Por Bruna Wosch*
Muitos já devem ter ouvido falar sobre o conflito na Síria, mas poucos sabem o seu contexto e os seus efeitos. Para tanto, a jornalista Patrícia Campos de Mello produziu uma obra bastante esclarecedora sobre a situação: Lua de Mel em Kobane.
O título já nos remete a uma história romântica em meio ao conflito, entretanto não deve ser visto como um enredo simples com um final de felizes para sempre, como é de praxe dos romances. Trata-se de um ponto de partida utilizado pela autora para abordar o tema da guerra na Síria apresentando um lado pouco abordado pela mídia, a do povo curdo.
A obra explora diversas conjunturas: política, histórica e cultural, que orientam a compreensão dos acontecimentos na Síria com foco direcionado para a situação do povo curdo na região de Rojava.
Os protagonistas são um casal de curdos-sírios refugiados que se conhecem pela internet. Ele, Baran Iso, militante pela resistência da cultura curda, vivia na Turquia por medo da ditadura de Bashar al-Assad. Ela, Raushan, estudante de Direito em Alepo que passou a viver como refugiada na Rússia pouco antes dos conflitos políticos estourarem na Síria.
Recém casados, eles retornam a Síria para junto de familiares estabelecer sua morada. Porém, diante do caos passam a divulgar ao mundo a situação dos curdos na região de Kobane, na busca por apoio e ajuda internacional.
Em breve resumo, a guerra na Síria teve início em 2011, quando uma onda de protestos recaiu sobre o país reivindicando a democracia, o pluripartidarismo, empregos e melhores condições de vida. Motivados pela Primavera Árabe, os movimentos populares se intensificaram em março de 2011, quando jovens foram presos e torturados por pichar um muro com conteúdo de ideias revolucionárias. A repressão violenta do Estado para com os manifestantes contribuiu para a revolta ganhar um aspecto mais agressivo.
Nesse contexto surgem diversos grupos, cada qual com sua ideologia, os principais envolvidos são: as forças armadas do Governo Sírio, leais ao ditador Bashar al-Assad, com o apoio russo e do partido libanês Hezbollah; os rebeldes composto de diversos grupos, que não se encontram unificados possuem apenas um objetivo em comum: a retirada do presidente do poder, sendo o grupo Exército Livre da Síria o maior composto por civis e militares; a Frente al-Nusra organização jihadista salafista que buscam estabelecer um estado islâmico no país, são contrários a força do governo sírio; os Curdos que reivindicam uma constituição do Curdistão, e a liberdade para a manifestação de sua cultura; as elites locais que possuem objetivos mais localizados; e o Estado Islâmico, que busca expandir o califado. Essa diversidade de interesses tornam a guerra civil da Síria um conflito complexo e longe de ter um final. Interpretações mais críticas sobre o conflito o definem como uma nova Guerra Fria, tendo em vista as influências e interesses divergentes das colisões internacionais, Rússia e EUA.
Já a luta do povo Curdo se dá pela resistência de sua cultura. Após o final da Primeira Guerra Mundial a região do Curdistão fora dividido entre os países: Turquia, Irã, Reino Unido(Iraque) e a França(Síria), conforme o Tratado de Lausanne em 1923. Ocorre que, em países como a Síria, que adota o critério ius sanguinis para definir seus nacionais, não reconhece o povo curdo como pessoas de direitos no país. E portanto são reprimidos pelo Governo Sírio.
Quando a atuação dos rebeldes se tronou mais violenta, o Governo Sírio precisou reestruturar estrategicamente as forças armadas o que culminou no abandono expressivo da força militar na região de Rojava. Situação essa aproveitada pelos extremistas do Estado Islâmico que buscam a expansão do califado.
A resistência do povo curdo pode contar com a ajuda do YPG(Unidade de proteção popular) ligada ao PYD(Partido da União Democrática) que controla no momento a região de Rojava. Este último filiado ao PKK(Partido dos Trabalhadores Curdos da Turquia). Unidos em prol da cultura curda buscam evitar situações como a limpeza étnica dos curdos no Iraque pelo Saddam Hussein, membro do Partido Baath.
O grande desafio para os curdos no combate contra o Estado Islâmico era que este possui grande capacidade de operação e recursos. Num comparativo, uma briga entre Davi e Golias. O grupo é autossuficiente conseguindo financiamento com atividades variadas dentre elas: exploração de petróleo no território Sírio e iraquiano, sequestros, crowdfunding(levantamento de recursos através de redes sociais), contrabando de antiguidades, impostos, Jizya (taxa cobrada de Cristãos para que não sejam mortos por não serem mulçumanos), tráfico humano(venda de mulheres) etc. Por fim, a intervenção de forças armadas dos EUA na região de Rojava contribuiu significativamente para que o EI retrocedesse.
A autora explica que o gatilho que a inspirou a escrever o livro fora a repercussão da chocante imagem de Aylan Kurdi, menino sírio-curdo de três anos encontrado afogado no Mar Mediterrâneo. A família de Kurdi tinha fugido da cidade de Kobane que estava sitiado pelo Estado Islâmico, com o objetivo de chegar no Canadá onde tinham parentes. Assim como muitos refugiados sírios a imigração ilegal tornou-se uma alternativa para fugir da guerra e conseguir uma condição melhor de vida. Muitos não têm ideia do perigo ou tendo se arriscam na travessia do Mar Mediterrâneo com a ajuda dos atravessadores. Os coyotes, como são conhecidos, abordam refugiados com a promessa de travessia para a Europa. Boa parte dessas viagens são realizadas durante a noite em botes infláveis superlotados, o risco de afundar é altíssimo e não há colete salva-vidas para todos. O problema da imigração ilegal já era visto por muitos países europeus, mas a situação fora agravada pelo conflito na Síria.
O livro é excelente, possui uma abordagem diferente evitando uma leitura monótona sobre o conflito. Após a explicação de cada contexto a autora acrescenta os relatos por ela capturados em sua viagem a Rojava. São situações variadas vividas pelos habitantes da região e quando encaixados as informações expostas no livro reforçam o discurso do texto, aproximando o leitor de uma situação vivida. Tal estratégia busca afastar a impressão superficial de uma informação que foge a nossa realidade e busca uma maior sensibilidade do leitor pela situação exposta.
Espero que o conteúdo do livro possa expandir seus conhecimentos sobre a Guerra na Síria assim como para mim mostrou uma outra realidade.
Referências:
*Bruna Wosch é egressa do Curso de Direito do Unicuritiba, Advogada(OAB/PR 100.727) e membro do Grupos de Pesquisa "Direito Migratório, em Curitiba, no Brasil e no Mundo".
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