Gisele Passaura*
Não
há uma resposta única e completamente satisfatória no que diz respeito à legitimidade
das formas de modificação genital feminina, haja vista que o debate faz-se
acalorado no ocidente. Todavia é mister verificar se no discurso ocidental
contrário a essas práticas não se encontram contradições ou até mesmo
resquícios de uma história concernente à sua própria noção de sexualidade assim
como do papel feminino nessas sociedades.
Para
dar início ao exame dessas práticas culturais é fundamentar, esclarecer a
nomenclatura utilizada, uma vez que há uma gama de nomes referentes às mesmas,
a saber: mutilação feminina, circuncisão feminina, cirurgias genitais femininas,
cortes femininos e modificações corporais. Para fins do presente artigo,
optou-se pela abordagem carregada do menor julgamento etnocêntrico. Ao longo da
apresentação utilizar-se-á, assim, a definição apresentada por Kratz (2003, p.
274-275) Modificação Genital Feminina (MGF). Contudo sempre que possível, a MGF
será definida por seu termo médico.
A
MGF não pode ser entendida como uma prática única difundida entre os diversos
países praticantes. Muito pelo contrário, a MGF é encontrada nas mais variadas
formas. Sendo desde cerimônias públicas entre todos os membros da comunidade,
até um rito reservado apenas aos membros familiares. Podendo também ser
realizada somente alguns dias após o nascimento, como até no início da
adolescência.
Atinente
à modificação corporal, as variações também são significativas, todavia de
maneira generalizada pode ser enquadrada em três principais categorias, a
saber: suna, clitoridectomia e infibulação. A primeira constitui-se na retirada
da superfície do clitóris. Já na clitoridectomia há a remoção do clitóris e
muitas vezes parte dos lábios. Enquanto que na infibulação há, além dos
procedimentos anteriores, a suturação dos lábios internos deixando apenas a
abertura da uretra e um espaço para que a menstruação ocorra normalmente.
Uma vez vistos os termos técnicos faz-se necessário
tentar compreender os motivos de um discurso ocidental tão calorosamente
contrário à MGF. Não seria esse posicionamento um reflexo da própria noção de
sexualidade feminina no ocidente? Em grande medida, o ocidente apresenta
dificuldade em compreender a MGF como uma prática muito mais complexa do que
simplesmente a imposição do poder masculino sobre a sexualidade feminina. Mas
qual a origem desse pensamento?
Cabe aqui lembrar, que na Europa e nos Estados
Unidos práticas semelhantes eram realizadas nas mulheres para combater o que se
acreditava então, serem distúrbios mentais. Na Inglaterra do século XIX, a
clitoridectomia e a histerectomia (remoção dos ovários e do útero) eram
realizadas para combater sintomas do que era considerado sinal de demência, a
saber: inclinação homossexual, masturbação, hiper-sexualidade e histeria. Nos
Estados Unidos por sua vez, práticas de infibulação e clitoridectomia eram
desempenhadas até o primeiro quartil do século XX. Sendo o primeiro para
combater atos de masturbação e o segundo para tratar epilepsia, catalepsia,
melancolia e até mesmo cleptomania (WALLEY, 1997, p.494).
Essas técnicas eram relativamente comuns e
pertinentes ao pensamento da época, especialmente se comparado ao que Freud
afirmou em 1925 “a eliminação da sexualidade clitorial é uma precondição
necessária para o desenvolvimento da feminilidade” (WALLEY, 1997, p.494). Ou seja, talvez o discurso
ocidental contrário a MGF seja fruto de sua própria história sexual feminina,
acarretando assim, um olhar etnocêntrico sobre a MGF como um momento a ser
esquecido e eliminado de sua própria evolução histórica.
Outro aspecto relevante a ser mencionado é a
dicotomia maniqueísta do pensamento ocidental concernente às práticas culturais
de MGF. Já que notadamente o discurso ocidental evidencia sua “racionalidade”
em detrimento da “tradição” dos países praticantes da MGF. Seguindo essa linha
de raciocínio pode-se ainda encontrar outras relações antagônicas no discurso,
a saber: ciência e superstição, civilização e barbárie, liberdade e repressão,
conhecimento e ignorância. (WALLEY, 1997, p. 422-423). Ou seja, essa divisão acaba impondo o contraste entre
dois grandes blocos: “nós” não praticantes e “eles” praticantes.
Todavia, será que essa divisão apresenta-se, de
fato, tão distinta? Não haveria práticas ocidentais que de certa forma
demonstram a tão temida “dominação masculina” sobre as mulheres consideradas
“livres” nesse discurso?
Koptiuch, por exemplo, explora a noção de “defesa
cultural” ao relatar o caso de um cidadão chinês que em território
estadunidense assassinou sua esposa após descobrir sua infidelidade. Seu
advogado apresentou o caso como sendo um reflexo de seu pensamento cultural, o
que resultou na menor pena possível, de apenas cinco anos de prisão. Koptiuch,
contudo, aponta que caso o mesmo homem houvesse sido julgado na China, teria
sido condenado à morte (KOPTIUCH, 1996, in WALLEY,1997,p. 426). Ou seja, em território
“racional” dos Estados Unidos, a mesma “exploração feminina” tanto criticada
pode também ser evidenciada.
Retornando ao discurso binário antagônico entre “nós”
e “eles”, é subentendido nessa lógica que as mulheres praticantes da MGF apenas
o fazem por possuir pouco conhecimento/escolaridade enquanto nas sociedades
ocidentais esse esclarecimento impediria que as mulheres desempenhassem rituais
semelhantes. Entretanto, mesmo nesse ambiente “iluminado” exemplos similares às
práticas ritualísticas podem sim ser encontrados.
Para alterar o “prazer sexual” muitas mulheres
ocidentais submetem-se a práticas de modificação genital tais como: reparação
do hímen, estreitamento vaginal, circuncisão do “capuz” clitorial, assim como a
redução dos lábios vaginais. Outro exemplo decisivamente simbólico é a tão
difundida prática de implantes de silicone, na qual, claramente trata-se de
adequar o corpo feminino ao ideário masculino de beleza nessas sociedades.
Curiosamente, quando a mulher ocidental resolve submeter-se ao implante, essa
escolha é considerada como fruto da decisão feminina e não da “dominação
masculina/patriarcal”.
Por que então, quando mulheres resolvem participar
de rituais de MGF como sendo um universo muito mais amplo do que simplesmente o
fator sexual ou de subserviência feminina, o discurso ocidental muda
drasticamente?
Antes de emitir um julgamento sobre práticas
alienígenas ao que é considerado “correto” é primordial compreender as origens
desse discurso assim como as contradições que o mesmo possa evidenciar.
Porquanto um preconceito, baseado em noções ocidentais de sexualidade e de subjugação
feminina, pode não se enquadrar no que as sociedades praticantes da MGF
realmente consideram sobre essas práticas, cujas funções são muito mais sociais
e políticas do que de gênero.
Gisele Passaura é
internacionalista pelo Centro Universitário Curitiba e pós-graduanda em
Antropologia Cultural na Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
Referência
bibliográficas
WALLEY, C.J. (1997) Searching for "Voices": Feminism, Anthropology, and the
Global Debate over Female Genital Operations. Cultural Anthropology, Vol. 12, No. 3, pp. 405-438
KOPTIUCH, K. (1996) Cultural
Defense and Criminological Displacements: Gender, Race and (Trans)Nation in the
Legal Surveillance of U.S. Diaspora Asians. In Displacement, Diaspora and Geographies of Identity. Smadar Lavie
and Ted Swedenburg, eds. Pp. 215-233. Durham, NC: Duke University Press.
KRATZ, C.A. (2003) Circumcision,
pluralism and dilemmas of cultural relativism. In: Applying anthropology: an introductory reader. Mcgrow hill.
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