Artigo apresentado na disciplina de Teoria das Relações Internacionais I, do curso de Relações Internacionais do Unicuritiba, ministrada pela Profa Dra Janiffer Zarpelon. As ideias expressas no artigo não representam a visão da instituição, mas de seus autores.
* Alice G. Springer
O cinema foi uma forma que o Partido Comunista Soviético usou para
tentar ampliar sua influência, o que se casa com o conceito de Soft Power
(Poder Brando), o qual será devidamente explicado neste artigo. A criação da
Mosfilm na década de 1920, o estúdio de cinema mais antigo da Europa, é prova
irrefutável dessa assertiva.
Em um mundo de política cada vez mais globalizada e interconectada, em
que a relação de interdependência entre os Estados se torna mais complexa e se aprofunda
cada vez mais, “manter seu poder” se faz cada vez mais difícil. Coagir através
do poderio militar não mais é o único caminho de se influenciar, e passa a ter
de dividir espaço com recursos mais sutis. Para que o poder seja bem aplicado e
o Estado possa e seja capaz de desequilibrar a balança do poder ao seu favor e
se torne, ou se mantenha, como potência , ele deve aprender a se articular
dentro do Sistema Internacional (SI). Os conceitos de Hard Power e Soft Power
são de autoria de Joseph Nye, utilizados na obra “O Paradoxo do Poder Americano”,
na qual o autor analisa como os EUA se mantêm relevantes no SI. Nye compara o
SI a um tabuleiro de xadrez, com 03 níveis (Hard Power, Soft Power e Smart
Power, que se encontram com a interdependência) e discorre sobre qual seria a
melhor forma de se “jogar”.
O Hard Power e o Soft Power passam a ter um peso igual dentro do Sistema
Internacional. Para que se compreenda como o Hard Power e o Soft Power são
articulados, faz-se necessário entender o conceito destes. Esses dois tipos de
poder podem ser utilizados por atores com participação efetiva nos processos e
acontecimentos no cenário internacional. Os atores se dividem em estatais (aqueles
que têm soberania e legitimidade no uso da força, além do controle sobre a
população e o território), e atores não-estatais (não-soberanos e, sobretudo, ligados
ao tipo de poder relacionado ao Soft Power, como ideologias, tecnologia, conhecimento
e estilo de vida; são, indivíduos independentes ou organizados, como as OIs e
as ONGs).
Joseph Nye escreveu o livro “O Paradoxo do Poder Americano” em 2002, após
o de 11 de setembro, tentando concatenar como a maior potência militar do
planeta se viu tão vulnerável a um ataque dentro de seu próprio território. Nye
ilustra como – ao mesmo tempo em que os Estados Unidos precisam permanecer imponentes
no SI – agir de forma a não eliminar outros atores ou “players” (jogadores) por
completo, sobretudo porque tal atitude internacionalmente não é bem vista, e
também porque ao fazê-lo o Estado se torna cada vez mais alvo de ações do tipo,
ou seja, mais suscetível a ataques terroristas. A forma através da qual os EUA
poderiam manter seu status quo passa
pelos conceitos de Hard Power e Soft Power; este se conecta diretamente com o
livro de Nye de 2004, intitulado “Soft Power: The Means to Success in World
Politics”, obra cujo propósito é elucidar, exemplificar e ampliar conceito e
sua aplicação.
Em sua obra prévia, a de 2002, Nye explica porque o poder americano é
paradoxal, já que dentro do Sistema Internacional os Estados se relacionam em Interdependência
Complexa, teoria proposta por Joseph Nye e Robert Keohane em 2001. Para que se
entenda o paradoxo é fundamental a compreensão da forma pela qual os Estados se
relacionam e, assim, se tornam interdependentes. Nye e Keohane definem tal
interdependência de acordo com três principais características: 1) Múltiplos canais
conectam sociedades. Esses canais são interestatais, transgovernamentais e
relações transnacionais, logo, qualquer ato bilateral ou multilateral que seja
interestatal, transgovernamental ou uma relação transnacional, independente do
ator que a exerça; 2) A agenda das relações interestatais não tem hierarquia, o
que se traduz por não ser a segurança militar prioridade – o tema dessa agenda dependerá
do interesse do Estado em dado momento; 3) Não utilização da força militar de
um governo em direção a outro ator quando a interdependência complexa seja
prioritária. Os dois autores afirmam que uma questão econômica entre parceiros
não deve ser resolvida militarmente, porém, a força militar de um governo
direcionado a outro pode ser utilizada de forma interessante na condição que
esse ato seja focado em um bloco ou ator rival.
O Soft Power é uma ferramenta de poder que não está restrita apenas aos
Estados. Qualquer tipo de ator, seja estatal ou não, pode exercê-lo por ser indireto,
transnacional e não imediato e se caracteriza por sua esfera que engloba
aspectos ideológicos, sociais e culturais. Nye ressalta que o Soft Power é primordial
e essencialmente um meio sedutor, que deve atrair outro ator, seja querendo imitar
quem exerce esse poder, seja buscando atrair, por exemplo, investimentos ou
aumentar área de influência, no caso de Estados. É não obrigar ou coagir a se fazer
o que se deseja, já que esse viés é do Hard Power. Há um cuidado, também, na
questão da influência, pois há maneiras recompensatórias e ameaçadoras de
influenciar. É uma articulação atrativa de poder, cooptadora de pessoas (que querem ser iguais e não são forçadas a
sê-lo). Conceitos ideais (democracia expandida, instituições confiáveis, bom
campo de negócios) e culturais (língua, história, filmes, produtos próprios,
instituições de ensino, tecnologia) são uma forma efetiva de atração. Aliás, atualmente,
democracia, estabilidade, paz, liberdade, pluralismo, autonomia, liberalismo,
igualdade, prosperidade, sustentabilidade, desenvolvimento, instituições
fortes, diplomacia e política externa e, enfim, sistemas seguros, são (bem) vistos
como globalmente positivos, e logicamente são atraentes, sedutores “charmosos”.
A abrangência dos meios de “captura” e sedução deve ser exposta como
inclusiva para qualquer pessoa, caso contrário, afetaria outros conceitos como
a democracia, pois a liberdade e prosperidade são, como já dito, uma forma de
Soft Power. Se bem exercidas e demonstradas, liberdade e prosperidade se tornam
metas de valores que outros Estados e atores podem querer para si de forma
voluntária: “Se eu conseguir levá-lo a
querer fazer o que eu quero, não precisarei obrigá-lo a fazer o que não quer
”.
O “American Way of Life” dos anos de 1930, o efeito da difusão em massa
dos meios de comunicação foi fundamental para que a música e a indústria do
cinema de Hollywood pudessem atingir as mais variadas partes do globo. Com toda
essa influência consumida as outras culturas passaram a absorver aquilo que
mais as seduziam. Nye compreende que o Hard Power, poder militar e econômico, e
o Soft Power, fonte de poder atrativo, ideológico, social e cultural, devem ser
complementares para que um Estado consiga manter sua hegemonia, ou vir a ser um
ator relevante DE FORMA EFETIVA (Smart Power), não podendo se focar em apenas
uma dessas duas fontes de poder. O Sistema Internacional é – como já posto – tridimensional,
onde se dá o encontro do Hard, do Soft e do Smart Power com a INTERDEPENDÊNCIA.
Quanto mais Smart Power, maior eficácia do Estado e maior relevância deste no
mundo.
Da mesma forma a
Revolução Russa tentou propagar seus valores utilizando-se dos mesmos meios (telecomunicações).
Contudo, a “nova Rússia”, a Rússia pujante, a Rússia dos milionários, a Rússia
da nova arquitetura arrojada do centro financeiro de Moscou, a Rússia dos
eventos, das Olimpíadas de inverno de Sochi e da Copa de 2018 com seus estádios
ultramodernos, não deixa de usar o Mosfilm como meio de atração internacional. Fundada
em 1924, ano da morte de Lênin, o Mosfilm (em russo, Мосфильм) sobreviveu
a Stálin, à Guerra Fria, ao fim da União Soviética e até a Bóris Ieltsin; hoje se
tornou um Soft Power utilizado por Putin, e continua forte e atuante. Seus
trabalhos incluem a imensa maioria dos aclamados sucessos da URSS, de
Eisenstein a Tarkovski, passando por até pelo aclamado diretor japonês Akira
Kurosawa, e o épico “Guerra e Paz”, de Bondartchuk, baseado na obra homônima de
Leon de Tolstoi.
Pela quantidade de
obras bem sucedidas, foi premiado pelo governo soviético com a maior honraria
do país, a Ordem de Lênin. Por quase um século, o estúdio Mosfilm de Moscou,
que também figura dentre os maiores da Europa, produziu mais de 2.500 filmes. Como
já dito, Sergei Eisenstein, Andrei Tarkovski e muitos outros diretores
lendários, bem como Fiódor Bondartchuk aplicaram seus talentos ali.
O Mosfilm é
basicamente um estúdio de Hollywood na Rússia, com uma área de 34 hectares. Ele
é aberto ao público e um ótimo lugar para turistas, com visitas pelo estúdio
várias vezes ao dia. Ali existem 15 pavilhões de cinema, o maior dos quais tem
2.000 metros quadrados e hospedou o primeiro baile de Natacha Rostova em “Guerra
e Paz”, além de muitas outras cenas lendárias das telonas. Há, no mais, um
estúdio de música, onde são feitas todas as gravações de orquestras e trilhas
sonoras. Ele foi projetado por Tom Hidley e pode receber uma orquestra
sinfônica grande e coro de 100 pessoas.
Também se podem
encontrar ali fantásticos estúdios de montagem e de engenharia de áudio,
departamentos de figurinos e decoração, um museu, carros antigos em
funcionamento, um complexo de cenário cinematográfico e até uma enorme estufa
para produzir flores para determinados filmes.
O símbolo do Mosfilm é a emblemática gigante escultura
“Trabalhador e Mulher do Kolkhoz”, de Vera Mukhina. A obra de arte pesa 185
toneladas e foi criada para o Pavilhão Soviético na Exposição Mundial de 1937,
em Paris. Ele foi escolhido para representar o cinema russo após a Segunda
Guerra Mundial, em 1947. Assim, Mukhina fez uma cópia em pequenas dimensões da
escultura, cuja imagem aparece nas sequências de abertura e fechamento de todas
as produções do Mosfilm. O primeiro filme a apresentar a vinheta com a obra de
arte de Mukhina foi “Vesná” (“Primavera”), de Grigóri Aleksandrov, de 1947.
Essa imagem da “velha Rússia”, da URSS, não foi retirada e serve de alicerce
para a “nova Rússia” de Putin. Espertamente, o líder russo não nega o passado
de sua nação, o que dá maior respaldo a seu Soft Power. Utiliza-se da
literatura, do teatro, do ballet, dos palácios, museus e monumentos, de
universidades, do centro aeroespacial de Samara e até do prussiano Kant e do
metrô de Moscou para se promover.
O estúdio tem um
enorme arquivo de cenários, documentos de filmes, planos de filmagem, listas de
design e cenários, esboços e descrições de cenas, álbuns de elenco e até
projetos arquitetônicos para cenários de filmagem feitos ali ao longo dos anos.
Há também filmagens e fotos dos cenários. Os arquivos estão abertos ao público
e são um paraíso para estudantes de cinema russo e cinéfilos. É possível
analisar ali os planos de produção de “Solaris” (1972), de Tarkovski, e livros
de casting de outro filmes seus, como
“Andrei Rubliov”, de 1966. Surpreendentemente, os cenários ao ar livre são
normalmente destruídos após a filmagem ter terminado. Assim, as partes mais
bonitas e caras dos filmes não podem ser preservadas.
Felizmente, os velhos cenários de Moscou e São Petersburgo
se esquivaram de demolições. Eles foram cuidadosamente preservados e são usados
por muitos diretores contemporâneos. No ano passado, “Anna Karenina”, outro
clássico de Tolstoi adaptado (mais uma vez)
à 7ª arte, foi rodado ali por Karen Chakhnazarov. Entre um filme e
outro, os cenários ficam abertos para visitação, o que reforça a imagem de uma
“nova Rússia” que se quer criar e seduzir, cooptar.
A fábrica de sonhos
de Moscou fez milhares de filmes que se tornaram clássicos em toda a ex-URSS.
Assim, os trabalhos do Mosfilm chegaram a receber estatuetas do Oscar e outras
premiações importantes. Entre as produções do Mosfilm vencedoras do Oscar estão
“Guerra e a Paz”, de 1967, dirigido por Bondartchuk, “Dersu Uzala”, de 1975, de
Akira Kurosawa, e “Moscou não acredita em lágrimas”, de 1979, de Vladimir
Menchov, entre outros.
Todos os anos, o
Mosfilm realiza cerca de 120 filmes, em diferentes níveis de produção. Prova de
que Vladimir Putin sabe muito bem que Soft
Power pode ser uma arma muito mais sedutora que uma bomba atômica ou drones.
Apesar de muitas acusações de violar Direitos Humanos – sobretudo no que tange
à homofobia – de perseguir opositores políticos, e, de forjar eleições para se
manter no poder, o líder russo usa de outras formas de atração, sendo o Mosfilm
uma delas. Não deixa o Hard Power de lado, e justamente, segue a cartilha de
Nye, conjugando os poderes e usando no 3º nível, no ordenamento internacional
interdependente, a soma de poderes que é o Smart Power.
Referências
Bibliográficas:
Russia Beyond,
blog, Disponível em: https://br.rbth.com/cultura/79881-5-curiosidades-sobre-mosfilm,
acesso em 16/06/2018.
Página do Estadão
de Cultura, Jornal O Estado de São
Paulo,
Disponível em: https://cultura.estadao.com.br/noticias/cinema,mosfilm-90-anos-reune-filmes-do-estudio-russo-na-cinemateca,1592791,
acesso em 16/06/2018.
MARTINELLI,
Caio Barbosa. “O Jogo Tridimensional: o Hard Power, o Soft Power e a
Interdependência Complexa, segundo Joseph Nye” (“The Three Dimensional Game:
the Hard Power, the Soft Power and the Complex Interdependence, according to
Joseph Nye”). Humanas UFPR, 2016.
NYE,
Joseph S. “Soft Power”, New York, Estados Unidos: Public Affairs, 2004.
NYE, Joseph S. “Paradoxo do Poder
Americano”. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
NYE,
Joseph S; KEOHANE, Robert, Power and Interdependence, Estados Unidos, Longman, 2001.
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