quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Filmografia em foco: "A Batalha de Argel sob a ótica construtivista e poscolonialista".


Filmografia realizada na disciplina de Análise em Política Externa e Relações Internacionais, ministrada pela Profa Dra Janiffer Zarpelon, do curso de Relações Internacionais do Unicuritiba. As opiniões expressas no texto não representam a visão da instituição, mas dos seus autores.

                                                                                                     * Emannoel Sampaio Pereira de Souza 
Produção e detalhes sobre o filme
A Batalha de Argel foi realizado em 1965 e lançado em 1966, isto é, apenas três anos após a independência argelina, sendo comissionado pelo próprio governo da Argélia. O filme foi inspirado nas narrativas de um dos comandantes da FLN (Frente Nacional de Libertação), Saadi Yacef, e em suas memórias com o título de Souvenirs de la Bataille d'Alger. O governo argelino resolveu fazer um filme das memórias de Yacef e por conta do membro exilado da FLN Salash Baazi, eles conseguiram entrar em contato com o diretor Gillo Pontecorvo que aceitou fazer o filme. O filme ganhou o Grande Prêmio do Festival de Veneza e o Prêmio das Nações Unidas, além de ter sido indicado para três oscars. As línguas faladas no filme são o francês e o árabe. O filme tem a duração de 121 minutos.

Foi dirigido por Gillo Pontecorvo, diretor italiano, sob grande influência do neorrealismo italiano. O neorrealismo surgiu após a Segunda Guerra Mundial, por conta da das mudanças sociais causadas na Itália, procurando focar em questões como a pobreza, opressão e a injustiça. Além disso, fez uso do chamado cinéma vérité francês (intuito de fazer com que o filme se pareça com um documentário) e do realismo socialista soviético. Pontecorvo foi membro do Partido Comunista Italiano, e fica evidente a intenção política na realização desse filme. Ele era simpatizante dos revolucionários argelinos e considerava a produção do seu filme como uma forma de apoiar a revolução que havia sido realizada, que em sua visão fazia parte de um movimento maior de anticolonização de caráter mundial. Pontecorvo foi fortemente influenciado por Frantz Fanon, psiquiatra e filósofo que nasceu em 1925 na ilha de Martinica sob controle francês, participou da Segunda Guerra Mundial, além de ter participado da FLN na Argélia. Frantz Fanon teve um papel muito importante como pensador em temas relacionados a descolonização e da psicopatologia da descolonização e, além disso, fez parte da FLN tendo um papel muito importante na revolução argelina, também defendendo a violência no processo de descolonização (influência para Pontecorvo que mostrou essa violência de ambos os lados de forma enfática no filme). Atribui-se ao filme até mesmo o fato de ter sido como uma ferramenta para movimentos como Panteras Negras e o IRA no âmbito revolucionário. No âmbito contrarrevolucionário pode-se citar a Escola Superior Militar Argentina que usou o filme como uma forma de instrução aos militares. 

O diretor de fotografia, Marcelo Gatti, também italiano, escolheu fazer a filmagem do filme em preto e branco, usando câmeras de mão e película cinematográfica antiga, com o intuito de reproduzir o aspecto e a sensação de um documentário (cinéma vérité). Além disso, o diretor fez uso de locais na cidade que fizeram parte da revolução, usando também vários atores não-profissionais, com o intuito de criar uma sensação de realismo. O único ator profissional que participou do filme foi Jean Martin – participou da resistência francesa na Segunda Guerra Mundial e foi um paraquedista francês na indochina francesa - que interpretou o Coronel Mathieu. Vale lembrar que o filme foi banido na França por cinco anos e, além disso, rendeu a Jean Martin uma má reputação no país, fazendo com que o ator se encontrasse sob ostracismo no seu país de origem no que diz respeito às produções cinematográficas. O ator já se opunha ao conflito na Algéria e a presença francesa no país, tendo uma posição política inclinada à esquerda. Como foi dito, o filme foi inspirado nas narrativas de Saadi Yacef, e ele participa do filme interpretando a si mesmo como El-hadi Jafar.
                              

Contexto histórico, enredo e roteiro

                                       
O filme se passa na Argélia, em relação a tentativa de independência dos argelinos em relação ao domínio francês, com eventos que compreendem o ano de 1954 a 1962. Anteriormente, a região da Argélia fazia parte do Império Otomano, contudo, em 1830 a França invade a região e obtém controle da mesma. Dessa forma, a maioria da população muçulmana argelina passa a não ter direito a voto e cidadania francesa, sendo a cidadania limitada aos descendentes de europeus e judeus argelinos. Aos poucos, os nacionalistas argelinos, isto é, aqueles que buscavam a independência, passaram a formar movimentos de resistência. Após os eventos que ocorrem no filme, há uma queda no apoio doméstico e internacional à colonização da Algéria, fazendo com que o governo francês fizesse um acordo chamado de “Armistício de Evian”, que reconheceu a independência argelina. 

A Batalha de Argel inicia a película mostrando um indivíduo que acaba de ser torturado. Por não ter aguentado a tortura, acaba revelando as informações que as autoridades francesas necessitavam, se comprometendo também em ajuda-los. Na cena seguinte, vários soldados franceses se deslocam a esta localidade indicada pelo sujeito vítima de tortura. No local, sob a égide de um fundo falso, se encontram dois homens, uma criança e uma mulher – alvos das autoridades francesas -, dessa forma o soldado francês ordena que todos saiam, dizendo que um dos homens seria o último e que tudo estava acabado. O filme tem o seu início pelo final, e as próximas cenas do filme tratarão de explicar em como a sucessão de fatos levou a esse desfecho. O filme não tem um protagonista, mas pode-se dizer que o filme gira em torno do personagem Ali La Pointe e do Coronel Mathieu, Ali representando a luta pela independência e o Coronel representando o domínio francês.

Ali La Pointe é mandado para a prisão e lá conhece o comandante (El-hadi Jafar) de um movimento chamado FLN (Frente Nacional de Libertação). Neste momento, a cena mostra um homem sendo executado por uma guilhotina, com ambos assistindo a tal cena. El-hadi Jafar recruta Ali para o movimento e após saírem da prisão, se tomam algumas ações. A FLN inicia um combate ao uso de drogas e a prostituição, que eram tolerados pelos franceses:

“El-hadi Jafar:…povo da Algéria, a Administração Colonial é responsável não apenas por empobrecer nosso povo, mas também por corromper e degradar nossos irmãos e irmãs, que perderam seu senso de dignidade.  A FLN está iniciando uma campanha para erradicar essa escória e requisita a ajuda e cooperação da população. Esta é a primeira etapa em direção à independência.”  
    
O próximo passo da FLN é o de assasssinar policiais, o que leva a Administração Colonial a tomar a ação de  isolar o distrito muçulmano (Casbah), sob forte vigilância policial, limitando a circulação, permitindo a passagem apenas com a apresentação de documentos. Contudo, após a persistência no assassinato de policiais por parte da FLN, o chefe de polícia se desloca a noite para o distrito e coloca uma bomba em frente a uma das casas. A bomba explode matando várias pessoas e instigando um desejo de vingança. Por conta disso, três mulheres da FLN são instruídas a realizar um atentado como forma de retaliação envolvendo também bombas. Elas se vestem com roupas de estilo europeu e, por conta disso, conseguem passar pelos guardas fazendo a vigilância do distrito. Cada uma delas se desloca para um local diferente no distrito europeu da cidade, posicionando estrategicamente as bombas-relógio. As bombas explodem matando vários franceses e deixando vários feridos, fazendo com que o governo francês tome medidas mais drásticas mandando paraquedistas sob o comando do Coronel Mathieu. 

A primeira cena em que o Coronel Mathieu fala é muito importante para compreendermos a mudança sistemática na abordagem que havia até então contra os movimentos de independência. Coronel Mathieu aponta que esses movimentos são minoritários e devem ser isolados e eliminados. Identifica que esses grupos usam táticas revolucionárias e uma estrutura de organização de pirâmide, isto é, de tal forma que um membro só conhece quem o introduziu ao grupo e mais duas pessoas que ele vai introduzir. 

A FNL espalha a iniciativa de uma greve geral de uma semana na cidade, contudo, Coronel Mathieu tem conhecimento disso e usará isso a seu favor. Após a greve se iniciar, o Coronel inicia uma operação chamada “Operação Champagne” que visava acabar com a greve a força e tentar capturar membros da FNL. O Coronel Mathieu consegue capturar vários membros da FNL e se mostram torturas realizadas a fim de se obter informações. O Coronel então apresenta o prosseguimento para se acabar com a FNL:

“Coronel Mathieu: Algum de vocês já sofreu de cestoda? É um parasita que pode crescer infinitamente, você pode destruir milhares dos seus segmentos, mas contanto que a cabeça permaneça, se reconstrói e prolifera. A FLN é organizada de forma similar, se os “cabeças” não forem eliminados, nós voltamos para o zero. Aqui estão quatro deles.”
           

Os quatro são: Ali La Pointe, El-hadi Jafar, Ramel e Si Murad que representam a liderança da FLN. Ramel e Si Murad aparentemente morrem e El-hadi Jafar é capturado. Restando apenas Ali La Pointe. Com a captura e tortura do indivíduo citado no início, o Coronel consegue chegar até Ali e oferece que ele se renda, porém, não há resposta por parte dele e pelos outros dentro do fundo falso. Então, Coronel Mathieu manda seus homens explodirem o local, matando todos que estavam dentro. Com o fim da FLN, há um aumento relativo no controle por parte da Administração Colonial, contudo, após alguns anos começam a se formar grandes revoltas populares, tomando as ruas. Fazendo com que haja uma reação violenta por parte dos militares franceses, causando várias mortes. O filme se encerra com estes protestos. Tais eventos, em conjunto com a guerrilha no interior do país e nas montanhas, levariam à independência do país em relação ao domínio francês.
     


Análise do filme sob a ótica construtivista e poscolonialista

Como foi citado anteriormente, o filme foi comissionado pelo próprio governo argelino, além de o diretor também ser simpatizante da causa. Considerando isso, pode-se relacionar a teoria construtivista com o filme no sentido de que ele serve como uma forma de expor a visão dos argelinos em relação a colonização e ao conflito. Além disso, serve também como uma forma de legitimizar a independência que acabara de ser conquista, isto é, desenvolver um discurso de que a resistência ao domínio francês foi necessária e pode ser entendida até mesmo como uma tentativa de se criar uma unidade nacional logo após a independência.

Pode-se dizer que o filme não é de total parcialidade, pois, apesar de ter sido comissionado pelo próprio governo da Argélia, ele apresenta no seu decorrer a visão de ambos os lados. Até mesmo pelo fato de não se ter um protagonista definido no filme, abre-se a possibilidade para se dar  uma visão mais ampla do conflito, mostrando as ações da Frente Nacional de Libertação e ao mesmo tempo contrastando com cenas mostrando as ações francesas. Essa dicotomia na obra tem um papel muito importante para se compreender o conflito como um todo.

O tema do poscolonialismo tem grande importância para todos os países que são ex-colônias e buscam estudar a influência dos seus colonizadores, influência que pode ter permanecido mesmo após a independência (seja boa ou ruim). Além de, é claro, compreender o processo de descolonização em si, as suas causas e consequências. Para a Argélia isso é algo muito importante. Como foi supracitado, a Argélia antes de ser colonizada pela França, fazia parte do Império Otomano e anteriormente (apesar de não ter sido citado) fez parte do Império Romano. A Argélia, dessa forma, pela primeira vez constituía-se como Estado-nação, isso traz novas responsabilidades e novos desafios. Não apenas pelo processo de se desenvolver uma identidade nacional (muito importante para um Estado-nação), mas para descobrir até que ponto a cultura, o conhecimento, os costumes argelinos foram afetados pela colonização.

Como já foi citado, Frantz Fanon teve um papel de grande relevância e influência para o diretor (ele mesmo tendo admitido esta influência) do filme, além do seu papel nos estudos relacionados aos processos de descolonização. Fanon via o conflito como algo maniqueísta (bem e mal em termos absolutos), isto é, os franceses eram maus e os argelinos eram bons. Pode-se observar que apesar da influência de Fanon, Pontecorvo não realizou o filme sob essa perpesctiva maniqueísta. Como também já foi citado, Pontecorvo procurou mostrar os atos de violência e a perspectiva de ambos os lados do conflito. Trazendo para o espectador a possibilidade de se debater se a violência é valida, ou até que ponto é válida. Isso pode ser observado nas cenas das três mulheres que posicionam bombas na parte da cidade que é francesa, matando inúmeros franceses inocentes.

O contraste entre a Casbah (distrito muçulmano) e o distrito francês é muito bem representado no filme. Ao mesmo tempo que a Administração Colonial e o Coronel Matieu tentam isolar a Casbah com o intuito de isolar e vencer a FLN, isto abre a possibilidade para que a FLN use táticas de guerrilha e planeje as suas ações, que levam a uma cena emblemática do filme que é os argelinos da Casbah descendo as escadas do distrito em direção a parte baixa da cidade com o intuito de protestar contra os franceses. O filme representa muito bem o conflito, de forma realista e  de forma relativamente imparcial, tendo ainda maior relevância por ter sido feito apenas alguns anos depois, usando até mesmo pessoas que partiparam da revolução como atores. Além de ser um ótmo filme, é de extrema importância para se compreender a colonização francesa na Argélia.


Referências Bibliográficas


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Chang, Justin. Once banned, 'Battle of Algiers'' smart, compassionate take on terror and rebellion resonates today. 29 de setembro de 2016. Disponível em: <http://www.latimes.com/entertainment/movies/la-ca-mn-battle-of-algiers-rerelease-20160921-snap-story.html>. Acesso em: 15 de junho.

Evans, Martin. Pontecorvo's Colonel Mathieu: the paratrooper who embodied France. 2 de maio de 2013. Disponível em: <https://www.opendemocracy.net/martin-evans/pontecorvos-colonel-mathieu-paratrooper-who-embodied-france.> Acesso em: 15 de junho.

Evans, Martin. The Battle of Algiers: historical truth and filmic representation. 18 de dezembro de 2012. Disponível em: <https://www.opendemocracy.net/martin-evans/battle-of-algiers-historical-truth-and-filmic-representation>. Acesso em: 15 de junho.

Fanon, F. The Wretched of the Earth. 1961.

Matthews, Peter. The Battle of Algiers: Bombs and Boomerangs. 10 de agosto de 2011. Disponível em: <https://www.criterion.com/current/posts/342-the-battle-of-algiers-bombs-and-boomerangs>. Acesso em: 15 de junho.

Roberts, Philip. The Battle of Algiers (La Battaglia di Algeri). Disponível em: <https://www.nottingham.ac.uk/scope/documents/2007/october-2007/film-rev-oct-2007.pdf>. Acesso em: 15 de junho.

Weil, P. How to Be French: Nationality in the Making since 1789. Duke university press. 2008.




 * Emannoel Sampaio Pereira de Souza é estudante do curso de Relações Internacionais do Unicuritiba. 


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