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segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Viver a cotidianidade da violência: breve análise das contribuições de “Os condenados da terra” para pensar as Relações Internacionais



Gustavo Glodes Blum*
Referência da obra: FANON, Frantz. Los condenados de la tierra. Trad. para el español de Julieta Campos; trad. del epílogo Eliane Cazenave Tapie Isoard; prefacio de Jean-Paul Sartre; epílogo de Gérard Chaliand. 3ª ed. México: FCE, 2001.
 Cenas de protesto contra as forças policiais francesas em Argel, em 1960. Durante o período da Guerra da Argélia, as manifestações políticas nas principais cidades argelinas foram fortemente reprimidas pela ocupação francesa. No interior, colonos franceses faziam massacres contra argelinos das áreas rurais.

Qual seria o valor de uma vida? Como seria possível pensar, a partir da existência humana, a constituição de toda a constelação de instituições, de práticas, de organismos que, de certa maneira, organizam o Sistema Internacional? Seria possível, através de um tipo específico de experiência, constituir, de baixo para cima, uma compreensão de toda a política internacional a partir das maneiras de se organizar a vida das pessoas? Haveria alguém mais humano que alguém?

Esses, com certeza, são alguns questionamentos que surgem na cabeça de leitores do livro de Frantz Fanon, “Os condenados da terra”. Publicado em 1961 pela primeira vez, o livro faz parte de um movimento que parece só agora, em razão do engajamento de alguns autores e pesquisadores da América Latina, da África e da Ásia, em pensar-se a nossa realidade a partir de prismas diferentes. Um dos clássicos do movimento de crítica ao pensamento eurocêntrico e do uso tanto de categorias teóricas como práticas políticas de sobreposição dos interesses europeus com relação ao resto do mundo, esse é um dos livros seminais do chamado pós- ou descolonialismo.

Como afirmam Helen Gilbert e Joanne Tompkins (1996), há um certo problema em se definir algumas teorias ou maneiras em se definir o uso desses prefixos, “pós-“ e “des-“, em razão de uma multiplicidade de tentativas de aplicação numa época em que se pretende que tudo seja novo, inovador e quebre paradigmas sem necessariamente cumprir com essas funções. Assim, segundo elas, na introdução de seu livro “Post-Colonial Drama: Theory, Practice, Politics”:

O pós-colonialismo é muitas vezes definido de maneira estrita. O termo – de acordo com uma etimologia extremamente rígida – é frequentemente confundido com o conceito temporal que corresponde ao período em que a colonização cessou, ou o período que se segue a um Dia da Independência determinado politicamente no qual um país rompe sua relação de governança por parte de outro Estado. Sem ser uma sequência teleológica que suplanta o colonialismo, o pós-colonialismo é melhor definido como um engajamento com e uma contestação dos discursos do colonialismo, suas estruturas de poder, e suas hierarquias sociais. (GILBERT; TOMPKINS, 1996, p. 2)

 Enquanto prática teórica, portanto, o pós-colonialismo busca a criação de críticas às maneiras de pensar o mundo baseadas numa centralização excessiva naquelas estruturas de poder instaladas por aqueles que colonizaram o mundo, aqueles que estabeleceram uma prática sua como a mais elevada representação do “espírito humano”. Nos últimos trezentos anos, esse autointitulado pináculo da sabedoria tem sido, sabe-se bem, aquilo que nos acostumamos a chamar de “Ocidente”. E, é partir daí que as contribuições do pós-colonialismo em geral, e do livro de Frantz Fanon, em específico, podem contribuir para (re)pensar as Relações Internacionais.

“Os condenados da terra” reúne uma série de escritos de Fanon, que foram ou desenvolvidos em sua ação profissional ou em seu envolvimento político e militar na chamada Guerra de Liberação da Argélia, ou Guerra da Argélia. Esse momento histórico, de grande relevância para se compreender todo o processo de fim controle político e econômico da África e da Ásia, é peculiar, também pela sua própria definição: segundo nossos padrões políticos atuais, não pode ser considerada uma guerra em si, já que não ocorreu entre dois Estados de direito. 

A disparidade entre a França, potência colonizadora, e a Argélia, um de seus domínios no norte da África, e sua situação jurídica permitiu que uma série de desrespeitos às Convenções de Genebra sobre a Guerra e os direitos dos combatentes fosse posta em prática. Normalmente, relembramos o assombro dos campos de concentração ressurgindo na Europa durante as guerras de desintegração da ex-Iugoslávia, mas esquecemo-nos de que técnicas dessa natureza, assim como tortura, lavagem cerebral, execuções sumárias e outras práticas com as quais a própria França sofreu na Segunda Guerra Mundial foram largamente utilizadas pelas potências colonizadoras nas décadas de 50, 60 e 70 na África e na Ásia.

Esta obra de Fanon é dividida em cinco capítulos, dedicados a elementos específicos da situação colonial: a violência essencial da colonização; o papel das classes sociais quando estão sob o domínio da potência colonizadora e durante a luta pela independência; o papel da união nacional e da construção de uma nacionalidade própria dos colonizados; o papel da cultura nacional e suas incongruências iniciais; e os transtornos mentais causados pela guerra colonial, em pessoas que estão em situação de colonizados ou em agentes da colonização. Na edição produzida pela editora mexicana Fondo de Cultura Económica, tanto o prólogo escrito pelo filósofo Jean-Paul Sartre quanto o epílogo do geopolítico Gérard Chaliand apresentam uma reflexão profunda a respeito destes temas, também.

Assim como os trabalhos pós-colonialistas em geral, e por ter sido uma das obras fundamentais de constituição desta linha de pensamento, o livro de Fanon, ao abordar estes cinco temas, trabalha com alguns pressupostos básicos, que são de fundamental importância para pensar as Relações Internacionais: a primazia da centralidade e os meios utilizados para garantir que essa centralidade seja efetivada. E, no caso, a centralidade em questão é aquela do Ocidente e dos ocidentais.

Neste caso, é importante que nos recordemos do conceito de discurso, trabalhado, entre outros, por Michel Foucault (2012). Enquanto, algumas vezes, estamos acostumados com a ideia de que os grandes discursos são as formas que existem para divulgar valores e ideias, é importante termos em mente, como afirma Foucault, que o discurso vai muito além do seu simples enunciado. Ao realizar algum tipo de determinação, o discurso estabelece um padrão de ação, ao mesmo tempo que nega o seu inverso, silencia outras possibilidades e determina práticas. Tudo isso advém do processo de cessão da verdade a algum discurso, que o autor apresenta como um sistema de exclusão:

(...) essa vontade de verdade, como os outros sistemas de exclusão, apoia-se sobre um suporte institucional: é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por toda uma espessura de práticas como a pedagogia, é claro, como o sistema de livros, da edição, das bibliotecas (...). Mas ela é também reconduzida, mais profundamente sem dúvida, pelo modo como o saber é aplicado em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído. Recordemos aqui, e apenas a título simbólico, o velho princípio grego: que a aritmética pode bem ser o assunto das cidades democráticas, pois ela ensina as relações de igualdade, mas que só a geometria deve ser ensinada nas oligarquias pois demonstra as relações de desigualdade. (FOUCAULT, 2012, p. 17)


Correndo o risco de ecoar o ótimo TED de Chimamanda Adichie a respeito das histórias de um lado só, estabelecer os princípios da verdade é uma das bases do colonialismo, já que ele atua em duas escalas. Recuperando a definição de Gilbert e de Thompson, a colonização não se trata apenas de uma invasão, ou uma ocupação simples do território por um Estado estrangeiro, mas a criação de um conjunto de significados para esta ocupação. 

O colonialismo atua na área psíquica, gerando os discursos a partir do qual o domínio será instituído e garantido nas mentes das pessoas. Assim, é necessário justificar, criar uma lógica a partir da qual, por exemplo, a colonização europeia não é algo ruim nem para os europeus e muito menos para os colonizados, já que iluminar todo o mundo com os caráteres mais avançados do espírito humano é o “fardo do homem branco”, para utilizar as palavras de Rudyard Kipling. 

Assim, vão ser criadas formas “científicas”, “técnicas” de demonstrar a superioridade de uma raça sobre a outra, como bem demonstra Fanon no seu capítulo dedicado às psicoses da guerra total na Argélia: tanto colonizador como colonizado sofrem os efeitos, durante a guerra, de um encontro com um mundo que se esfacela à sua frente, que de repente não faz mais sentido, já que baseado nestes discursos de segregação. Fanon demonstra o caso de estudos psiquiátricos desenvolvidos na Argélia colonial que apresentam, por exemplo, a criminalidade do argelino como algo nato, como uma realidade incontestável já que fazia parte da evolução natural deste “tipo físico” específico. Ao serem questionados sobre isso, colegas de Fanon demonstram que uma teoria científica tem o poder demonstrado por Foucault de estabelecer os limites verdadeiros da diferença: ainda que incomodados com essas afirmações racistas, respondiam “É duro de engolir, mas está cientificamente comprovado” pelos estudos psiquiátricos (FANON, 2001, p. 276).

Nesse cartum do jornal americano Detroit Journal, de 1898, vê-se a demonstração clara do “fardo do homem branco”: levar os nativos à educação (ocidental), nem que seja à força. Na imagem, está representado o presidente estadunidense Theodore Roosevelt, quando da intervenção militar dos Estados Unidos da América nas Filipinas.

Partindo de pressupostos equivocados, a ciência acaba por garantir a continuidade e a comprovação de discursos de superioridade. Não foi isso que justificou o extermínio de comunistas, homossexuais, ciganos, comunistas e judeus, entre outros, durante o regime nazista como bem demonstrado pelo documentário “Arquitetura da Destruição”? E, ainda que os regimes nazista e fascista tenham gerado práticas abomináveis na Europa, elas ainda assim continuavam em outros lugares do mundo que estavam abaixo domínio europeu nas décadas seguintes à guerra. 

Por esse motivo, no prólogo, Sartre afirma que muitas vezes os discursos europeus de universalismo, da humanidade, do humanismo, eram entoados nos grandes centros, mas ouvido de maneira distorcida no resto do mundo. Nas metrópoles, constituía-se um discurso de igualdade entre os cidadãos, de fraternidade entre os povos, e de liberdade com justiça para a cidadania poder ser efetiva. Nas colônias, praticava-se a superioridade e a inferioridade, o fomento às disputas entre os povos colonizados (com outras etnias, outras religiões ou dentro das próprias comunidades), da reclusão, da tomada de terras e da circunscrição dos povos colonizados a determinadas áreas.

Neste último caso, as townships e bantustões regime de apartheid sul-africano é o melhor exemplo desta desigualdade levada ao extremo. Porém, é importante recordar que estas práticas ocorreram não apenas na África ou na Ásia, mas também nas Américas, na Irlanda, e na Oceania: a distinção é que temos que perceber que nós, que temos os acessos aos centros e compomos uma elite dentro de países independentes que foram colonizados também praticamos isso em alguma escala, seja com o nosso indígena ou com setores específicos da população de cada país.

E é aqui que o livro de Fanon pode representar um grande salto qualitativo nas análises das Relações Internacionais. Como ele analisa em seu capítulo dedicado às desventuras da consciência nacional. De forma diversa daqueles países que desenvolveram em sua economia as chamadas Revoluções Industriais, o desenvolvimento da burguesia nos países colonizados tem a ver com a manutenção das atividades econômicas desenvolvidas anteriormente à independência:

Dissemos que a burguesia colonizada que chega ao poder emprega a sua agressividade de classe para monopolizar os postos ocupados antes pelos estrangeiros. Imediatamente depois da independência tropeça, de fato, com as sequelas humanas do colonialismo: advogados, comerciantes, proprietários rurais, médicos, funcionários de nível superior. [Ela] Vai combater implacavelmente essa gente “que insulta a dignidade nacional”. Esgrime energicamente as ideias de nacionalização dos quadros, de africanização dos quadros. Em realidade, sua atitude vai ter cada vez mais matizes de racismo. Brutalmente, demanda ao governo um problema preciso: necessitamos desses postos. E não diminuirá seu mal humor, a não ser quando os tenha ocupado em sua totalidade. (FANON, op. cit., p. 142)

 No caso brasileiro, é notório o racismo com o qual a elite colonizada, a burguesia agroexportadora formada no país durante o período do Império e após a república, tratou, por exemplo, portugueses e africanos. Certo ódio à colonização ocorrida no Brasil se explica, em certa parte, por essa gana de controlar os postos principais da economia pós-colonial. Porém, o importante a se notar no caso destas burguesias é uma especialização extremada na área de serviços: como citou Fanon, serviços são a base destes postos. 

Advogados, médicos, engenheiros, que formam a constelação de profissões mais bem vistas no Brasil, por exemplo, são sintomas dessa situação: não são profissões caracterizadas pela intensidade de trabalho, ou pelo desenvolvimento de capacidades industriais, mas sim profissões destinadas ao serviço. 

São atividades dedicadas à manutenção das atividades econômicas, atividades de suporte, algo que irá bater à porta das nações recém tornadas independentes: esses serviços eram prestados à antiga metrópole; sem a metrópole, como prestar essas atividades? Como garantir a economia, se a elite econômica do país está galgada em atividades não-essenciais do ponto de vista industrial ou agrícola? Por esse e outros motivos, essa burguesia, para Fanon, se distingue da burguesia europeia, em quem busca algum tipo de inspiração:

Uma burguesia tal como se desenvolveu na Europa conseguiu, fortalecendo o seu próprio poder, elaborar uma ideologia. Esta burguesia dinâmica, instruída, laica realizou plenamente sua empresa de acumulação do capital e deu à nação um mínimo de prosperidade. Nos países subdesenvolvidos, temos visto que não há uma verdadeira burguesia, mas uma espécie de pequena casta com dentes afiados, ávida e voraz, dominada pelo espírito usurário e que se contenta com os dividendos que a assegura a antiga potência colonial. Esta burguesia caricaturesca é incapaz de grandes ideias, de inventividade. Se recorda do que leu nos manuais ocidentais e imperceptivelmente se transforma não na répilica da Europa, mas em sua caricatura. (FANON, op. cit., p. 160)
 
Há o desafio da economia, portanto, assim como o desafio de desconstruir essa relação de dependência com o capital estrangeiro. Assim, mesmo após a independência política, pode ocorrer a dependência econômica, uma vez que o relacionamento é com a centralidade construída, com base no Ocidente. Ele é a referência, ele é o objetivo e, muitas vezes, as elites nacionais juram estar par-a-par com seus correspondentes europeus ou norte-americanos. Porém, se isso pode ser crível dentro da sociedade colonizada, quando se veem na Europa ou nos Estados Unidos, são lembrados rotineiramente de sua origem “nas colônias”, como diriam os ingleses.

Da mesma forma, essa leitura nos permite compreender que não há nenhuma sociedade que seja 100% sequestrada de si, forçada a fazer algo, já que este jogo permite a cooptação de algumas forças sociais. Obviamente, este arranjo econômico e social beneficia a alguém, a algum grupo. Compreender essas relações de forças é o que permite compreender o elo de ligação entre o exterior e o doméstico, que tantas vezes escapa quando fazemos a análise das Relações Internacionais.
Se não compreendermos que Nelson Mandela e Mohandas Karamchand Gandhi tiveram educação ocidental – o primeiro na universidade de Witwatersand, onde era o único aluno negro, o segundo em seu período de estudos no Reino Unido – não compreenderemos o seu destaque com relação a figuras tão importantes quanto nos processos de independência da Índia e fim do apartheid na África do Sul. Steve Biko e Subhas Chandra Bose, por exemplo, são recorrentemente obliterados por Mandela e Gandhi, sobretudo por suas propostas mais beligerantes e afirmativas de quebra da relação colonial.

Aqui, apresenta-se o salto qualitativo abordado anteriormente. A dependência, a efetivação das Relações Internacionais, o desenvolvimento das centralidades e das hierarquias se dão através da vivência, através das práticas que as pessoas levam a cabo na sua existência.

Os Estados, os tratados internacionais, os organismos internacionais têm se distanciado, no quadro teórico das Relações Internacionais desde o início de seu desenvolvimento, da experiência humana. As preferências comerciais, porém, são baseadas nas opções que os agentes econômicos fazem. A efetivação de alguma norma internacional depende da aplicação das práticas previstas por elas no cotidiano das pessoas.

É possível explicar todo um Sistema Internacional através dos quadros psicóticos apresentados tanto por colonizados como por colonizadores, pois isso apresenta a realidade discursiva e material do mundo como um todo. Como diz Adichie, coloque a chegada dos europeus como “expansão” e você terá uma versão da história; apresente a mesma narrativa como “invasão”, e terá uma história completamente diferente. Como mostra Doreen Massey (2000), essa mudança de colocações é algo que deve ser compreendido para encarar o novo caráter da política na atualidade.

As Relações Internacionais dependem da forma como são representadas, como são efetivadas através do discurso e da violência. Quebrar o espírito e o corpo de uma pessoa ou de um grupo é a base da distinção racial e social. Criar o indígena é um esforço tão físico como psicológico. A reflexão de Sartre nos ajuda a compreender um pouco esta efetivação, quando ele apresenta a situação do indígena em contraponto à realidade do colonizador.

Se, no século XIX, era necessário liberar os homens das periferias de suas consignas monstruosas para que fossem cidadãos libres o suficiente para poder vender sua mão de obra, a universalidade da cidadania e, mais ainda, da humanidade não se refletia nas colônias. Lá, é a violência e a opressão que irão constituir a verve da organização social, e vai constituir a determinação da personalidade e da ação econômica e política.

Assim, compreender essas primazias, essas centralidades, é poder compreender, ainda hoje, por que terroristas muçulmanos são considerados como criminosos naturais, enquanto terroristas brancos são doentes mentais. Um se explica pela sua própria natureza, enquanto o outro não é representante de uma “raça” inteira. Um representa o seu coletivo enquanto indivíduo, o outro é apenas um indivíduo dentro de uma sociedade. 

E esse, infelizmente, é apenas um dos exemplos que poderiam ser aqui citados de sobreposição da visão ocidental sobre o resto do mundo, o que faz com que haja certa permanência da colonialidade em nosso pensamento. Quando usamos termos como “estados falhos”, como “estados incapazes”, “inseguros”, “rebeldes”, estamos estabelecendo esses patamares de distinção entre um tipo de existência humana e outra. Por isso, pode-se falar em uma esquizofrenia para se referir ao fato de que, para defender a vida humana, se mate cada vez mais humanos, como fez o governo do Nobel da Paz Barack Obama em países como o Iêmen.

Porém, apesar de seu tom negativo, o livro de Fanon não é de todo desanimador. Embora tensa, é uma obra que chama à ação, à reflexão sobre a realidade dos bilhões de pessoas do mundo que não estão no centro da política interestatal. E, num momento em que a Europa, sobretudo, se encontra fisicamente com a conta da sua dominação violenta do resto do mundo na figura dos milhares de refugiados chegados ao continente que fogem de problemas com raízes coloniais, parece uma obra de fundamental importância para compreender e questionar as Relações Internacionais.

Referências

FANON, Frantz. Los condenados de la tierra. Trad. para el español de Julieta Campos; trad. del epílogo Eliane Cazenave Tapie Isoard; prefacio de Jean-Paul Sartre; epílogo de Gérard Chaliand. 3ª ed. México: FCE, 2001.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 22.ed. São Paulo: Edições Loyola, 2012.
MASSEY, Doreen. Um sentido global do lugar. In: ARANTES, Antonio A. (org.). O espaço da diferença. Campinas, SP: Papirus, 2000.

* Gustavo Glodes Blum é Internacionalista e Mestre em Geografia. Professor do curso de Relações Internacionais do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA), é especializado em Geografia Política e Política Internacional Contemporânea. E-mail para contato: blum.gustavo@hotmail.com.
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sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Da teoria à prática: institutos europeus de relações internacionais são convidados a traçar uma estratégia global para a Europa — e convidam todo mundo a participar



Foto: portal da European Global Strategy, lançado em outubro de 2012.

Por Gabriela Prado

É o sonho de qualquer um que estuda ciências humanas e sociais: ser ouvido pela classe política a ponto de, eventualmente, colocar suas ideias e estudos em prática. E eis que a oportunidade surgiu: institutos de Relações Internacionais e política da externa da Espanha, Itália, Polônia e Suécia foram convidados pelos respectivos Ministros do Exterior para traçar uma Estratégia Global Europeia (EGS). O objetivo do processo, que começou em julho deste ano, é estimular o debate sobre quais devem ser os rumos da Europa nos próximos anos.

Entre julho de 2012 e maio de 2013 os quatro institutos organizadores (Real Instituto Elcano – Espanha; Instuto Affari Internazionali – IAI, Itália; Polish Institute for International Affairs – PISM, Polônia e o Utrikespolitiska Institutet – Ui, Suécia) irão promover seminários e painéis para fomentar as discussões. O documento final, a ser publicado em maio de 2013, será elaborado por um pequeno grupo de autores e vai então ser encaminhado aos Ministros das Relações Exteriores, encarregados de transformar as estratégias traçadas em políticas que serão submetidas à Comissão Europeia. O processo vai passar por discussões sobre o que pressupõe uma estratégia, quais são os desafios para o continente europeu, quais são os valores e fundamentos de uma estratégia global e, finalmente, quais os instrumentos e passos para tal. Além destes eventos “oficiais” organizados pelos institutos-sede, no entanto, será possível às instituições parceiras criarem e promoverem os próprios eventos e contribuir para o debate.

Um dos objetivos, aliás, é ter a contribuição de outros institutos e centros de estudo — na Europa e fora dela. O centro de contato com o projeto é o portal criado (http://www.euglobalstrategy.eu), onde é possível acessar os documentos publicados, ver os eventos, participar dos debates e inclusive enviar contribuições e artigos próprios. Segundo Anna Jardfelt, a diretora do Ui, as contribuições externas serão bastante importantes para que o resultado reflita de fato o “pan-europeísmo”, por assim dizer, que caracteriza o processo. Essa noção provavelmente influenciou a mudança do nome da iniciativa, de “European Security Strategy” para “European Global Strategy”: o foco deve sair das questões de segurança apenas para focar nos “valores europeus” e outros desafios que vão além da segurança internacional.

Um projeto dessa magnitude inevitavelmente divide as opiniões e causa controvérsias. Na reunião de apresentação em 18 de outubro, em Estocolmo, o diretor de pesquisa do Ui, Johan Eriksson, reconheceu o desafio mas lembrou que a oportunidade é extremamente significativa e completou: “a ideia é produzir um documento corajoso e sem medo de ser controverso”, que mostre o que realmente precisa ser feito ou pensado, sem se preocupar se isso é politicamente inconveniente. Os questionamentos, no entanto, são vários: o escopo da iniciativa é bastante amplo (talvez até demais?), o tempo é curto e condensar tantas e tão diversas contribuições será tarefa não menos que hercúlea.

Independentemente dos questionamentos, é preciso reconhecer que a oportunidade de apresentar propostas baseadas em anos de pesquisa para a criação de políticas na prática é imperdível. É curioso imaginar, no entanto, a motivação para um movimento como esse. Após a Segunda Guerra Mundial, os civis e acadêmicos de ciências sociais — como as RI ­— foram convidados a participar das decisões de segurança nacional e internacional, antes um domínio puramente militar, porque percebeu-se que o poder nuclear era algo que não poderia mais ser controlado de forma tradicional. A possibilidade de destruição total tornou a segurança um domínio delicado na época e provavelmente trouxe um certo pânico para os então responsáveis pela questão. Fica a questão: terá sido um desespero análogo o que levou a essa iniciativa, ou apenas a noção de que a academia realmente tem muito a contribuir nessa área? Independentemente da resposta, o importante é não perder a oportunidade — e garantir que as propostas reflitam de fato temas e pontos relevantes e por vezes ignorados pela burocracia.



Gabriela Prado é internacionalista formada pelo Unicuritiba em 2009 e concluiu em 2012 o MSc International Business Negotiation pela École Supérieure du Commerce de Rennes. Atualmente mora em Estocolmo e é membro do Utrikespolitiska Institutet (Swedish Institute of International Affairs). 
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domingo, 1 de maio de 2011

A história ainda não acabou!

Prof. Dr. Carlos-Magno Esteves Vasconcellos


Em 1989, eufórico com a queda do Muro de Berlim, o ensaísta burguês-liberal norte-americano Francis Fukuyama bradou em alto e bom som para o mundo ouvir o The end of history, anunciando o triunfo definitivo do capitalismo liberal e da democracia burguesa como formas de organização econômica e política da sociedade mundial. No final daquele mesmo ano, líderes internacionais da democracia burguesa pareceram ratificar as premonições de Fukuyama, conspirando a favor da construção do Consenso de Washington. Mas, em 2000, frente às frustrações sócio-econômicas nascidas do capitalismo neoliberal pós Consenso de Washington, as Nações Unidas se viram forçadas a refutar os presságios de Fukuyama, anunciando a ‘Declaração do Milênio’, onde convidava o mundo a mudar os rumos de sua história.

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terça-feira, 19 de outubro de 2010

Proteção do bem público global não é filantropia: o conflito entre interesses individuais e coletivos no regime de mudanças climáticas.

Roberta Zandonai

O ano de 2010 começou com a publicação de dados alarmantes da Agência Espacial dos EUA (NASA) a respeito das condições climáticas mundiais. De acordo com o órgão, a década passada foi a mais quente desde 1880, e os anos de 2005 e 2009 apresentaram as maiores temperaturas médias desde o início do século XX. A situação vivida no cenário internacional apenas confirmou esta tendência. A Rússia, por exemplo, enfrentou um verão extremamente quente e seco, que aniquilou suas plantações de trigo e gerou crise na economia nacional. Já no Paquistão e na China, água é o que não faltou durante as enchentes sem precedentes na história destes países. E, mesmo no Brasil, um período bastante incomum de chuvas fortes atingiu diversas regiões durante os primeiros meses do ano e foi seguido por uma forte seca marcada por queimadas nos parques e reservas nacionais.


De acordo com previsões da comunidade científica, principalmente dos membros do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), a situação pode piorar muito mais se medidas drásticas não forem tomadas. Isso exige a ação conjunta de todos os Estados, principalmente dos maiores emissores de gases de efeitos estufa (Estados Unidos, União Européia, representada como bloco, e China). O que se vê, porém, é a dificuldade de países com características distintas chegarem a um consenso. Mas, se a questão é tão relevante, por que um acordo é difícil?
Nas últimas décadas, ganhou força no cenário internacional o consenso de que a elevação da temperatura terrestre é causada diretamente pelas atividades humanas, principalmente as geradoras de gases de efeito estufa (GEE), seja pelo desmatamento, matriz energética concentrada em emissões de carbono ou por processos industriais. As conseqüências não são sentidas apenas em âmbito local e regional, mas afetam todos os países, razão pela qual a questão ambiental passou a ocupar uma posição privilegiada na agenda internacional - principalmente após a primeira Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente em 1972. A partir daí, uma série de eventos foram organizados para discutir o desenvolvimento sustentável, e novas organizações internacionais surgiram: UNEP/PNUMA, IPCC, Convenção Quadro da ONU sobre Mudanças do Clima - CQNUSMD, etc.
No entanto, em 2001, o presidente eleito dos EUA, George W. Bush, retirou o país das negociações do Protocolo de Kyoto, até então o primeiro acordo global de cooperação para reduzir a poluição atmosférica por meio do estabelecimento de metas e mecanismos específicos. A decisão marcou um enorme retrocesso na tentativa de consolidar uma nova ordem mundial e abalou as esperanças daqueles que lutavam pela causa, pois a superpotência é responsável por quase um quarto das emissões globais de GEE e o seu não-comprometimento pode anular os esforços de todos os demais países signatários do Protocolo.
O motivo apresentado à época pelo governo estadunidense era de que o cumprimento dos termos afetaria a economia do país - e aí chegamos ao ponto central no debate da problemática ambiental no mundo moderno: as exigências internacionais divergem do interesse nacional de alguns países e de grandes empresas transnacionais com grande poder de influência. Como afirma Viola (2002, p. 27), “o benefício coletivo exige cada vez mais ações que contrariam os interesses de cada Estado individual”, mas os tomadores de decisão ainda não perceberam essa lógica.
Com o fim da Guerra Fria e a emergência de novos atores e temas nas Relações Internacionais, os problemas estão se tornando cada vez mais internacionalizados (tendo características transnacionais). O processo é acelerado pela revolução dos meios de comunicação e essa multiplicidade de atores aumenta a complexidade das negociações, que, em pleno século XXI, devem ser regidas pela cooperação e criação de novas diretrizes, seja no âmbito comercial, empresarial, e principalmente ambiental.
No que diz respeito à maior eficiência do regime de mudanças climáticas, a cooperação não se restringe apenas a parte jurídica, mas implica algo muito maior: uma profunda transformação na maneira como se entende consumo, energia, transportes, alimentação, moradia, ou seja, uma mudança profunda na relação do homem consigo mesmo e com o ambiente que o cerca. Uma nova consciência é necessária. Porém, no âmbito das grandes tomadas de decisões políticas internacionais, os governantes ainda resistem em ceder em troca de um bem coletivo, qual seja, a proteção do meio em que vivem. Economias intensivas em carbono acreditam que têm muito a perder com um novo sistema baseado em baixas emissões de GEE, mas não conseguem perceber que o dano pode ser muito maior se nada for feito.
No caso dos Estados Unidos, por exemplo, todo o modelo de fornecimento de energia e transportes teria que ser revisto, uma vez que o automóvel individual movido a combustível fóssil é o principal meio de locomoção e a maior parte da energia do país é produzida a partir de usinas termoelétricas que queimam carvão e, secundariamente, petróleo. De acordo com o último Assessment Report, produzido pelo IPCC em 2007, o país é responsável por 20% das emissões globais de CO2, perdendo apenas para a China, cujas emissões correspondem a 22%, com um crescimento anual de 8%, derivado principalmente da ineficiência de sua matriz energética (VIOLA, 2009, p. 20).
Apesar da posição estadunidense, há luz no fim do túnel: o desinteresse pelo meio ambiente, que predominou no país oriental durante todo o século XX, dá espaço atualmente para um novo posicionamento, que inclui investimentos em novas tecnologias menos poluentes. Japão e União Européia também exercem um papel de liderança, tanto no âmbito interno (por meio de investimentos em energias renováveis e em meios de transporte mais eficientes, por exemplo) quanto externo (transferência de tecnologias, persistência em chegar a acordos internacionais, investimento em projetos estrangeiros, entre outros). Outros Estados emergentes, como o Brasil, também têm desempenhado um importante papel, principalmente junto às nações em desenvolvimento ou atrasadas.
De outro lado, porém, regimes fundamentalistas e monárquicos, ou membros da Organização dos Países Produtores de Petróleo (OPEP), tendem a rejeitar ou apoiar de maneira bastante restrita as propostas da CQNUMC.
Neste grande tabuleiro em que cada jogador tenta tirar suas vantagens, o nível de cooperação necessário para minimizar as atuais conseqüências da alteração do clima, bem como para instaurar uma sociedade de baixo carbono e evitar desastres futuros, parece um horizonte ainda distante. Tudo é uma questão de interesse, e enquanto o interesse individual - seja dos Estados, das empresas, das organizações e dos indivíduos – prevalecer sobre o interesse público global, os debates não devem resultar em ações práticas e efetivas. Neste caso, uma projeção pessimista poderia caracterizar como uma abstração o conceito de sustentabilidade definido pelas Nações Unidas, que seria “o atendimento das necessidades das gerações atuais, sem comprometer a possibilidade de satisfação das necessidades das gerações futuras”.

Referências:
VIOLA, E. O Brasil na Arena Internacional da Mitigação da Mudança Climática 1996-2008, Centro de Estudo de Integração e Desenvolvimento, 2009.
VIOLA, E. O Regime Internacional de Mudança Climática e o Brasil, In. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 17, n. 50, São Paulo, 2002.

6 período - Relações Internacionais - UNICURITIBA
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