Por: Manuela Paola e Giovana Maciel**
Recentemente, uma nova polêmica em torno de uma declaração do
Presidente Jair Bolsonaro tomou conta das redes. Em breve resumo do que
aconteceu:
1.
Na terça feira, dia 30/07, ele oficializou as
mudanças em três normas de segurança e saúde do trabalho;
2.
Na mesma cerimônia, ele defendeu a “adaptação”
de regras de fiscalização do trabalho análogo à escravidão;
3.
Entre as diversas falas polêmicas, ele afirmou
ter juristas que entendem que “trabalho escravo” e “trabalho análogo ao
escravo” é a mesma coisa;
Claramente, o Sr. Presidente desconhece o tema escravidão e sequer o estudou antes de fazer esta declaração. Importante,
no entanto, esclarecer alguns conceitos para que os colegas (apoiadores ou não
do atual governo) não repliquem o equívoco.
Antes de tudo, já adianto: as duas
expressões são sinônimas, ou seja, falam da mesma coisa!
No Brasil uma história conhecida por
“caso Zé Pereira” foi o divisor de águas no reconhecimento do trabalho escravo.
Em setembro de 1989, José Pereira Ferreira (17 anos) e um companheiro de
trabalho, ao tentar fugir da fazenda em que trabalhavam de maneira forçada e
sem remuneração, junto a outras 60 pessoas, foram emboscados pelos funcionários
da propriedade. Na ocasião, acertaram com tiros a mão e o rosto de José
Pereira, e mataram seu colega, de alcunha “Paraná”.
Devido às lesões permanentes que
sofreu, Zé, já em tratamento e longe da fazenda, resolveu denunciar à Polícia
Federal as condições de trabalho a que foi submetido, visto que ainda havia
inúmeros outros trabalhadores presos no local. Todos foram resgatados e
receberam dinheiro para voltar para casa, mas nada foi feito pelo Estado
Brasileiro no sentido de punir os responsáveis.
Pois bem, ante a omissão estatal, o
caso foi parar na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da
Organização dos Estados Americanos (OEA) em 22/02/1994. Foi somente em 2003 que
o Estado Brasileiro reconheceu sua responsabilidade e assinou um Acordo de
Solução Amistosa, estabelecendo compromissos a serem assumidos pelo país.
Foi só a partir dessa denúncia que diferentes países e segmentos da
sociedade brasileira reconheceram a existência, a gravidade e a peculiaridade
do trabalho forçado no país. Vale ressaltar que em 1992 o então representante
do Governo Brasileiro negou a existência do trabalho escravo no país, indicando
que os casos mencionados constituíam apenas violações na legislação trabalhista.
Apenas em 1995 a atitude do Governo passou a mudar, reconhecendo
oficialmente a existência de trabalho escravo no país. O que acontece é que
preferiu-se adotar a terminologia “trabalho análogo ao escravo”, em uma
tentativa de demonstrar que, embora contenha elementos um pouco diferentes da
antiga escravidão (em especial a negreira), as vítimas também tem seus direitos
violados, em especial o direito à vida, à liberdade, à segurança e integridade
pessoal e o direito à proteção contra a detenção arbitrária.
No âmbito nacional, vários e diferentes termos podem ser usados para
designar o trabalho forçado. No Brasil, o termo mais utilizado para se referir
as práticas coercitivas de recrutamento e emprego é “trabalho escravo”. A
escravidão contemporânea brasileira afeta principalmente o trabalhador no meio
rural, em diferentes atividades ligadas à pecuária, às lavouras de algodão,
milho, soja, arroz, feijão, café, à extração do látex (matéria-prima da
borracha) e de madeira, à criação de porcos e à produção de carvão [...]
Desde
o “caso Zé Pereira”, a expressão “escravidão” passou a ser utilizada para
designar todas aquelas formas de trabalho não-livre, de exploração exacerbada e
desigualdade entre os homens. A partir daí, o trabalho forçado se tornou crime
na legislação brasileira (art. 149, CP).
Pode-se definir trabalho em condições análogas à
condição de escravo como exercício do trabalho humano em que há restrição, em
qualquer forma, à liberdade do trabalhador ou quando não são respeitados os
direitos mínimos para o resguardo da dignidade do trabalhador.
Ou
seja, as duas expressões não causam qualquer confusão aos empregadores, visto
que tratam sobre, exatamente, a mesma coisa! Além disso, dentro da definição,
encontram-se o trabalho forçado, o trabalho degradante e a servidão por
dívidas.
Ainda,
apesar de, em sua fala, Jair Bolsonaro defender que é uma “minoria
insignificante” que explora seus trabalhadores, entre 1995 e 2018, 54 mil
trabalhadores foram resgatados em situação análoga à escravidão, sendo 42 mil
no campo e 12 mil em áreas urbanas.
Legislação
São
inúmeras as legislações que tratam sobre o tema, como, por exemplo, o Pacto
Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de São
Salvador), em seus artigos 6º e 7º, a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos
(Pacto de San José da Costa Rica), em seu 6º artigo, além da própria Declaração
Universal dos Direitos Humanos, mais especificamente nos arts. 5º, 23º e 24º, além
de diversos outros, como as regulações da OIT sobre a matéria.
Internamente,
o já mencionado art. 149 do Código Penal é o responsável pela tipificação, mas
também é possível encontrar disposições do próprio Ministério do Trabalho e
Emprego, como a Instrução Normativa 139/2018. Também, a Emenda Constitucional nº
81, criticada por Bolsonaro por determinar a expropriação dos terrenos
utilizados com essa finalidade exploratória.
Desta
forma, ao contrário do que acredita o ilustre governante, não há o que se falar
em alteração ou “adequação” da lei para à evolução e para “dar garantias ao
empregador”. Quem precisa de garantias é o trabalhador, explorado diariamente
tanto na zona rural como urbana, que tem seus direitos mais básicos ignorados,
enquanto trabalha exaustivamente, sem receber seus salários, tem ter acesso às
mínimas condições de existência e impedidos de sair do local.
Vale
ressaltar que, assim como é no campo a maior incidência do crime, é lá também
que seria o maior impacto negativo em caso de alteração legislativa, para
relativização ou suavização das normas. Isso porque é lá onde estão os mais
vulneráveis à vitimização, tendo em vista a trajetória agrária e de escravidão
no Brasil. Além disso, haveria um enorme risco para o país, inclusive nas suas
relações internacionais, visto que é signatário de inúmeros acordos e tratados
de combate ao trabalho escravo.
Trabalhadores
da Fazenda Brasil Verde[iii]
Registro da carteira
dos trabalhadores (foto: Lunaé Parracho/Repórter Brasil)
A gravidade da fala do presidente nos
faz lembrar a denúncia feita para a Corte Interamericana de Direitos Humanos
contra o Estado brasileiro no caso dos Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde. A
propriedade agrícola, que pertencia aos Irmãos Quagliato, escravizou milhares
de homens entre os anos 1980 e 2000. Foi apenas em 2017 que a procura pelas
vítimas começou, para que a indenização fosse paga. A CIDH pôde apenas intervir
após um longo processo interno, que não foi eficaz no momento de evitar a
situação precária dos trabalhadores, e tampouco conseguiu punir os
responsáveis.
Isto porque
o Direito Internacional dos Direitos Humanos requer o que se chama de esgotamento
dos recursos internos, isto é, uma demonstração de que a Justiça do país
não foi capaz de resolver o problema sozinha. Importante lembrar que a sentença
da corte sobre trabalho escravo foi a primeira aplicada a um país e é a quinta
vez que o Brasil é condenado pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Diversas recomendações foram feitas
pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, mas infelizmente não foram
cumpridas até hoje. Uma feliz notícia é que no começo do ano passado, a Procuradora Geral da República, Raquel Dodge,
assinou a determinação da criação de uma força-tarefa composta para
identificar, denunciar, processar e punir os responsáveis no caso Fazenda
Brasil Verde.
Esse caso serviu para nos mostrar como
os trabalhadores da Fazenda Brasil Verde foram renegados por quase 3 décadas, deixados
à margem e sem nenhuma salvação. A demora da Justiça brasileira para ajudar
essas pessoas e a fala do Presidente da República fazem um paralelo temporal e
deixam explícita a falta de importância do trabalhador e a tolerância ao
trabalho escravo no Brasil.
[i] COSTA, Patrícia Trindade Maranhão. Combatendo o trabalho escravo
contemporâneo: o exemplo do Brasil. Brasília: OIT Brasil, 2010.
[ii] MACIEL, Giovanna de Freitas Maciel. Tráfico de Pessoas: uma violação à
dignidade humana. Trabalho de conclusão de curso apresentado no curso de
Direito do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Orientadora: Profa.
Dra. Karla Pinhel Ribeiro. 2019.
[iii] BARBOSA,
Manuela. Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde. 2019. Trabalho bimestral para a
disciplina de Direitos Humanos apresentado ao curso de Relações Internacionais.
Professor: Thiago Assunção. Disponível em: https://docs.google.com/document/d/1z-3PODi07amhqhNar07sv4XdT73upyLZ3S355MKux5Y/edit?usp=sharing
** Artigo produzido em uma parceria entre o Blog Internacionalize-se e o Blog Unicuritiba Fala Direito. As opiniões aqui constantes pertencem às autoras e não necessariamente refletem o posicionamento do UNICURITIBA.
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