sábado, 15 de junho de 2013

Origens e contradições do discurso ocidental contrário às práticas de modificação genital feminina

Gisele Passaura*

Não há uma resposta única e completamente satisfatória no que diz respeito à legitimidade das formas de modificação genital feminina, haja vista que o debate faz-se acalorado no ocidente. Todavia é mister verificar se no discurso ocidental contrário a essas práticas não se encontram contradições ou até mesmo resquícios de uma história concernente à sua própria noção de sexualidade assim como do papel feminino nessas sociedades.
Para dar início ao exame dessas práticas culturais é fundamentar, esclarecer a nomenclatura utilizada, uma vez que há uma gama de nomes referentes às mesmas, a saber: mutilação feminina, circuncisão feminina, cirurgias genitais femininas, cortes femininos e modificações corporais. Para fins do presente artigo, optou-se pela abordagem carregada do menor julgamento etnocêntrico. Ao longo da apresentação utilizar-se-á, assim, a definição apresentada por Kratz (2003, p. 274-275) Modificação Genital Feminina (MGF). Contudo sempre que possível, a MGF será definida por seu termo médico.
A MGF não pode ser entendida como uma prática única difundida entre os diversos países praticantes. Muito pelo contrário, a MGF é encontrada nas mais variadas formas. Sendo desde cerimônias públicas entre todos os membros da comunidade, até um rito reservado apenas aos membros familiares. Podendo também ser realizada somente alguns dias após o nascimento, como até no início da adolescência.
Atinente à modificação corporal, as variações também são significativas, todavia de maneira generalizada pode ser enquadrada em três principais categorias, a saber: suna, clitoridectomia e infibulação. A primeira constitui-se na retirada da superfície do clitóris. Já na clitoridectomia há a remoção do clitóris e muitas vezes parte dos lábios. Enquanto que na infibulação há, além dos procedimentos anteriores, a suturação dos lábios internos deixando apenas a abertura da uretra e um espaço para que a menstruação ocorra normalmente.
Uma vez vistos os termos técnicos faz-se necessário tentar compreender os motivos de um discurso ocidental tão calorosamente contrário à MGF. Não seria esse posicionamento um reflexo da própria noção de sexualidade feminina no ocidente? Em grande medida, o ocidente apresenta dificuldade em compreender a MGF como uma prática muito mais complexa do que simplesmente a imposição do poder masculino sobre a sexualidade feminina. Mas qual a origem desse pensamento?
Cabe aqui lembrar, que na Europa e nos Estados Unidos práticas semelhantes eram realizadas nas mulheres para combater o que se acreditava então, serem distúrbios mentais. Na Inglaterra do século XIX, a clitoridectomia e a histerectomia (remoção dos ovários e do útero) eram realizadas para combater sintomas do que era considerado sinal de demência, a saber: inclinação homossexual, masturbação, hiper-sexualidade e histeria. Nos Estados Unidos por sua vez, práticas de infibulação e clitoridectomia eram desempenhadas até o primeiro quartil do século XX. Sendo o primeiro para combater atos de masturbação e o segundo para tratar epilepsia, catalepsia, melancolia e até mesmo cleptomania (WALLEY, 1997, p.494).
Essas técnicas eram relativamente comuns e pertinentes ao pensamento da época, especialmente se comparado ao que Freud afirmou em 1925 “a eliminação da sexualidade clitorial é uma precondição necessária para o desenvolvimento da feminilidade” (WALLEY, 1997, p.494). Ou seja, talvez o discurso ocidental contrário a MGF seja fruto de sua própria história sexual feminina, acarretando assim, um olhar etnocêntrico sobre a MGF como um momento a ser esquecido e eliminado de sua própria evolução histórica.
Outro aspecto relevante a ser mencionado é a dicotomia maniqueísta do pensamento ocidental concernente às práticas culturais de MGF. Já que notadamente o discurso ocidental evidencia sua “racionalidade” em detrimento da “tradição” dos países praticantes da MGF. Seguindo essa linha de raciocínio pode-se ainda encontrar outras relações antagônicas no discurso, a saber: ciência e superstição, civilização e barbárie, liberdade e repressão, conhecimento e ignorância. (WALLEY, 1997, p. 422-423). Ou seja, essa divisão acaba impondo o contraste entre dois grandes blocos: “nós” não praticantes e “eles” praticantes.
Todavia, será que essa divisão apresenta-se, de fato, tão distinta? Não haveria práticas ocidentais que de certa forma demonstram a tão temida “dominação masculina” sobre as mulheres consideradas “livres” nesse discurso?
Koptiuch, por exemplo, explora a noção de “defesa cultural” ao relatar o caso de um cidadão chinês que em território estadunidense assassinou sua esposa após descobrir sua infidelidade. Seu advogado apresentou o caso como sendo um reflexo de seu pensamento cultural, o que resultou na menor pena possível, de apenas cinco anos de prisão. Koptiuch, contudo, aponta que caso o mesmo homem houvesse sido julgado na China, teria sido condenado à morte (KOPTIUCH, 1996, in WALLEY,1997,p. 426). Ou seja, em território “racional” dos Estados Unidos, a mesma “exploração feminina” tanto criticada pode também ser evidenciada.
Retornando ao discurso binário antagônico entre “nós” e “eles”, é subentendido nessa lógica que as mulheres praticantes da MGF apenas o fazem por possuir pouco conhecimento/escolaridade enquanto nas sociedades ocidentais esse esclarecimento impediria que as mulheres desempenhassem rituais semelhantes. Entretanto, mesmo nesse ambiente “iluminado” exemplos similares às práticas ritualísticas podem sim ser encontrados.
Para alterar o “prazer sexual” muitas mulheres ocidentais submetem-se a práticas de modificação genital tais como: reparação do hímen, estreitamento vaginal, circuncisão do “capuz” clitorial, assim como a redução dos lábios vaginais. Outro exemplo decisivamente simbólico é a tão difundida prática de implantes de silicone, na qual, claramente trata-se de adequar o corpo feminino ao ideário masculino de beleza nessas sociedades. Curiosamente, quando a mulher ocidental resolve submeter-se ao implante, essa escolha é considerada como fruto da decisão feminina e não da “dominação masculina/patriarcal”.
Por que então, quando mulheres resolvem participar de rituais de MGF como sendo um universo muito mais amplo do que simplesmente o fator sexual ou de subserviência feminina, o discurso ocidental muda drasticamente?
Antes de emitir um julgamento sobre práticas alienígenas ao que é considerado “correto” é primordial compreender as origens desse discurso assim como as contradições que o mesmo possa evidenciar. Porquanto um preconceito, baseado em noções ocidentais de sexualidade e de subjugação feminina, pode não se enquadrar no que as sociedades praticantes da MGF realmente consideram sobre essas práticas, cujas funções são muito mais sociais e políticas do que de gênero.

Gisele Passaura é internacionalista pelo Centro Universitário Curitiba e pós-graduanda em Antropologia Cultural na Pontifícia Universidade Católica do Paraná.


Referência bibliográficas


WALLEY, C.J.  (1997) Searching for "Voices": Feminism, Anthropology, and the Global Debate over Female Genital Operations. Cultural Anthropology, Vol. 12, No. 3, pp. 405-438
KOPTIUCH, K. (1996) Cultural Defense and Criminological Displacements: Gender, Race and (Trans)Nation in the Legal Surveillance of U.S. Diaspora Asians. In Displacement, Diaspora and Geographies of Identity. Smadar Lavie and Ted Swedenburg, eds. Pp. 215-233. Durham, NC: Duke University Press.

KRATZ, C.A. (2003) Circumcision, pluralism and dilemmas of cultural relativism. In: Applying anthropology: an introductory reader. Mcgrow hill.
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