A seção "Direito Internacional em Foco" é produzida por alunos do 3° período do Curso de Relações Internacionais da UNICURITIBA, com a orientação da professora de Direito Internacional Público, Msc. Michele Hastreiter, e a supervisão do monitor da disciplina, Matheus Walger Nascimento. As opiniões relatadas no texto pertencem aos seus autores e não refletem o posicionamento da instituição.
A nova Lei de Migração brasileira
Beatriz Contesini
Luís Gabriel Duisit
Paula Rocha
No dia 06 de dezembro de
2016, foi aprovado pela Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 2516/15, que visa
criar a Lei de Migração. Se o Senado repetir o veredicto e o projeto for
sancionado pelo presidente, o projeto irá substituir o Estatuto do Estrangeiro
(Lei 6815/80) e revogará a Lei da Nacionalidade (818/49). Levando-se em conta o
momento histórico que o Brasil vive como membro da sociedade internacional, com
um mundo cada vez mais globalizado e uma grave crise de refugiados, o que isso
significa na prática?
Primeiro, é preciso que analisemos as leis atuais. O Estatuto do
Estrangeiro foi promulgado no ano de 1980, durante o regime militar. Nesse
período, a política do governo era bastante nacionalista, chegando a ser
discriminatória e punitiva no texto do Estatuto. Logo no início do texto, é
estabelecido que a entrada e a permanência de estrangeiros em território brasileiro
está submetida aos interesses nacionais:
"TÍTULO
I
Da Aplicação
Da Aplicação
Art. 2º Na
aplicação desta Lei atender-se-á precipuamente à segurança nacional, à
organização institucional, aos interesses políticos, socioeconômicos e
culturais do Brasil, bem assim à defesa do trabalhador nacional.
Art. 3º A
concessão do visto, a sua prorrogação ou transformação ficarão sempre
condicionadas aos interesses nacionais."
Não há, em momento algum do título acima, menção aos direitos dos
imigrantes, emigrantes ou eventuais refugiados. Já no Projeto de Lei de
Migração:
"CAPÍTULO
I
DISPOSIÇÕES
PRELIMINARES
Seção I
Disposições
Gerais
Art. 1º
Esta Lei
dispõe sobre os direitos e os deveres do migrante e do visitante, regula a sua
entrada e estada no País e estabelece princípios e diretrizes para as políticas
públicas para o emigrante.
§ 1º Para os
fins desta Lei, considera-se:
I – migrante:
pessoa que se desloca de país ou região geográfica ao território de outro país
ou região geográfica, incluindo o imigrante, o emigrante, o residente
fronteiriço e o apátrida;
II – imigrante:
pessoa nacional de outro país ou apátrida que trabalha ou reside e se
estabelece temporária ou definitivamente no Brasil;
III – emigrante:
brasileiro que se estabelece temporária ou definitivamente no exterior;
IV – residente
fronteiriço: pessoa nacional de outro país ou apátrida que conserva sua
residência habitual em município fronteiriço de país vizinho;
V – visitante:
pessoa nacional de outro país ou apátrida que vem ao Brasil para estadas de
curta duração, sem pretensão de se estabelecer temporária ou definitivamente em
território nacional;
VI - apátrida:
pessoa não considerada por qualquer Estado, conforme sua legislação, como seu nacional, nos termos da
Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, de 1954, promulgada pelo Decreto nº
4.246, de 22 de maio de 2002.
§ 2º São
plenamente garantidos os direitos originários dos povos indígenas e das
populações tradicionais, em especial o direito à livre circulação em terras
tradicionalmente
ocupadas."
São notáveis as diferenças
nas formas de tratamento dos não nacionais entre o Estatuto e o Projeto. O
primeiro é decididamente nacionalista e prioriza a segurança e os interesses
nacionais, chegando a ter caráter punitivo em algumas seções. O segundo
concentra-se primeiramente na garantia de direitos, tanto aos nacionais quanto
aos estrangeiros, e no combate à discriminação. Uma das raízes dessa diferença
certamente diz respeito ao contexto histórico da elaboração de cada texto. No
momento em que o Projeto 2516/15 foi formulado, eclodia uma crise de refugiados
com proporções jamais vistas antes, em que os solicitantes de refúgio têm
morrido em massa durante a fuga de seus países de origem e, quando conseguem
sobreviver, não têm certeza de que terão um futuro digno, com direitos humanos
básicos respeitados. Portanto, faz-se necessário que a sociedade internacional
se adapte a esses tempos para oferecer asilo ao máximo número de imigrantes
possível, uma vez que refugiados não deixarão de entrar e viver no país se sua
entrada e permanência for proibida; apenas entrarão de forma ilegal e isso
causará problemas futuros ao país, aos próprios refugiados e aos seus
descendentes. A priorização da acolhida aos refugiados é, antes de tudo, uma
adaptação humanitária aos tempos em que vivemos.
Em 1980, além de não haver uma crise de refugiados, havia uma situação
em particular que hoje não existe mais: a censura aos meios de comunicação. O
país vivia em uma ditadura e existia uma preocupação por parte do governo que
um imigrante pudesse fomentar instabilidade se exercesse atividade midiática ou
intelectual:
"Art.
106. É vedado ao estrangeiro:
II - ser
proprietário de empresa jornalística de qualquer espécie, e de empresas de
televisão e de radiodifusão, sócio ou acionista de sociedade proprietária
dessas empresas;
III - ser
responsável, orientador intelectual ou administrativo das empresas mencionadas
no item anterior;
(...)
VII - participar
da administração ou representação de sindicato ou associação profissional, bem
como de entidade fiscalizadora do exercício de profissão regulamentada;
(...)
IX - possuir,
manter ou operar, mesmo como amador, aparelho de radiodifusão, de
radiotelegrafia e similar, salvo reciprocidade de tratamento;"
Tais proibições não têm mais razão de ser fora
do contexto da ditadura militar que vigorou até 1985 e, portanto, estão fora do
Projeto de Lei Migratória, que assegura direitos iguais aos estrangeiros e
nacionais, com exceção da posse de certos cargos públicos. Isso se trata sem
dúvida alguma de um avanço, uma vez que esses artigos são obsoletos e sua
invalidade consolidará a liberdade de expressão. É absolutamente descabido
proibir estrangeiros de exercer profissões que possam estimular a formação de
opiniões no contexto de uma democracia.
Tomando os exemplos acima dados, é possível
inferir que, enquanto a prioridade do Estatuto do Estrangeiro de 1980 era
garantir a segurança nacional e a estabilidade do regime militar, a natureza do
Projeto de Lei Migratória é essencialmente humanitária. Há também um capítulo
dedicado aos direitos dos emigrantes – que não são mencionados no Estatuto de
1980. Essa nova seção, criada para facilitar a repatriação e garantir os
direitos dos brasileiros fora do Brasil, é mais um reflexo do contexto atual de
um mundo cada vez mais globalizado. Há mais de um milhão de brasileiros vivendo
fora do país e muitos enfrentam dificuldades no que concerne ao retorno. Em
menor escala, não havia muita margem para a garantia de direitos aos emigrantes
quando o Estatuto do Estrangeiro foi criado, uma vez que muitos desses
emigrantes eram exilados ou auto exilados por perseguição política e corriam
risco de vida caso decidissem retornar ao Brasil. Essa situação deixou de
existir com o fim da ditadura militar, o que é mais um motivo para dar atenção
aos brasileiros expatriados. Há ainda reflexos dessa preocupação nos novos
critérios de concessão da nacionalidade brasileira, que exige um tempo de
residência ligeiramente menor para a concessão da naturalização ordinária,
elimina a necessidade de se abrir mão da nacionalidade de origem e extingue
certas exigências para o processo, bem como diminui o número de casos em que
haverá perda de nacionalidade, restringindo-os à condenação transitada em
julgado nos termos constitucionais. Na Lei da Nacionalidade vigente, a
nacionalidade brasileira pode ser cassada se o nacional em questão adquire
outra nacionalidade de forma voluntária (art. 22.1) ou "aceita, sem a
permissão do Presidente da República, comissão, emprego ou pensão de governo
estrangeiro" (art. 22.2).
Nota-se também uma flexibilização maior dos
requisitos para a obtenção de asilo, refúgio e aquisição de nacionalidade. Não há
dúvidas de que facilitar a entrada e a permanência legal de refugiados, bem
como possibilitar a regularização de imigrantes ilegais – o que não é possível
pelo artigo 38 do Estatuto do Estrangeiro - é importante no contexto atual. As
regras agora vigentes estão obsoletas e não servem bem à situação atual. Mas há
uma ressalva: a crise dos refugiados é acompanhada por um enorme aumento no
número de atentados terroristas pelo mundo. Facilitar a entrada de estrangeiros
poderia então facilitar a entrada de terroristas no país, uma vez que o próprio
grupo autodenominado Estado Islâmico confessa ter infiltrado militantes entre
os refugiados saídos da Síria e do Iraque?
Essa pergunta pode parecer preconceituosa, mas
é pertinente, uma vez que muitas pessoas a tem em mente e muitas outras pessoas
morreram em atentados ao redor do mundo. Certamente, porém, isso não é motivo
suficiente para impedir a entrada de todos os refugiados ou criar condições
discriminatórias para indivíduos com certa confissão religiosa ou
nacionalidade. É impossível determinar uma regra a ser aplicada para barrar
apenas aqueles que vêm com intenções violentas, uma vez que é também impossível
diferenciar esses indivíduos dos demais a partir de seus documentos ou sua
nacionalidade. Lidando com seres humanos, não é justo que os atos de uma
minoria sirvam como precedente para tolher os direitos de uma maioria,
especialmente quando esta massa já está sendo oprimida e perseguida em seus
países de origem. Isso iria contra tudo o que pregam os Direitos Humanos, que
são muito prezados na Constituição vigente e no próprio Projeto 2516/15.
Há meios
mais eficazes de prevenir atentados terroristas e o aumento de outros tipos de
crimes. Um exemplo deles é dado pela Finlândia. Após o início do acolhimento
aos refugiados, o país viu o número de ataques sexuais aumentar e as
autoridades governamentais concluíram que isso se devia às diferenças culturais
entre os nacionais e os estrangeiros vindos de sociedades mais conservadoras.
Então, o Ministério do Interior finlandês passou a financiar aulas de
integração aos imigrantes vindos de tais sociedades. Essas aulas referem-se
especialmente às formas de tratar as mulheres no país, mas poderiam facilmente
ser adaptadas para também reverter a radicalização de militantes e até mesmo
ajudar os não-militantes a se integrarem à sociedade brasileira.
A
necessidade de se alterar certas regras imigratórias e criar condições mais
adequadas ao contexto que vivemos atualmente é inegável e urgente. O Projeto de
Lei Migratória 2516/15 cumpre esse papel - ainda que não o faça de forma
perfeita. É, também, mais ajustado aos preceitos humanitários pregados pela
Constituição de 1988, conhecida como Constituição Cidadã do que o retrógrado
Estatuto de 1980. É possível então inferir que, mais do que responsabilidade e
protagonismo na crise de refugiados, a natureza do projeto é também uma questão
de coerência com a Carta Magna. Se efetivamente aprovado, seu maior desafio será garantir que suas belas
palavras serão realmente cumpridas e aplicáveis na prática. E isso só será
possível com a vigilância e o zelo constantes das autoridades competentes.
Fontes:
Imagem: https://www.noticiasaominuto.com/mundo/496330/bruxelas-anuncia-ajuda-de-350-milhoes-para-refugiados
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