sexta-feira, 16 de junho de 2017

Redes e Poder no Sistema Internacional: A origem e utilização da teoria da guerra justa


A seção "Redes e Poder no Sistema Internacional" é produzida pelos integrantes do Grupo de Pesquisa Redes e Poder no Sistema Internacional (RPSI), que desenvolve no ano de 2017 o projeto "Redes da guerra e a guerra em rede" no UNICURITIBA, sob a orientação do professor Gustavo Glodes Blum. A seção busca compreender o debate a respeito do tema, trazendo análises e descrições de casos que permitam compreender melhor a relação na atualidade entre guerra, discurso, controle, violência institucionalizada ou não e poder. As opiniões relatadas no texto pertencem aos seus autores, e não refletem o posicionamento da instituição.




A origem e utilização da teoria da guerra justa
Luiz Guilherme G. Schinzel *


Discutir o tema da guerra é sempre algo bastante delicado. Muito além dos heróis e vilões que surgem delas, há os inocentes que sofrem com a barbárie do campo de batalha e morrem no anonimato. Sem dúvida alguma, pode-se afirmar que são sempre os mais prejudicados. O século passado definiu toda uma era para o gênero humano: duas guerras em escala global seguidas de quarenta anos de Guerra Fria. E hoje, mais do que nunca, temos a sensação de que a era do fim dos conflitos não está tão longe quanto imagiávamos.

Diante das mais diferentes atrocidades que temos testemunhado neste século, fica difícil imaginar que uma guerra seja realmente justa. Em abril deste ano, os jornais do mundo inteiro noticiaram o bombardeio norte-americano a uma base militar síria que deixou setenta mortos e mais de cem feridos. Este bombardeio foi realizado em retaliação a um ataque feito pelo governo de Bashar al Assad na província de Idlib, perto da fronteira com a Turquia, ao norte do país. Imagens, depoimentos e relatórios de organização humanitárias apontaram para o uso de armas químicas por parte do ditador sírio. Na ocasião, o presidente norte-americano Donald J. Trump se pronunciou, dizendo as seguintes palavras:


Meus compatriotas americanos, 


Na terça-feira, o ditador sírio Bashar al-Assad lançou um terrível ataque com armas químicas contra civis inocentes usando um agente nervoso mortal. 

Assad sufocou a vida de homens, mulheres e crianças inocentes. Foi uma morte lenta e brutal para muitos. Até mesmo lindos bebês foram cruelmente assassinados neste ataque tão bárbaro. Nenhum filho de Deus deve sofrer tal horror. 

[...] Nesta noite, apelo a todas as nações civilizadas para que se juntem a nós na busca para acabar com o massacre e o derramamento de sangue na Síria, e também para acabar com o terrorismo de todos os tipos. [...]



Ao sair em defesa dos inocentes, e apelando “a todas as nações civilizadas” na luta contra “o massacre e o derramamento de sangue na Síria”, o presidente Donald Trump aparentemente recorre ao conceito de guerra justa. O seu predecessor, Barack Obama, galardoado com o Prêmio Nobel da Paz em 2009, recordou esse conceito em seu discurso, afirmando que “ao longo da história ele raramente foi observado”.

Apesar de a doutrina da guerra justa ter suas origens em Cícero, ilustre senador e orador romano dos últimos anos da república, é com os chamados “Santos Doutores” da Igreja Católica que ela encontra seus grandes defensores. A razão disso é por conta da noção cristã de luta contra o mal, isto é, para teólogos como Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, a guerra, como último recurso, seria um meio para reparar um mal. Santo Ambrósio, bispo de Milão e tutor de Santo Agostinho, afirmou que “aquele que não afasta o mal que atinge seu amigo, se está em condição de fazê-lo, tem tanta culpa quanto aquele que causa o mal”.

Muitos outros autores também teorizaram sobre a guerra justa. Na era que sucedeu ao período medieval, o padre dominicano Francisco de Vitória, considerado como um dos “pais do Direito Internacional” – título muitas vezes dividido com o jurista holandês Hugo Grócio – afirmou que uma guerra justa é aquela que é defensiva, mas defendeu a guerra ofensiva como uma punição por uma agressão. É necessário compreender neste caso que a vingança só é algo moralmente reprovável no momento em que ela busca promover o mal e disseminar ódio; quando busca aplicar uma punição justa, ela se torna um dever.

O padre dominicano viveu na época dos descobrimentos e, portanto, com o contato do homem europeu com os nativos do Novo Mundo. De Vitória foi responsável por separar as questões morais e éticas da religião por conta da diferença de fé entre os índios da América e os europeus. Na época da expansão marítima, o Cristianismo fora usado como razão para a expansão do império português e espanhol; De Vitória afirmava que todos têm direito a sua religião e, portanto, a guerra contra os indígenas por causa de religião não seria uma guerra justa[1].

Posteriormente, outros pensadores menos alinhados a Igreja Católica defenderam e estabeleceram princípios para que se fosse travado um combate justo. O filósofo político inglês John Locke, em sua obra “Segundo Tratado Sobre o Governo Civil”, defendia os direitos dos cidadãos a se rebelarem contra um governo ilegítimo. O direito de resistência tornou-se um dos principais motivadores para a intervenção da OTAN na Guerra Civil da Líbia em 2011, quando um grupo de rebeldes procuraram derrubar o governo de Muamar al-Kadaffi, que para muitos havia perdido a sua finalidade ao violarem os direitos do povo ao invés de protege-los. O Conselho de Segurança da ONU, através da aprovação da Resolução 1973, autorizou os estados-membros a utilizarem todas as medidas necessárias para proteger civis e áreas civis densamente povoadas sob ameaça de ataque na Líbia.

A respeito do ataque norte-americano à base síria em abril deste ano, o governo russo encarou o ataque dos Estados Unidos aos seus aliados sírios como uma violação à legislação internacional e ameaçou romper a cooperação entre Moscou e Washington no país. Muito foi discutido se por conta desse ataque não estaríamos próximos de um novo conflito em escala mundial, pois mesmo após o fim da URSS, Estados Unidos e Rússia ainda são capazes de ser protagonistas no cenário internacional.

Infelizmente, é necessário encarar a realidade de que os Estados não agem de forma desinteressada e altruísta. Depositar a confiança de que um Estado promoverá a paz é correr o risco de que ele promoverá a sua paz. Ainda assim, o que vemos quase que diariamente nos noticiários e nas redes sociais sobre as guerras que estão acontecendo em pleno século XXI pede por algum tipo de justiça. 


REFERÊNCIAS


CARNEIRO, Pedro Erik. Teoria e Tradição da Guerra Justa: do Império Romano ao Estado Islâmico. Campinas, SP: Vide Editorial, 2016.



* Luiz Guilherme G. Schinzel é acadêmico do curso de Relações Internacionais do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA), e membro do Grupo de Pesquisa "Redes e Poder no Sistema Internacional".


[1] Francisco de Vitória também defendia que os europeus tinham que ter a liberdade de pregar o Evangelho. Caso encontrassem resistência por parte dos indígenas, só em último caso é que uma guerra contra eles seria justa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário