Rafaela Pacheco
Estudante de Direito no Centro Universitário Curitiba, e integrante do Grupo de
Pesquisa A nova lei de migração
brasileira (lei nº 13.445/2017) e as mudanças no tratamento de migrantes e
refugiados no Brasil, orientado pela Profª Michele Alessandra Hastreiter.
"Enquanto existir nas leis e nos costumes uma
condenação social que cria infernos sociais em plena civilização, juntando ao
destino — que é divino por natureza — um fatalismo que provém dos homens; enquanto
não forem resolvidos os três problemas do século: — a degradação do homem pela
pobreza, o aviltamento da mulher pela fome, a atrofia da crença pelas trevas;
enquanto continuar em certas classes a asfixia social; ou por outras palavras e
sob um ponto de vista mais claro: — enquanto houver no mundo ignorância e
miséria, os livros desta natureza não são de todo inúteis."
Victor Hugo, 1862[1]
Em 23 de
agosto de 2018, Katy Watson, repórter da BBC News, teve sua matéria A ponte que simboliza o desespero do êxodo venezuelano
publicada. Este foi um dentre tantos outros relatos e denúncias oriundos da
crise socioeconômica e política que deixou quatro em cada cinco venezuelanos
impotentes diante da taxa de desemprego e pobreza crescentes em seu país. Como
reflexo da crise, parte da população venezuelana vem abandonando seus lares em
busca de condições dignas de vida em países vizinhos como a Colômbia e o
Brasil. Em sua reportagem, Watson preocupou-se em apresentar a situação real,
de pessoas reais, na ponte da fronteira entre San Antonio del Táchira, na
Venezuela, e Villa Del Rosário, na Colômbia. A matéria cumpre a função de nos lembrar
que essas pessoas que migram possuem nomes e sobrenomes, que sentem fome e
medo, e que vivenciam o inferno social que
instaurou em suas vidas a incerteza e a miséria.
A ponte é
chamada pelos guardas de "corredor humanitário" e, do outro lado dela,
na Colômbia, Watson narrou as relações de troca que se formam na chamada La Parada, local em que são realizadas
transações comerciais por uma comunidade que objetiva o lucro. Há vendedores
ambulantes, lojas e empresas de ônibus prestando seus serviços aos
venezuelanos. A repórter presenciou a história de Laura Castellanos, uma jovem
venezuelana que estava na fila para a travessia da ponte com seus três filhos e
o marido. Laura, naquele dia, atravessara a ponte com sua família e vendera
seus cabelos a um comprador de La Parada
com intuito de comprar insulina para Andrea, sua filha mais velha, que tem
diabetes. Laura relatou à Watson que há pessoas morrendo em seu país por não
conseguirem os medicamentos.
Laura se tornou
Fantine, na mais íntima proximidade possível, vivendo o medo de não conseguir
salvar sua filha, lutando contra a escassez de um sistema falho que nega a ela
e sua família uma vida digna e saudável. A personagem Fantine, do romance Os Miseráveis de Victor Hugo, vendera
seus cabelos e dentes para pagar os cuidados de sua filha Cosette, isto porque
encontrava-se desempregada. Cada passo de sua trajetória, vivendo um dia por
vez, alternando a esperança e a vulnerabilidade diante das circunstâncias, conduziu
Fantine para a rafa e o definhamento. O que Hugo e Watson narraram é a frieza
das transações que coordenam vidas. Cabelos e dentes por dinheiro, dinheiro por
saúde. É a miséria e a ignorância testando e corrompendo virtudes, despindo o
amor próprio, esvaziando o ser, limitando sonhos e condenando vidas ao
sofrimento.
Fantine, além
de um retrato da desigualdade social do século XIX, bem como Laura, vivendo as
mazelas migratórias do século XXI, possuem corpo e alma que persistem,
marginalizadas, em nossa sociedade. Fantine viveu, e ainda vive, uma vida que a
condenamos viver. Fantine não é apenas um nome, uma palavra, uma mulher, mas
como já diria Levi-Strauss[3], ela é signo e valor. Não
apenas a mulher sofre, mas todos que a cercam e dela se alimentam. Ela é aquela
que detém o dom de gerar a vida e, desta forma, não é apenas Fantine, Laura e
Andrea — ou a mulher — que padecem, mas toda a vida que é depreciada nos limites
da sobrevivência. Assim, Fantine são todos aqueles que lutam por viver e por
melhores condições de vida. São aqueles que se despem de toda vaidade e
interesses próprios em prol da sobrevivência dos seus, pois Fantine fez tudo
que pôde por uma vida digna para sua filha Cosette, sua única família. Ela era honesta
e, no fundo de si, guardava virtude e pudor. Tal pudor que advém de construções
sociais e que, esta mesma sociedade que a ensinou a ter pudor, violou-o,
deixando para Fantine a culpa e a vergonha. E todo este ciclo de virtudes e
sentimentos oprimidos que compreendem o inferno
social a que Victor Hugo se refere, advém da sociedade e por ela são geridos.
“Que vem a ser esta história
de Fantine?
É a sociedade comprando uma
escrava.
A quem?
À miséria.
À fome, ao frio, ao
isolamento, ao abandono, à nudez.
Dolorosa negociação! Uma
alma por um pedaço de pão.
A miséria oferece, a
sociedade aceita!”
(HUGO, 1---, p. 297)
É preciso falar
sobre a miséria, a miséria como falha
moral e a miséria de quem padece. Uma fomenta a outra propagando o sofrimento.
Aproximadamente dois séculos depois da publicação de Os Miseráveis a miséria se faz presente em nossos cotidianos. E,
diante de tanta ignorância e penúria, Victor Hugo compreendeu a necessidade de
tornar público o que muitos tentam se esquivar: a miséria está em nós, em
nossas vidas, em nossa história.
Os fluxos
migratórios que presenciamos, cada vez mais constantes por conta de
instabilidades ambientais, socioeconômicas e políticas vão além de negociações
internacionais, aparatos legais e atuações governamentais. Precisamos olhar
para as Fantines da migração e
compreender seus medos e aflições diante de cenários que destroem sua essência
de ser, que desamparam promovendo a insegurança, a fome e o desespero.
O crescente
fluxo migratório que vivemos claramente está vinculado ao temor e à violação da
dignidade humana. E se faz necessário refletirmos que, além de catástrofes
ambientais e perseguições provenientes de conflitos e guerras, a instabilidade
econômica e a má gestão pública de um governo também causam medo, desespero e
insegurança à população. Temos que compreender que a migração econômica em
massa traz consigo o mesmo vazio e incerteza aos migrantes, como os vividos por
um refugiado. Basta observar o contexto em que Lauras e Andreas se encontram,
para entendermos que a angústia e o sentimento de perda de direitos básicos são
profundos, e por isso não podemos permitir que a história de Fantine se repita.
Somos todos
miseráveis! Provavelmente essas seriam as palavras de Victor Hugo diante do
cenário que se alastra nas fronteiras dos países. Miseráveis por conivência,
miseráveis por omissão, miseráveis por proporcionarmos a propagação do
desespero, do temor e do sofrimento, por criarmos infernos sociais elegendo Fantines para encenarem a deterioração
do ser em face das estruturas sociais, políticas e econômicas que as esmagam. A
miséria e a ignorância são perpetuados pela sociedade, e em relação à migração
é gerida por atitudes xenófobas, por leis falhas e governantes incompetentes.
A matéria
de Watson é necessária pois, por vezes, presenciamos vidas sendo reduzidas a
terminologias e adjetivos que detém o poder de garantir ou extinguir direitos
fundamentais para as suas existências. Conhecer as pessoas que partilham o
mundo conosco promove a sensibilização com aquele que antes era desconhecido, e
assim passamos a compartilhar sentimentos, esperanças e vivências comuns. E, baseando-se
nas palavras de Victor Hugo, enquanto houver no mundo inércia, descaso e
violações à vida digna, todas as palavras em defesa e garantia da dignidade
humana não são de todo inúteis, e sim necessárias.
[1]
HUGO, Victor. Os Miseraveis. v. 1. Porto:
Livraria Chardron, 1---.
[2]
WATSON, Katy. A ponte que simboliza o
desespero do êxodo venezuelano. BBC News. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/amp/internacional-45275901>.
Acesso em: 04/09/2018.
[3]
LEVI-STRAUSS, Claude. As Estruturas
Elementares de Parentesco. Petrópolis: Vozes, 2012.
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