O CASO LOTUS E O
DIREITO DO MAR
O caso Lótus, julgado
entre janeiro e setembro de 1927 pela Corte Permanente Internacional de
Justiça, trata de uma colisão em alto mar ocorrida entre um navio francês e um
navio turco. O resultado do abalroamento foi a morte de oito tripulantes
turcos, enquanto os demais foram resgatados pela embarcação francesa e levados
até território turco.
A colisão ocorreu no dia
2 de agosto de 1926 no Cabo Sigri, próximo à costa da Turquia, momentos antes
da meia-noite. O Boz-Kourt era um navio turco que colidiu com o navio francês
Lotus, que empresta seu nome ao caso. Este último era um paquete - expressão
que deriva de packet boat - que
levava encomendas e correspondências, além de passageiros.
O choque entre as duas
embarcações levou ao naufrágio do Boz-Kourt, que partiu-se ao meio. Apesar dos
esforços franceses para salvar os marinheiros turcos, 8 destes morreram
afogados. Os franceses conseguiram, no entanto, salvar 10 marinheiros - entre
eles o capitão Hassan Bey. O navio Lotus atracou em Constantinopla no dia 3 de
agosto. No mesmo dia, o inquérito foi iniciado pelas autoridades da Turquia,
que prontamente intimaram e detiveram o tenente Demons, responsável pelo navio
Lotus, sem notificar o Consulado Francês.
Os responsáveis por ambos
os navios sofreram prisão preventiva por acusação de homicídio culposo, quando
não há intenção de matar. O tenente Demons chegou a argumentar que a justiça
turca não poderia julgar o caso, mas as autoridades discordaram e o processo
seguiu em curso. A Corte Criminal de
Istambul acatou, no entanto, o pedido de fiança do tenente francês - que
poderia responder em liberdade. Finalmente, o tenente Demons foi condenado a 80
dias de prisão e o pagamento de multa, o capitão Hassan Bey recebeu pena mais
severa, mas a apelação do promotor turco acabou por suspender a execução da
sentença.
Os franceses não aceitavam o julgamento das
autoridades turcas, o que gerou uma série de protestos. Eventualmente, França e
Turquia concordam em submeter o caso à Corte Permanente Internacional de
Justiça. A França foi representada por M. Basdevant, enquanto a Turquia por
Mahmout Essat Bey, Ministro da Justiça deste país na época.
A análise feita em
relação ao caso foi sobre a competência da Turquia de penalizar ou não o
capitão da embarcação francesa em virtude de um acontecimento em Alto-Mar - caracterizado por todas as águas além do limite das
águas territoriais, de acordo com Accioly, Nascimento e Silva e Casella. Ao
estudar o Tratado de Lausanne, assinado pela Turquia em 24 de julho de 1923
junto com as potências vencedoras da 1° Guerra Mundial, no qual há o 15° Artigo
que remete ao respeito com a normas do direito internacional que o governo
turco se comprometeu a ter, a Corte Permanente Internacional da Justiça indaga
sobre a existência de uma norma internacional que proíba as autoridades turcas
de processar o nacional francês.
Os franceses afirmavam
que os princípios de direito internacional - aos quais o artigo 15° do Tratado
de Lausanne fazia alusão - asseguravam a competência francesa de penalizar seus
nacionais e pediam uma indenização ao tenente Demon pelo seu tempo preso e pela
fiança paga. Os referidos princípios são de que os navios representam domínio
flutuante do Estado, ou seja, o direito que vigora é o da bandeira do navio e o
princípio do alto-mar como patrimônio comum da humanidade, isto é, sem ser
propriedade de nenhum Estado.
Os turcos relevaram a
questão da competência e focaram sua argumentação na aplicabilidade de sua
sentença. A França permaneceu salientando os princípios internacionais, mas
como réplica destaca que o fato de um nacional ser vítima de um crime não dá
direito ao Estado de aumentar sua jurisdição e julgar o ato que foi cometido
por um estrangeiro, fora de seu território. Além de também fazer menção aos
danos morais e materiais sofridos pelo Tenente Demons e pedir uma indenização
no valor de 6.000 libras turcas.
Em sua tréplica, o
representante turco recorre ao conceito de território por extensão e salienta
que turcos morreram no acidente que envolvia uma embarcação turca, assim, a
França não teria nenhuma competência de julgar os responsáveis e a Turquia
apenas seguiu seu código penal interno e consequentemente não existiriam razões
para que o Tenente Demons fosse indenizado.
Metade da Corte votou a
favor da Turquia e a outra metade a favor da França, assim cabendo a decisão ao
presidente da Corte. A
doutrina da territorialidade serviu como base para a maioria dos votos. De
acordo com essa doutrina, o navio serviria como um prolongamento do domínio do
estado. O conceito de territorialidade foi essencial para o desenrolar do caso,
uma vez que o presidente da Corte Permanente Internacional de Direito à
época era Dionisio Anzilotti, que buscava no pacta sunt servanda (os pactos assumidos devem ser respeitados) a
norma fundamental do direito internacional (ACCIOLY, NASCIMENTO E SILVA e CASELLA. 2012, P. 137).
A decisão do tribunal foi
a seguinte: “o que se passa a bordo de um navio em alto-mar, deve ser
considerado como se tivesse ocorrido no território do estado cuja bandeira o
navio usa. Se, pois, um ato delituoso, cometido num navio, em alto-mar, produz
seus efeitos sobre um navio que usa outra bandeira ou sobre um território
estrangeiro, devem ser aplicados ao caso os mesmos princípios que se aplicariam
se se tratasse de dois territórios de estados diferentes, e, portanto, deve
concluir-se que nenhuma regra de direito internacional proíbe ao estado, de que
depende o navio, onde os efeitos do delito se manifestaram, considerar esse
delito como se tivesse sido cometido no seu território e exercer a ação penal
contra o delinquente”.
A Corte concluiu,
portanto, que existiam jurisdições concorrentes em casos de abalroamentos. Em
casos de colisões em alto-mar em que o culpado é um navio de guerra, a
jurisdição que deve julgar é a que pertence o navio. Finalmente, no caso das
colisões em alto-mar entre navios de diferentes bandeiras, a competência penal
para julgar o caso não exclui a competência concorrente dos dois estados. Uma
vez que a Turquia provou possuir extraterritorialidade prevista em sua
legislação penal para aquela hipótese, considerando, ainda, que a embarcação não
era militar, a Corte recusou o pedido da França. A jurisdição extraterritorial, acontece nos casos
em que o Estado exerce a sua jurisdição sobre fatos ocorridos fora do seu
território. Existem vários critérios que podem justificar a jurisdição extraterritorial.
No caso em questão, o vínculo que permitiu o exercício da jurisdição
extraterritorial foi o fato de as vítimas serem turcas e o fato de ter ocorrido
em alto mar.
REFERÊNCIAS
GODOY, Arnaldo S. M. HISTÓRIA DO DIREITO INTERNACIONAL: O CASO
LÓTUS (1927). Revista do Mestrado em Direito UCB
ACCIOLY, Hildebrando, NASCIMENTO E
SILVA, G. E., e CASELLA, Paulo Borba,
Manual de Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 564.
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