segunda-feira, 28 de maio de 2018

Direito Internacional em Foco: O Caso Yerodia - Bélgica X Congo







A seção "Direito Internacional em Foco" é produzida por alunos do 3° período do Curso de Relações Internacionais da UNICURITIBA, com a orientação da professora de Direito Internacional Público, Msc. Michele Hastreiter, e a supervisão da monitora da disciplina, Marina Marques. As opiniões relatadas no texto pertencem aos seus autores e não refletem o posicionamento da instituição.





CASO YERODIA - BÉLGICA X CONGO
 

Beatriz Deneka, Gabriela Dionizio, Jéssica Becker e Laura Marrie


Em 11 de abril de 2000 o Reino da Bélgica emitiu um mandado de prisão contra Abdulaye Yerodia Ndombasi, Ministro das Relações Exteriores da República Democrática do Congo de 1990 à 2000, por crimes contra os direitos humanos ao incitar o ódio racial, e por supostamente ter encorajado a população do seu país à atacar pessoas da etnia tutsi (grupo étnico existindo principalmente em Ruanda e no Burundi, mas também nas regiões vizinhas da RD Congo, do Uganda e da Tanzânia), que estavam no país principalmente depois do genocídio em Ruanda. O mandado foi expedido à todos os países, inclusive à RP do Congo, pela lista da Interpol, fundamentada no princípio de jurisdição universal - princípio que permite a atuação do Estado fora de sua jurisdição, em casos de graves violações de direitos humanos.

O desencadeamento do caso transmitido pela Interpol se deu quando a República Democrática do Congo respondeu contra a acusação feita pela Bélgica. O país alegou que a Bélgica estaria infringindo os princípios do Direito Internacional Costumeiro, segundo o qual todos os Estados possuem igualdade soberana, e um Estado não pode exercer seu poder sobre o território de outro Estado. Além disso, alegaram de que os Ministros das Relações Exteriores, assim como diplomatas em geral, possuem absoluta imunidade e inviolabilidade. Com base nessa argumentação, a República Democrática do Congo pede a anulação do mandado de prisão de Yerodia. Ficam, portanto, dois questionamentos: um tribunal nacional pode determinar a prisão de um Ministro das Relações Exteriores estrangeiro, por crimes de guerra ou contra a humanidade? E quanto à imunidade do Ministro?

Para compreender melhor o caso, é necessário conceituar soberania e imunidade, que são os argumentos usados na defesa congolesa. Em seu livro Direito Internacional Público, Marcelo Dias Varella faz um apanhado da noção de soberania construída através da história, destacando que ainda hoje ela representa a capacidade do Estado de exercer domínio sobre seu território de forma independente - o que implica capacidade de criar normas internas e julgar os atos cometidos em seu território, argumento sustentado pela defesa de Yerodia. Já a imunidade diplomática, como demonstrado por Valério de Oliveira Mazzuoli, surge como responsável pela estabilização das relações diplomáticas entre os Estados, garantindo ao Estado acreditante a proteção dos seus agentes sob a jurisdição do Estado acreditado - benefício esse que atualmente se estende não somente aos diplomatas, mas também aos Chefes de Estado e de Governo, aos Ministros das Relações Exteriores, aos navios e aeronaves públicos, às bases militares e aos imóveis da missão diplomática - sendo essa premissa o segundo argumento em prol de Yerodia.

Perante a Corte Internacional de Justiça, o entendimento foi o de que a ação belga constituiu em uma infração ao Direito Internacional, concluindo que a imunidade do Ministro das Relações Exteriores é absoluta, sem exceções, aplicada a atos civis e criminais, sem distinção entre os praticados na capacidade oficial ou privada, previamente ou durante o exercício da função de ministro, sendo esse direito garantido para permitir que sua função seja plenamente exercida. Diante disso, decreta-se então que a Bélgica deverá cancelar o mandado e informar aos países em que este foi circulado.

Durante o julgamento a Bélgica levanta diversas objeções, mas elas são todas rejeitadas pela corte. Em sua argumentação, busca abrir uma exceção para a imunidade diplomática da qual o ministro goza, apoiado nos casos Pinochet e Kaddafi, entretanto o tribunal declara que não havia exceções no direito internacional consuetudinário para apoiar tal requerimento, e salienta que a imunidade diplomática não significa impunidade: o réu pode vir a ser julgado em seu país de origem, podendo então perder sua imunidade se seu Estado optar por tal decisão, ou por um tribunal internacional.

O processo traz divergentes opiniões sobre a sua resolução, os juízes Higgins, Kooijmans e Buergenthal, por exemplo, discordaram da ordem dada pelo júri de cancelamento do mandato emitido. Apontaram ainda que o julgamento foi focado no fato de ter sido infringida a imunidade diplomática sem levar em consideração se a Bélgica teria ou não jurisdição sob o caso, o que seria um ponto necessário na discussão, levando em consideração que a questão da imunidade está profundamente atrelada a jurisdição.

É interessante ainda abordar o voto do brasileiro Francisco Rezek, que atuou como juiz da Corte Internacional de Justiça no caso. Rezek vota a favor da inviolabilidade de Yerodia e da anulação da ordem de prisão do Ministro, dizendo que não cabe à justiça belga o julgamento do caso. Nas palavras do juiz: “Estimo que o foro interno belga não é competente, nas presentes circunstâncias, para a ação penal: a uma, por faltar-­lhe base outra que o só princípio da competência universal; a duas, pela ausência da pessoa acusada em território belga, ao qual não seria legítimo fazê­la comparecer.  Penso, entretanto, que mesmo se a competência da justiça belga pudesse ser aqui reconhecida, a imunidade do ministro das relações exteriores do Congo teria frustrado o início da ação penal, bem como a lavratura do mandado de prisão internacional pelo juiz, com o apoio do governo belga.” Francisco faz ainda uma comparação interessante ao dizer que se o caso fosse invertido - isto é, se o Congo tivesse expedido a ordem a um ministro belga (ou qualquer país do hemisfério sul o fizesse em relação a um país do hemisfério norte) - a reação internacional seria diferente (considerariam uma absurda usurpação de competência!).
A Corte encerra o caso a favor da República Democrática do Congo, reconhecendo que, embora não seja chefe de estado, o Ministro das Relações Exteriores goza da mesma imunidade àquele conferida, na medida em que se trata de um canal de condução das relações diplomáticas, decidindo, então, que a jurisdição universal não poderia ser ilimitada e decretando o recolhimento do mandado.



REFERÊNCIAS

MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direito internacional público. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
REZEK, Francisco. Direito Internacional Público - Curso Elementar. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
VARELLA, Marcelo Dias. Direito Internacional público.  6. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
Caso Yerodia - contenciosos 2000.  Disponível em: <https://pt.scribd.com/document/329183552/Caso-Yerodia-conteciosos-2000>.
Case Concerning The Arrest Warrant Of 11 April 2000. Institute for International Law and Justice. Disponível em: <http://www.iilj.org/wp-content/uploads/2016/08/The-Yerodia-Case-Democratic-Republic-of-Congo-v.-Belgium-Judgment-2002.pdf>.
Arrest Warrant of 11 April 2000 (Democratic Republic of the Congo v. Belgium). International Court of Justice. Disponível em: <http://www.icj-cij.org/en/case/121>.
Abdoulaye Yerodia Ndombas. Trial International. Disponível em: <Ihttps://trialinternational.org/latest-post/abdoulaye-yerodia-ndombasi/>.
Case concerning the Arrest Warrant of 11 April 2002. International Crimes Database. Disponível em: <http://www.internationalcrimesdatabase.org/Case/3266/Case-concerning-the-Arrest-Warrant-of-11-April-2002-/>.
A aplicabilidade do princípio da “jurisdição universal” ao caso Pinochet. Jus Navigandi. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/28590/a-aplicabilidade-do-principio-da-jurisdicao-universal-ao-caso-pinochet>.

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