sábado, 9 de maio de 2020

Opinião: A mercenária política externa norte-americana





Por Fernando Yazbek


Parece roteiro de Ian Flemming com adaptação e direção de Sylvester Stalone. Ex-combatentes norte-americanos saem numa missão secreta de entrar escondidos e armados num país pobre a fim de derrubar o regime de um vilão caricato e anti-democrático. Na segunda-feira (4), o presidente venezuelano Nicolás Maduro anunciou a prisão de Luke Denman (34) e Airan Seth (41), que tentaram invadir a costa da Venezuela vindos de lanchas colombianas. O Palácio de Miraflores trata o caso como uma tentativa estadunidense de infiltrar “mercenários terroristas” que foram pagos para “assassinar os líderes do governo revolucionário”, como pronunciou o Ministro do Interior Néstor Reverol.

          As narrativas do governo bolivariano sempre despertam desconfiança dos países vizinhos e da mídia internacional. A Colômbia trata o incidente como uma encenação infundada e, na terça-feira (5), o presidente norte-americano Donald Trump sentenciou: “nada a ver com o nosso governo”. Reconhecido por 50 países como presidente da Venezuela - inclusive pelo Brasil -, o líder anti-chavista Juan Guaidó alegou que a prisão dos americanos é uma cortina de fumaça utilizada por Maduro para distrair a população. Nesta disputa de alegações, Terek Saab, procurador-geral do Ministério Público da Venezuela, apresentou denúncia contra Guaidó, o acusando de contratar os mercenários num contrato de 212 milhões de dólares com a Silvercorp USA, uma empresa militar privada da Flórida.

          O discurso oficial da Venezuela poderia ter sido rapidamente desacreditado e descartado pelas demais autoridades, dado o histórico de instabilidades políticas, jurídicas e sociais de Caracas. Isto não fossem as declarações de Jordan Goudreau, veterano das guerras no Afeganistão e Iraque, dono da Silvercorp USA. O ex-combatente das forças especiais americanas publicou vídeo em redes sociais no qual diz claramente que havia ajudado a organizar um golpe de estado contra Maduro. Goudreau afirma ter treinado os mercenários e lamenta o fracasso da missão. Outro tiro no pé da intentona golpista foi o depoimento de Juan José Rendón ao The Washigton Post e à CNN. Rendón, que é chefe do comitê de estratégia de Juan Guaidó, confessou na quinta-feira (7) que participava, desde setembro de 2019, de negociações em Miami para levar 800 paramilitares norte-americanos na captura do presidente constitucional Nicolás Maduro.

          Munido do vídeo do boina-verde, das declarações de Rendón à mídia ianque e dos passaportes de Denman e Seth, o governo venezuelano sai, mais uma vez, fortalecido. Mesmo com as sanções econômicas impostas por Washington - ainda mais no contexto da pandemia do coronavírus - Nicolás Maduro consegue manter-se com apoio das forças armadas nacionais e de boa parte da população, que até agora não comprou o discurso do desgastado Juan Guaidó.

          Com cada vez mais evidências do envolvimento da Casa Branca para desestabilização do desafeto chavista, as comparações com tentativas de golpes de Estado na América Latina promovidas pelos Estados Unidos são inevitáveis. Em 2019, Donald Trump aplaudiu a renúncia do presidente socialista boliviano Evo Morales e afirmou que a saída do líder indígena cocaleiro era uma “forte mensagem” aos regimes “ilegítimos” da Venezuela e da Nicarágua. O Departamento de Estado norte-americano , a despeito da comemoração do presidente, negou que La Paz passasse por um golpe de Estado.

          Mesmo com o difundido senso-comum da interferência estadunidense em governos nacionalistas de esquerda latino-americanos, o uso de tropas paramilitares para invasão e violência pode parecer inusual, mas não é. Dois anos depois da Revolução Cubana de 1959, que depôs o ditador cubano Fulgêncio Batista - fantoche dos EUA -, Washington financiou uma ação militar para derrubar Fidel Castro. No contexto da Guerra Fria, um país comunista há 200 quilômetros da Flórida preocupava a CIA, departamento de inteligência americano. Para disfarçar o direto envolvimento dos EUA, a ideia era armar cubanos exilados que fugiram da ilha na Revolução. Quase mil e quinhentos homens foram treinados e paramentados com US$ 13 milhões na costa sudeste americana. O plano era invadir a ilha pela Baía dos Porcos, instalar um fronte de resistência anti-castrista e contar com a aderência do povo. Um passo à frente de J. F. Kennedy, Fidel Castro conteve os ataques pelo ar, por terra e por água favorecido pelo conhecimento do terreno pantanoso e dos recifes e pelos 20 mil homens que defenderam a Revolução.

          De 1912 a 1933, os EUA invadiram militarmente a Nicarágua para impedir que fosse construído, na América Central, um canal que ligasse os oceanos Atlântico e Pacífico - pelo Mar do Caribe - que não tivesse controle norte-americano. Manágua assumiu um status de protetorado de Washington, libertada apenas em 1979 pelo legado guerrilheiro de Augusto César Sandino da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN). Da execução do revolucionário nos anos 30 até a “independência” nicaraguense, o país sofreu por 40 anos a influência estadunidense na política e na economia, somada a presença de fuzileiros navais. Quando Somoza, ditador apoiado pela Casa Branca, foi derrubado pela socialista FSLN no fim dos anos 70, o grupo paramilitar conhecido como “Contras” se insurgiu em oposição ao novo regime. Estes rebeldes receberam apoio militar, financeiro e logístico da administração de Ronald Reagan na Sala Oval. Mesmo com o Congresso dos Estados Unidos proibindo, em 1984, o patrocínio aos milicianos nicaraguenses, o governo americano seguiu financiando os Contras secretamente. Atualmente, a Nicarágua exige pagamento de indenização ordenada pela Corte Internacional de Justiça contra os EUA ainda em 1986.

          Do incentivo ao terrorismo de tropas clandestinas, passando por apoio a ditadores sanguinários e chegando a bloqueios econômicos, a política externa norte-americana se preocupa, na medida em que os EUA pirateiam e desviam respiradores na pandemia do coronavírus, em acusar Cuba, que exporta médicos aos países mais afetados pela covid-19, de tráfico humano. Com 80 mil compatriotas mortos pelo vírus e outros tantos sem acesso à saúde, Donald Trump tem tempo de chamar Daniel Ortega, presidente sandinista da Nicarágua, de déspota e Nicolás Maduro, na Venezuela, de ilegítimo. Venezuela, Cuba, Bolívia e Nicarágua, somadas, não atingem 200 mortes pelo novo coronavírus. Se as ações nas relações exteriores de Kennedy, Reagan, Bush, Obama e Trump fossem feitas por qualquer país latino-americano ou do Oriente Médio, este Estado estaria sob ataques de toda a comunidade internacional. E não somente neste contexto de pandemia, que agrava ainda mais a desumanidade das incursões militares sórdidas feitas na Venezuela e do bloqueio econômico assassino à Cuba.

          Somando derrotas geopolíticas e empilhando cadáveres, os Estados Unidos mostram que são apenas nas produções de Hollywood em que os mocinhos norte-americano salvam o mundo dos vilões bigodudos que querem dizimar a humanidade.



*As opiniões contidas no texto pertencem ao(à) autor(a) e não refletem, necessariamente, a posição do UNICURITIBA.

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