sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Redes e Poder no Sistema Internacional: Uso e abuso da força em operações de paz das Nações Unidas

A seção "Redes e Poder no Sistema Internacional" é produzida pelos integrantes do Grupo de Pesquisa Redes e Poder no Sistema Internacional (RPSI), que desenvolve no ano de 2018 o projeto "Redes da guerra e a guerra em rede" no UNICURITIBA, sob a orientação do professor Gustavo Glodes Blum. A seção busca compreender o debate a respeito do tema, trazendo análises e descrições de casos que permitam compreender melhor a relação na atualidade entre guerra, discurso, controle, violência institucionalizada ou não e poder. As opiniões relatadas no texto pertencem aos seus autores, e não refletem o posicionamento da instituição.


Uso e abuso da força em operações de paz das Nações Unidas

Bruno Dal-Prá Araldi* 


Mesmo que ausente no texto da Carta das Nações Unidas de 1945, o estabelecimento de operações de paz sob a bandeira da Organização das Nações Unidas passou a configurar, desde 1948, um dos principais e mais pragmáticos métodos para a Organização das Nações Unidas, em particular a partir da atuação de seu Conselho de Segurança, cumprir com seu papel originário de promover e preservar a paz no sistema internacional.

Com o final da Guerra Fria e a consolidação de uma nova ordem mundial a partir do início da década de 1990, a prática do estabelecimento de operações de paz como instrumento da ONU para atender às novas demandas da agenda de segurança internacional não somente se expandiu, como também passou a adquirir contornos mais complexos (MATIJASCIC, 2010, passim). De acordo com Bellamy, Griffin e Williams (2010, p. 33-39), com a emergência das “novas guerras” e a deflagração e predominância de numerosos conflitos de natureza intra-estatal no sistema internacional a partir dos anos 90, a natureza das operações de paz promovidas pelas Nações Unidas passou por transformações significativas, em direção àquilo que os autores caracterizam como peacekeeping pós-Westphaliano.

Essas mudanças sobre a natureza das operações de paz, sobretudo entre a virada das décadas de 1980 e 1990, tanto de caráter quantitativo (tendo-se em vista o aumento significativo de operações de paz sustentadas pela ONU a partir do final do século passado), quanto qualitativo e normativo (BELLAMY; GRIFFIN; WILLIAMS, 2010, p. 97), podem ser explicadas por uma variedade de fatores. Em primeiro lugar, o fim da Guerra Fria e o período de transição da ordem global e a subsequente (embora relativamente breve) “desordem” no sistema internacional, em especial com o surgimento das “novas guerras” e suas peculiaridades, aumentou a demanda global por operações de paz enquanto mecanismo de solução de conflitos e promoção da paz no sistema internacional pelas Nações Unidas. Além disso, essa transformação também se deve ao aumento do interesse de governos nacionais em contribuir (com o envio de agentes de segurança, equipamentos e financiamento) com operações de paz mais complexas, mesmo em regiões sem alguma espécie de importância estratégica.

Para Bellamy, Griffin e Williams (2010, p. 94-96), isso pode ser explicado por ao menos quatro fatores gerais: o aumento da “permissividade” e o descongelamento do Conselho de Segurança com o esfacelamento do bloco soviético; os efeitos da globalização contemporânea, notadamente a aceleração da democratização, a propagação da pauta de Direitos Humanos; o efeito midiático sobre a política dos países em matéria de crises humanitárias (efeito CNN), que fizeram com que os governos identificassem as operações de paz como “politicamente desejáveis” (ROBINSON, 2002 apud. BELLAMY; GRIFFIN; WILLIAMS, 2010, p. 95); e a maior capacidade militar e interesse de diversas forças armadas em participar das operações de paz com o fim dos desafios estratégicos presentes durante a Guerra Fria.

No entanto, apesar de um sucesso inicial significativo em alcançar os objetivos estabelecidos em seus mandatos, as operações de paz da ONU passaram por uma série de falhas e retrocessos ainda na década de 1990. Com a pressão de episódios que ainda hoje assombram a organização, como o desastre em Mogadishu em 1993, e a passividade das Nações Unidas e suas operações de paz diante do genocídio em Ruanda em 1994 e do Massacre de Srebrenica em 1995, por exemplo, exigiu-se da organização uma readaptação a uma atitude proativa diante dos conflitos internacionais, independentemente de sua natureza.

É importante notar que essa nova fase das operações de paz da ONU como principal instrumento da organização para mediar conflitos e preservar a paz tem apresentado seus próprios dilemas e constrangimentos, sobretudo com a participação de mais atores compondo esses processos nas chamadas missões multidimensionais que não incluem somente o componente militar (SANTIAGO, 2017, p. 4), principalmente a partir dos anos 2000. Notadamente, se antes eram criticadas por sua ineficiência, passividade e negligência, as missões de paz das Nações Unidas passaram a sofrer pesadas críticas em relação a diversos abusos e excessos cometidos por seus peacekeepers: as denúncias e vários relatórios e estudos apontam para problemas como corrupção, negligência, uso excessivo e desproporcional da força, abuso sexual e exploração de menores, bem como a falta de transparência da organização em relação a essas denúncias.

Apesar de reconhecer a existência dessas faltas entre os contingentes a ela submetidos nas missões de paz e manter uma retórica de tolerância zero[1], a organização tem feito pouco mais do que estabelecer ouvidorias específicas e canais de denúncia, bem como recomendado ao Secretariado que solicite a repatriação de unidades militares de um contingente em que se tenha evidências credíveis de abuso e exploração sexual (como é o caso da Resolução do Conselho de Segurança 2272, de 2016). Nesse caso, a questão da impunidade diante das variadas formas de abuso por peacekeepers se configura como um dos grandes obstáculos para as operações de paz contemporâneas.

Essa impunidade dos agentes a serviço das missões de paz das Nações Unidas se deve, principalmente, a duas razões: a deficiência da própria organização em garantir um accountability eficaz da conduta das tropas e pessoal a ela submetidos e, por outro lado, a própria lógica de privilégios e imunidade penal e civil delegada a corpos diplomáticos que, consagrada pelo Direito Internacional, são estendidas aos contingentes compostos por militares, policiais e civis que constituem as operações de paz das Nações Unidas. Essa imunidade, semelhante à dos corpos diplomáticos nacionais, que é atribuída aos agentes a serviço da ONU (mesmo que não funcionários desta) já é prevista desde a Convenção Sobre os Privilégios e Imunidades das Nações Unidas, adotada em 1950 e são reiteradas (embora variem conforme o caso) nas Resoluções do Conselho de Segurança e acordos que estabelecem as operações de paz em determinado país ou área de conflito e que também regulam sobre as capacidades de uso da força (AGUILAR, 2016, passim), ou as “Regras de Engajamento”. 

Essas imunidades legais, portanto, possibilitam a recorrência de práticas de abuso por parte dos peacekeepers, visto que os mesmos passam a estar sujeitos a jurisdição de seus países de origem mesmo enquanto em missão e, em especial (sobretudo no âmbito militar) sujeitos ao julgamento através de seus pares, e não ao ordenamento jurídico do país hospedeiro da missão ou de alguma espécie de tribunal especial. No entanto, essa imunidade também serve como uma espécie de “faca de dois gumes” para a efetividade das operações de paz da ONU, tendo-se em vista que a falta delas poderia desencorajar os países-membros da ONU a contribuir com o envio de tropas, prejudicando assim a disponibilidade de efetivo para as missões.


* Bruno Dal-Prá Araldi é acadêmico do curso de Relações Internacionais do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA), e pesquisador do Grupo de Pesquisa "RPSI - Redes e Poder no Sistema Internacional". 


REFERÊNCIAS 

AGUILAR, Sérgio Luiz Cruz. A Situação Jurídica das Operações de Paz das Nações Unidas. Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 68, pp. 685-706, jan./jun. 2016. Disponível em: <https://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/view/1776> . 

BELLAMY, Alex J.; WILLIAMS, Paul D.; GRIFFIN, Stuart. Understanding Peacekeeping. 2ª ed. Cambridge: Polity Press, 2010. 

CONSELHO DE SEGURANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolution 2272 (2016). Disponível em: <http://www.refworld.org/docid/56e915484.html>. 

MATISJASCIC, Vanessa Braga. As Operações de Manutenção de Paz das Nações Unidas no Início da Década de 1990. Revista Eletrônica de Ciência Política, vol. 1, n. 2, pp. 171-192, dez. 2010. Disponível em: <https://revistas.ufpr.br/politica/article/view/20435>. 

ONU. Convention on the Privileges and Immunities of the United Nations. Disponível em: <http://www.un.org/en/ethics/pdf/convention.pdf>. 

ONU News. UN to enforce ‘zero tolerance’ policy on sexual exploitation and abuse, senior official tells Member States. 5 abril 2016. Disponível em: <https://news.un.org/en/story/2016/04/526082-un-enforce-zero-tolerance-policy-sexual-exploitation-and-abuse-senior-official#.WYGCsOV95aS>. 

SANTIAGO, Ana Elisa. O conceito de paz sob a perspectiva antropológica. 17f. Pesquisa (Doutorado) – Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos (PPGAS/UFSCar), São Carlos, 2017. Disponível em: <http://www.inscricoes.fmb.unesp.br/upload/trabalhos/201789111351.pdf>. 

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[1] A título de exemplo, o Secretariado da ONU já se manifestou acerca do comprometimento da organização com o cuidado com as vítimas e sobre garantir que não houvesse impunidade nos casos de exploração e abuso sexual, à luz de denúncias feitas à agências especializadas nos últimos anos.

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