Por Maria Letícia Cornassini**
“ Marta acordou naquele
dia mais nervosa que o normal. As quintas-feiras eram seu dia sagrado. Faziam
37 anos que sua rotina era a mesma nestes dias. A pior parte era sempre
conseguir dormir nas noites de quarta-feira. Sua mente viajava para todos os
possíveis cenários. Será que finalmente encontraria uma resposta?
Aguardar até o horário de sair de casa era
o mais difícil. Não, o caminho até a Praça devia ser o mais difícil. Depois de
tanto tempo fazendo aquele caminho, os passos dados ainda eram movidos pela
esperança. Chega na praça no mesmo horário, coloca seu lenço branco na cabeça e
se une às outras mulheres na marcha em sentido anti-horário. Quando percebe, a
luta desta semana tem fim. Novamente sem respostas. Mais uma semana sem saber a
verdade sobre sua filha e neto. Mais uma semana em que o túmulo do cemitério
nada mais guarda que um caixão vazio, ou melhor, preenchido apenas por memória.
Mais uma semana em que não pode cumprir o papel ao qual aguardava ansiosamente
e que se preparou durante tempos, o de avó.
Volta para casa com uma sensação de vazio.
O vazio de não ter a filha, não ter o neto, não ter verdade. “
Não.
A história contada nos parágrafos anteriores não é verídica. Pelo menos não em
sua totalidade. Embora tenha sido desenvolvida a partir de liberdade criativa,
a trajetória de Marta é baseada na trajetória de diversas mulheres que, há 42 anos
se reúnem na esperança de encontrar seus netos e descobrir o que aconteceu com
seus filhos.
Esse
grupo de mulheres é conhecido como as “Mães da Praça de Maio”. Seu movimento de
resistência teve origem num período da história argentina intitulado “Terrorismo
do Estado”. Nessa época, entre os anos de 1976 e 1983, a ditadura militar
assolava a Argentina e, como qualquer outra ditadura, fazia e permitia imperar
apenas seus próprios ideais. É claro que num contexto normal de democracia, qualquer
tipo de manifestação política, seja ela contra ou a favor do regime em vigor,
teria sido considerada parte do exercício do direito à liberdade de expressão.
Já, no período ditatorial, em que se fazia uso do termo “democracia” apenas
como forma de fazer propaganda governamental, manifestações dissonantes dos
ideais impetrados pelo governo eram consideradas como subversivas.
Foi
justamente essa chamada subversividade que levou o governo argentino a deter e
colocar em “campos de detenção” milhares de pessoas e fazer com que outros
milhares desaparecessem. Diversas jovens faziam parte do contingente de pessoas
presas ou desaparecidas. Dessas jovens, haviam aquelas que eram sequestradas
grávidas e aquelas que eram sequestradas junto com seus filhos. Essas crianças,
quando maiores de 10 anos, eram mortas pelos militares. Já, as que haviam
nascido no cárcere ou raptadas com idade inferior a 4 anos eram enviadas para
serem adotadas por famílias de militares ou famílias de simpatizantes do regime
e até mesmo enviadas a escolas de padres.
No
início dos desaparecimentos, as famílias recorriam ao Ministério do Interior, a
quartéis e a destacamentos da polícia para obter notícias dos familiares. Como
também é característico de governos que reprimem, nenhuma resposta foi dada à
estas famílias. A partir disso, as mães começaram a agir de forma individual e
se encontravam na frente de quartéis e ministérios. Partiu de Azucena
Villaflor de Devicenti a ideia de congregar estas mães em um núcleo voltado
para a busca dos desaparecidos. Acontece que na época em que o grupo das “Mães”
teve inicio, a Argentina vivia sob um Estado de Sítio, em que ficavam
veementemente proibidas reuniões de mais de três pessoas. Frente a isso, o
grupo decide não desistir e passa a realizar marchas, duas a duas, ao redor da
Praça de Maio. Daí o nome e os alicerces deste grupo. Foi também no ano de 1977
que surgiram as “Avós da Praça de Maio”, que, da mesma forma que as “Mães”,
tiveram filhas desaparecidas ao decorrer do regime, contudo, agregavam às suas
denúncias o desaparecimento dos netos- os nascidos nos centros clandestinos ou
raptados juntos com as mulheres-.
Aqui
damos um pequeno salto temporal e avançamos para 1979. Neste ano, a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos da OEA visita a Argentina e o grupo pode,
enfim, realizar uma reclamação formal. A partir deste momento, o mundo passou a
conhecer as atrocidades que eram cometidas pelo governo argentino.
Foi em
1982 que mais um avanço foi realizado pelo grupo: a criação de um banco
genético para comparação de dados. As “Avós”, com a ajuda de uma das
geneticistas de maior extensão nos EUA, Mary Claire King, usaram seu sangue
para tornar possível estabelecer um banco de dados genéticos a ser usado em
casos em que há suspeita de parentesco. Cabe aqui fazer um recorte para expor o
motivo pelo qual a colheita de DNA era realizada a partir do material genético
das avós. Os pais das crianças, filhos das Avós, estavam, em sua maioria,
mortos. Como foi descoberto posteriormente, a maioria dos presos em centros de
detenção clandestinos eram mortos pelos militares, através de torturas e até
mesmo pelos chamados “voos da morte”- eram jogados vivos de um avião
diretamente ao alto mar.
Em 1984 o
banco de dados genéticos foi usado pela primeira vez, no caso de Paula Eva
Logares, após longas batalhas judiciais –naquele tempo, estima-se que 80% dos
juízes em atuação haviam sido nomeados durante o regime. Desde a instituição
oficial do Banco Nacional de Dados Genéticos em 1989, o primeiro banco genético
do mundo, até os dias de hoje, apenas 129 dos 500 netos desaparecidos foram
devidamente reencontrados e tiveram suas verdadeiras identidades reveladas. Dando
continuidade às tradições dos primeiros encontros, até os dias atuais as “Avós”
e as “Mães” realizam sua marcha toda quinta feira, às 15:30, na Praça de Maio. O
que resta disso, além de jovens marcados por uma constante crise de identidade-
por não saberem realmente quem são, por verem a imagem de pai e mãe que
construíram durante sua vida ser substituída pela de raptores-; são dezenas de
outros familiares que viveram sua vida com o propósito de reconstituir a
família que formou. Intenção que muitas vezes não consegue ser objetivada, já
que estas “Avós” se encontram em idade avançada.
Desde seu
começo, a atuação das “Mães” e das “Avós” foi posta em cheque. Afinal, ninguém
naquela época, muito menos naquele governo, imaginava que mulheres pudessem
instituir um movimento de tamanha importância e tão duradouro. O que se tem
hoje, é um movimento que não só serve de inspiração para tantos outros. Tem-se
um exemplo de batalha pela efetivação dos Direitos Humanos. Um marco na
história da ciência genética mundial. Um exemplo de feminismo e sororidade. Acima
de tudo, tem-se a luta pelo direito à identidade e à dignidade, para que
evitemos que no futuro, não só crianças, mas todos seres humanos, sejam
tratados como despojos de guerra.
Creio que
seja difícil para nós, seres sem filhos, compreender o tamanho da motivação que
leva mães e avós a ficarem 40 anos em uma luta constante permeada de incertezas
na busca por uma pessoa. Contudo, creio que seja fácil para nós, seres humanos
dotados de empatia, entender a importância da luta pela verdade histórica de
uma sociedade. Afinal, é só conhecendo-a que se torna possível evita-la.
Fontes:
Documentário
“500: os bebês roubados pela ditadura argentina”
Revista Transgressões: ciências criminais em debate, v. 5, n. 2, Outubro
2017, Natal/RN .“JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: AS “AVÓS DA PRAÇA DE MAIO” COMO
INSTRUMENTOS DO DIREITO À IDENTIDADE E À VERDADE HISTÓRICA ARGENTINA “ - Luana Gonçalves Salignac
** Maria Letícia Cornassini é acadêmica do terceiro período de Relações Internacionais do UNICURITIBA e integra a equipe editorial do Blog Internacionalize-se, Projeto de Extensão coordenado pela Profa. Michele Hastreiter.
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