. Para Michele, tal reorientação as práticas do Estatuto do Estrangeiro que eram consideradas autoritárias.  Como exemplo, citou o instituto da expulsão, que dispunha sobre a deportação das pessoas que atentassem contra a segurança nacional. Atualmente, só serão expulsos indivíduos acusados de crimes internacionais (como genocídio e crimes contra a humanidade) ou crimes graves após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. 

Para a professora, os prazos reduzidos e a abertura do termo "pessoa perigosa" são demonstrações da retomada de um autoritarismo na política migratória que não condiz, nem com a Constituição — que estabeleceu o princípio da igualdade entre nacionais e estrangeiros já no caput do art. 5º —, nem com a Reforma Migratória, pois contraria todos os seus princípios, a começar pela ideia de não criminalização, repúdio ao racismo e xenofobia.



A migração tem sido um tema atacado pela extrema direita em diversos países, não apenas no Brasil, e existe uma visão do estrangeiro como bode expiatório para os problemas nacionais. Tal fato, está presente na história da nossa política migratória, desde o momento em que os estrangeiros eram classificados como "anarquistas estrangeiros", com possíveis associações de italianos que trabalhavam em fábricas paulistas e movimentos sindicais. Mas, não há qualquer comprovação científica de que tal ameaça exista de fato; o que infelizmente ocorre é o preconceito, e a imagem do Brasil ser acolher aos estrangeiros, não poderia estar mais distante da realidade. O Brasil é e sempre foi extremamente seletivo sobre quais imigrantes são ou não acolhidos, e tal acolhimento é orientado por critérios econômicos e, inclusive, raciais. [15]



Diante do exposto, podemos perceber que os artifícios debruçados em dispositivos abertos e supressores de direitos da presente portaria, resultam em sérias violações à pessoa migrante, bem como, reforçam a postura não acolhedora mitigada por um discurso nacionalista deturpado que, imbuído de uma noção de defesa da soberania e proteção à nação, apenas ratifica nossa construção identitária nacional que sempre foi pautada na violência, na discriminação e na desigualdade. Outro ponto a destacar, são os mecanismos jurídicos a serviço de ideologias políticas autoritárias que legitimam o retrocesso em termos de direitos e garantias já positivados.

A ruptura promovida pela Nova Lei de Migração permitiu, através do alinhamento constitucional e com os Direitos Humanos, um feixe de esperança em nosso ordenamento quanto a matéria migratória. Mas, para que continuemos a caminhar em direção da concretização de tais princípios fundamentais à orientação de políticas migratórias preocupadas com a dignidade humana, ao acolhimento e à inserção social, laboral e produtiva do migrante em nosso lar, regredir — em termos jurídicos, políticos e sociais — não pode ser uma opção.





[1] Lei de Migração n. 13.445, de 24 de maio de 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13445.htm
[3] BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública/Gabinete do Ministro.  Regula o impedimento de ingresso, a repatriação, a deportação sumária, a redução ou cancelamento do prazo de estada de pessoa perigosa para a segurança do Brasil ou de pessoa que tenha praticado ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal. Portaria n. 666, de 25 de julho de 2019. Disponível em: <http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-666-de-25-de-julho-de-2019-207244569>. Acesso em: 10 ago. 2019.
[4] MORAES, Ana Luisa Z. de. A formação da Política Imigratória brasileira: da Colonização ao Estado Novo. Porto Alegre: Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, vol. especial, 2014, p. 143-163.
[5] MORAES, 2014, p. 157-158.
[7] Circular secreta nº 1.323/1939, proposta pelo Min. Osvaldo Aranha.
[10] FRAZÃO, Samira Moratti. Política (i)migratória brasileira e a construção de um perfil de imigrante desejado: lugar de memória e impasses. Londrina: ANTÍTESES, 2017. v. 10, n. 20, p. 1103-1128.
[11] Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6815.htm.
[13] Princípio da “não devolução” de asilados e refugiados para a fronteira de território em que sua vida ou liberdade estejam ameaçadas, seja em virtude de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política.
[14] Art. 3º, da Portaria nº 666, de julho de 2019.
[15] Professora Michele Hastreiter, em entrevista para o Internacionalize-se, em 2019


* A acadêmica Rafaella Pacheco faz parte do Grupo de Pesquisa "Direito Migratório, em Curitiba, no Brasil e no Mundo", coordenado pela Professora Michele Hastreiter. Ela também integra a equipe editorial do Blog Unicuritiba Fala Direito.

** As opiniões expressas no texto pertencem a sua autora, e não necessariamente refletem o posicionamento da Instituição.

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