Realocação de secretária de Cultura, incertezas sobre a nomeação de um novo ministro da Saúde, presidente do STF passando por cirurgia e reunião do alto escalão do governo regida por palavras de baixo calão. Tudo isto já configuraria uma das semanas mais agitadas do noticiário político brasileiro, não fossem as sucessivas escaladas autoritárias do executivo e o crescente número de mortos pela pandemia do novo coronavírus que põem ainda mais dúvidas sobre o futuro no curto-prazo do Brasil.
Desde a demissão do ministro de Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, no final de abril, as expectativas dos bastidores de Brasília se voltaram para a divulgação da gravação da reunião ministerial do dia 22 daquele mês. Moro saiu do governo alegando que sofreu pressões do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) para que interferisse politicamente na Polícia Federal, a fim de proteger a família do presidente de investigações. O ex-juiz alegava à época de sua saída que o conteúdo da reunião, quando divulgada, corroboraria sua versão dos fatos.
Acontece que, pelo descalabro da conferência, o embate entre Moro e Bolsonaro ficou em segundo plano. A fala do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles (recém expulso do NOVO), foi duramente criticada pela ativista Gręta Thunberg. Salles, que já se envolveu anteriormente em polêmicas sobre as queimadas na Amazônia, disse que o governo deveria se aproveitar da pandemia para “passar a boiada” na desregulamentação ambiental. Para o ministro, o foco total da mídia na cobertura dos novos casos e mortes pela covid-19 facilitaria as ações ruralistas do governo. A ambientalista sueca repercutiu matéria da agência inglesa Reuterspara atacar Salles em sua conta do Twitter: “imaginem as coisas que ele disse fora da câmera”. Thunberg lamenta que o “nosso futuro comum” é um “só jogo” para eles, se referindo aos defensores da pauta bolsonarista para o meio ambiente.
A publicidade da reunião ministerial repercutiu na Espanha como “o momento mais secreto” do governo que deixaria “qualquer um boquiaberto” pelo “coquetel explosivo de ingerências e palavrões”. Aparte dos 40 insultos, para o El Paíso vídeo revela as ameaças gravíssimas, em especial as proferidas pelos ministros da Educação e dos Direitos Humanos, Abraham Weintraub e Damares Alves, que desejavam prender os ministros do Supremo Tribunal Federal e os governadores oposicionistas ao executivo nacional. O jornal destaca que a revelação do vídeo faz ganhar forças as petições de impeachment já protocoladas contra Bolsonaro, que até agora “sequer foram debatidas” na Câmara dos Deputados.
Na Inglaterra, o The Guardian deu especial destaque às implicações legais da possível interferência de Bolsonaro na PF para resguardar seus filhos. O jornal destaca a quantidade de palavrões ditas pelo presidente e seus ministros como uma “frustração" e como sinais de “inabilidade política”. A popularidade de Bolsonaro está “flácida”, segundo The Guardian,desde a saída de Moro, estopim para a divulgação do vídeo “escondido”. A matéria finaliza repercutindo as falas do ministro Salles que, ademais da defesa da desregulamentação, disse que “não precisava do Congresso pra nada”. Os ingleses entrevistaram a porta-voz da Greenpeace Brazil, Luiza Lima, que rebateu as falas do ministro. Para ela, Salles acha que pessoas morrendo nas filas dos hospitais é “uma boa oportunidade” para avançar em projetos destrutivos.
O Diário de Notícias foi mais enfático quanto a interferência do presidente na Polícia Federal: “vou interferir e ponto final”, frase de Bolsonaro, foi destaque logo abaixo da manchete. O jornal português também dá bastante enfoque aos palavrões do presidente, em especial os endereçados aos governadores de São Paulo e do Rio de Janeiro, João Dória (PSDB) e Wilson Witzel (PSL), respectivamente. O Diáriolembra que, embora não investigados formalmente no caso, os nomes dos filhos do presidente, o senador Flávio Bolsonaro (REPUBLICANOS) e o vereador carioca Carlos Bolsonaro (REPUBLICANOS), têm aparecido nas apurações do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL), ainda em 2018.
Der Tagesspiegel é menos alarmista. Na Alemanha, o vídeo recheado de palavrões mostra um presidente “beligerante” que se mantém “arremessando bombas”. Toda a repercussão desta nova crise institucional, contudo, “pouco provavelmente” terá forças para mudar os rumos da política brasileira, afirma o jornal. Já o Deutsche Welle deu destaque ao que chamou de “claro recado" de Jair Bolsonaro ao ministro decano do STF, Celso de Mello, que levantou o sigilo da gravação da cúpula ministerial. O presidente postou, em redes sociais, o artigo 28 da lei 13.869/2019, conhecida como a lei contra o abuso de autoridade.
DW classificou o comportamento de Bolsonaro e seus ministros de “agressivo e paranóico”.
No Canadá, o Le Journal de Montréal deixou a crise política brasileira de lado para falar da pandemia. Lamentando os mais de 20 mil mortos pela covid-19 no Brasil, o jornal foi além que qualquer outro veículo de imprensa ao se referir às crises que o país enfrenta de “Bolsonarovirus”. O canadense destaca que o Brasil concentra 57% das mortes na América Latina e responsabiliza o “extremista de direita” na Presidência da República, que cria “incessantemente” tensões e narrativas. Tão contundente quanto o Montréal foi o editorial (25/05) do londrino Financial Times.O diário de negócios manchetou que “o populismo de Bolsonaro está levando o Brasil a um desastre”.
O Clarín, em Buenos Aires, manchetou a cirurgia a que se submeteu o presidente do STF, Dias Toffoli. O jornal lembra que o jurista deu recentemente uma entrevista ao próprio Clarínem que assegurou “não haver risco de quebras institucionais” em Brasília. Concorrente, o La Nacion demonstrou preocupação ao ver seu país vizinho e principal parceiro comercial alcançar o segundo lugar em número de casos do novo coronavírus, sobretudo com “dias de convulsão política”.Nacion ainda traz outra estatística triste sobre o Brasil, onde a covid-19 mata muito mais jovens adultos que no resto do mundo. São 69% os brasileiros mortos pela pandemia com mais de 60 anos, enquanto na Espanha e na Itália o número bate os 95%, números corroborados pelo americano The Washington Post.
Na capital norte-americana, o Post noticiou os pedidos “urgentes” de Bolsonaro para que o povo volte ao trabalho, mesmo com os hospitais superlotados e a curva de mortos não demonstrando sinal de achatamento. A situação brasileira fez com que o presidente americano Donald Trump banisse entrada de viajantes do Brasil nos Estados Unidos. Para o El País, o veto da Casa Branca aos brasileiros é um “reconhecimento de que a pandemia está fora de controle no país” e uma notícia “indigesta” ao presidente Bolsonaro, a quem o jornal costuma chamar de “homólogo de Trump”.
Os dois países são os que contabilizam maior número de casos e que já somam, juntos, mais de 120 mil mortos pela covid-19.
Outros jornais estadunidenses, nesta semana, publicaram extensas e comoventes reportagens sobre os impactos do coronavírus não na política nem na economia brasileiras, mas na vida cotidiana dos cidadãos comuns. O The Wall Street Journal trouxe o drama dos profissionais da saúde que, mal equipados, veem companheiros de profissão morrendo ao enfrentar o vírus. Na mesma cidade, o caderno de artes do The New York Times estampou Sandra Benites, primeira indígena a ser curadora do Museu de Arte Assis Chateaubriand de São Paulo, o MASP. A guarani ascende a um cargo de enorme importância cultural num momento de hostilidade das políticas ambientais do governo Bolsonaro e do avanço da covid-19 em comunidades indígenas, lembra Times.
Bolsonaro foi à lona de tanto ser alvo da mídia estrangeira e, nocauteado, reagiu afirmando que a imprensa internacional é de esquerda. Disse isto para apoiadores na portaria do Palácio do Planalto (25/05), ignorando a inclinação histórica do New York Time e o apelo do Financial Times ao mercado financeiro.
Com número de mortos que encheriam um estádio de futebol na primeira divisão, o Brasil é manchete no mundo pelas ameaças, insultos e total desencontro político e sanitário. Quando não inventando narrativas e proferindo irreproduzíveis palavrões, Jair Bolsonaro reiteradas vezes cita o versículo 32 do capítulo 8 do Evangelho de João: “conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. Com a divulgação do vídeo da esculhambada reunião ministerial, o Evangelho de Mateus (12:34) parece mais oportuno: “a boca fala do que o coração está cheio”.
Referências:
BOLSONARO diz ter imagem ruim no exterior por mídia mundial ser de esquerda. UOL, São Paulo, 25 mai. 2020. Disponível em <https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/05/25/bolsonaro-diz-ter-imagem-ruim-exterior-por-imprensa-mundial-ser-de-esquerda.htm>
BOLSONARO’S populism is leading Brazil to disaster. Financial Times, Londres, 25 mai. 2020. Disponível em <https://www.ft.com/gideon-rachman>
BRAZIL: blow to Bolsonaro as judge orders release of expletive-ridden video.The Guardian. Rio de Janeiro. 23 mai. 2020. Disponível em <<https://www.theguardian.com/world/2020/may/22/bolsonaro-brazil-cabinet-video-court-judge>>
BRAZIL’S first indigenous curator: “we're not afraid anymore”. The New York Times, São Paulo, 22 mai. 2020. Disponível em <<https://www.nytimes.com/2020/05/22/arts/design/sandra-benites-brazil-museum-curator.html?searchResultPosition=1>>
BRAZIL minister calls for environmental deregulation while public distracted by COVID. Reuters, Brasília, 22 mai. 2020. Disponível em <<https://www.reuters.com/article/us-brazil-politics-environment-idUSKBN22Y30Y?taid=5ec86d61c4c54c00017f1309&utm_campaign=trueAnthem%3A+Trending+Content&utm_medium=trueAnthem&utm_source=twitter>>
BRAZIL’S nurses are dying as covid-19 overwhelms hospitals. The Wall Street Journal. Sao Paulo, 19 mai. 2020. Disponível em <<https://www.wsj.com/articles/brazils-nurses-are-dying-as-covid-19-overwhelms-hospitals-11589843694?mod=world_minor_pos3>>
BRÉSIL: plus de 20000 morts du coronavirus. Le Journal de Montréal, Montreal, 21 mai. 2020. Disponível em <<https://www.journaldemontreal.com/2020/05/21/bresil--plus-de-20000-morts-du-coronavirus>>
CORONAVIRUS: Brasil se convierte en el segundo país con más casos en el mundo. La Nacion, Buenos Aires, 24 mai. 2020. Disponível em <<https://www.lanacion.com.ar/el-mundo/coronavirus-brasil-se-convierte-segundo-pais-mas-nid2368600>>
CORONAVIRUS en Brasil: el presidente de la Corte Suprema está internado con síntomas de Covid-19. Clarín, Buenos Aires, 24 mai. 2020. Disponível em <<https://www.clarin.com/mundo/coronavirus-brasil-presidente-corte-suprema-internado-sintomas-covid-19_0_53RsQW2tb.html>>
CORONAVIRUS seizes Sao Paulo as Trump pondera Brazil travel ban. The Washington Post, São Paulo, 21 mai. 2020.
DIE Verbalgranaten des Jair Bolsonaro. Der Tagesspiegel, Berlim, 23 mai. 2020. Disponível em <<https://www.tagesspiegel.de/politik/chaotische-kabinettssitzung-in-brasilien-die-verbalgranaten-des-jair-bolsonaro/25854436.html>>
ESTADOS unidos suspendem a entrada de pessoas vindas do Brasil por causa do coronavírus. El Pais, Los Angeles, 24 mai. 2020. Disponível em <<https://brasil.elpais.com/sociedade/2020-05-25/estados-unidos-suspendem-a-entrada-de-pessoas-vindas-do-brasil-por-causa-do-coronavirus.html>>
UN vídeo revela una explosiva reunión entre Bolsonaro y sus ministros con amenazas e insultos. El País, São Paulo, 23 mai. 2020. Disponível em <<https://elpais.com/internacional/2020-05-22/un-video-revela-una-explosiva-reunion-entre-bolsonaro-y-sus-ministros-con-amenazas-e-insultos.html>>
VÍDEO de reunião ministerial prova que Bolsonaro quis interferir na polícia. Diário de Notícias, São Paulo, 22 mai. 2020. Disponível em <<https://www.dn.pt/mundo/video-de-reuniao-ministerial-prova-que-bolsonaro-quis-interferir-na-policia-12229879.html>>
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