A seção "Direito Internacional em Foco" é produzida por alunos do 3° período do Curso de Relações Internacionais da UNICURITIBA, com a orientação da professora de Direito Internacional Público, Msc. Michele Hastreiter, e a supervisão da monitora da disciplina, Marina Marques. As opiniões relatadas no texto pertencem aos seus autores e não refletem o posicionamento da instituição.
CASO YERODIA - BÉLGICA X CONGO
Beatriz Deneka,
Gabriela Dionizio, Jéssica Becker e Laura Marrie
Em 11 de abril de 2000 o
Reino da Bélgica emitiu um mandado de prisão contra Abdulaye Yerodia Ndombasi,
Ministro das Relações Exteriores da República Democrática do Congo de 1990 à
2000, por crimes contra os direitos humanos ao incitar o ódio racial, e por
supostamente ter encorajado a população do seu país à atacar pessoas da etnia
tutsi (grupo étnico existindo principalmente em Ruanda e no Burundi, mas também
nas regiões vizinhas da RD Congo, do Uganda e da Tanzânia), que
estavam no país principalmente depois do genocídio em Ruanda. O mandado foi
expedido à todos os países, inclusive à RP do Congo, pela lista da Interpol,
fundamentada no princípio de jurisdição universal - princípio que permite a
atuação do Estado fora de sua jurisdição, em casos de graves violações de
direitos humanos.
O desencadeamento do caso
transmitido pela Interpol se deu quando a República Democrática do Congo
respondeu contra a acusação feita pela Bélgica. O país alegou que a Bélgica
estaria infringindo os princípios do Direito Internacional Costumeiro, segundo
o qual todos os Estados possuem igualdade soberana, e um Estado não pode
exercer seu poder sobre o território de outro Estado. Além disso, alegaram de
que os Ministros das Relações Exteriores, assim como diplomatas em geral,
possuem absoluta imunidade e inviolabilidade. Com base nessa argumentação, a
República Democrática do Congo pede a anulação do mandado de prisão de Yerodia.
Ficam, portanto, dois questionamentos: um tribunal
nacional pode determinar a prisão de um Ministro das Relações Exteriores
estrangeiro, por crimes de guerra ou contra a humanidade? E quanto à imunidade
do Ministro?
Para compreender melhor o
caso, é necessário conceituar soberania e imunidade, que são os argumentos
usados na defesa congolesa. Em seu livro Direito Internacional Público, Marcelo
Dias Varella faz um apanhado da noção de soberania construída através da
história, destacando que ainda hoje ela representa a capacidade do Estado de
exercer domínio sobre seu território de forma independente - o que implica
capacidade de criar normas internas e julgar os atos cometidos em seu
território, argumento sustentado pela defesa de Yerodia. Já a imunidade diplomática,
como demonstrado por Valério de Oliveira Mazzuoli, surge como responsável pela
estabilização das relações diplomáticas entre os Estados, garantindo ao Estado
acreditante a proteção dos seus agentes sob a jurisdição do Estado acreditado -
benefício esse que atualmente se estende não somente aos diplomatas, mas também
aos Chefes de Estado e de Governo, aos Ministros das Relações Exteriores, aos
navios e aeronaves públicos, às bases militares e aos imóveis da missão
diplomática - sendo essa premissa o segundo argumento em prol de Yerodia.
Perante a Corte
Internacional de Justiça, o entendimento foi o de que a ação belga constituiu
em uma infração ao Direito Internacional, concluindo que a imunidade do
Ministro das Relações Exteriores é absoluta, sem exceções, aplicada a atos
civis e criminais, sem distinção entre os praticados na capacidade oficial ou
privada, previamente ou durante o exercício da função de ministro, sendo esse
direito garantido para permitir que sua função seja plenamente exercida. Diante
disso, decreta-se então que a Bélgica deverá cancelar o mandado e informar aos
países em que este foi circulado.
Durante o julgamento a
Bélgica levanta diversas objeções, mas elas são todas rejeitadas pela corte. Em
sua argumentação, busca abrir uma exceção para a imunidade diplomática da qual
o ministro goza, apoiado nos casos Pinochet e Kaddafi, entretanto o tribunal
declara que não havia exceções no direito internacional consuetudinário para
apoiar tal requerimento, e salienta que a imunidade diplomática não significa
impunidade: o réu pode vir a ser julgado em seu país de origem, podendo então
perder sua imunidade se seu Estado optar por tal decisão, ou por um tribunal
internacional.
O processo traz divergentes opiniões sobre a sua resolução, os juízes
Higgins, Kooijmans e Buergenthal, por exemplo, discordaram da ordem dada pelo
júri de cancelamento do mandato emitido. Apontaram ainda que o julgamento foi
focado no fato de ter sido infringida a imunidade diplomática sem levar em
consideração se a Bélgica teria ou não jurisdição sob o caso, o que seria um
ponto necessário na discussão, levando em consideração que a questão da
imunidade está profundamente atrelada a jurisdição.
É
interessante ainda abordar o voto do brasileiro Francisco Rezek, que atuou como
juiz da Corte Internacional de Justiça no caso. Rezek vota a favor da
inviolabilidade de Yerodia e da anulação da ordem de prisão do Ministro, dizendo
que não cabe à justiça belga o julgamento do caso. Nas palavras do juiz:
“Estimo que o foro interno belga não é competente, nas presentes
circunstâncias, para a ação penal: a uma, por faltar-lhe base outra que o
só princípio da competência universal; a duas, pela ausência da pessoa
acusada em território belga, ao qual não seria legítimo fazêla
comparecer. Penso, entretanto, que mesmo
se a competência da justiça belga pudesse ser aqui reconhecida, a imunidade
do ministro das relações exteriores do Congo teria frustrado o início da
ação penal, bem como a lavratura do mandado de prisão internacional pelo
juiz, com o apoio do governo belga.” Francisco faz ainda uma comparação
interessante ao dizer que se o caso fosse invertido - isto é, se o Congo
tivesse expedido a ordem a um ministro belga (ou qualquer país do hemisfério
sul o fizesse em relação a um país do hemisfério norte) - a reação
internacional seria diferente (considerariam uma absurda usurpação de
competência!).
A Corte encerra o caso a
favor da República Democrática do Congo, reconhecendo que, embora não seja
chefe de estado, o Ministro das Relações Exteriores goza da mesma imunidade
àquele conferida, na medida em que se trata de um canal de condução das
relações diplomáticas, decidindo, então, que a jurisdição universal não poderia
ser ilimitada e decretando o recolhimento do mandado.
REFERÊNCIAS
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso
de direito internacional público. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
REZEK, Francisco. Direito
Internacional Público - Curso Elementar. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
VARELLA, Marcelo Dias. Direito
Internacional público. 6. ed. São
Paulo: Saraiva, 2016.
Caso Yerodia - contenciosos
2000. Disponível em: <https://pt.scribd.com/document/329183552/Caso-Yerodia-conteciosos-2000>.
Case
Concerning The Arrest Warrant Of 11 April 2000. Institute for International Law
and Justice. Disponível
em:
<http://www.iilj.org/wp-content/uploads/2016/08/The-Yerodia-Case-Democratic-Republic-of-Congo-v.-Belgium-Judgment-2002.pdf>.
Arrest
Warrant of 11 April 2000 (Democratic Republic of the Congo v. Belgium). International Court of Justice.
Disponível em: <http://www.icj-cij.org/en/case/121>.
Abdoulaye Yerodia Ndombas. Trial
International. Disponível em:
<Ihttps://trialinternational.org/latest-post/abdoulaye-yerodia-ndombasi/>.
Case
concerning the Arrest Warrant of 11 April 2002. International Crimes Database. Disponível em:
<http://www.internationalcrimesdatabase.org/Case/3266/Case-concerning-the-Arrest-Warrant-of-11-April-2002-/>.
A aplicabilidade do princípio da
“jurisdição universal” ao caso Pinochet. Jus Navigandi. Disponível em:
<https://jus.com.br/artigos/28590/a-aplicabilidade-do-principio-da-jurisdicao-universal-ao-caso-pinochet>.
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