quarta-feira, 29 de março de 2017

Direito Internacional em Foco: A nova Lei de Migração brasileira



A seção "Direito Internacional em Foco" é produzida por alunos do 3° período do Curso de Relações Internacionais da UNICURITIBA, com a orientação da professora de Direito Internacional Público, Msc. Michele Hastreiter, e a supervisão do monitor da disciplina, Matheus Walger Nascimento. As opiniões relatadas no texto pertencem aos seus autores e não refletem o posicionamento da instituição.


A nova Lei de Migração brasileira

Beatriz Contesini
Luís Gabriel Duisit
Paula Rocha


                      No dia 06 de dezembro de 2016, foi aprovado pela Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 2516/15, que visa criar a Lei de Migração. Se o Senado repetir o veredicto e o projeto for sancionado pelo presidente, o projeto irá substituir o Estatuto do Estrangeiro (Lei 6815/80) e revogará a Lei da Nacionalidade (818/49). Levando-se em conta o momento histórico que o Brasil vive como membro da sociedade internacional, com um mundo cada vez mais globalizado e uma grave crise de refugiados, o que isso significa na prática?

                  Primeiro, é preciso que analisemos as leis atuais. O Estatuto do Estrangeiro foi promulgado no ano de 1980, durante o regime militar. Nesse período, a política do governo era bastante nacionalista, chegando a ser discriminatória e punitiva no texto do Estatuto. Logo no início do texto, é estabelecido que a entrada e a permanência de estrangeiros em território brasileiro está submetida aos interesses nacionais:

"TÍTULO I
 Da Aplicação
 Art. 2º Na aplicação desta Lei atender-se-á precipuamente à segurança nacional, à organização institucional, aos interesses políticos, socioeconômicos e culturais do Brasil, bem assim à defesa do trabalhador nacional.
Art. 3º A concessão do visto, a sua prorrogação ou transformação ficarão sempre condicionadas aos interesses nacionais."
         
           Não há, em momento algum do título acima, menção aos direitos dos imigrantes, emigrantes ou eventuais refugiados. Já no Projeto de Lei de Migração:

"CAPÍTULO I
DISPOSIÇÕES PRELIMINARES
Seção I
Disposições Gerais
Art. 1º
Esta Lei dispõe sobre os direitos e os deveres do migrante e do visitante, regula a sua entrada e estada no País e estabelece princípios e diretrizes para as políticas públicas para o emigrante.
§ 1º Para os fins desta Lei, considera-se:
I – migrante: pessoa que se desloca de país ou região geográfica ao território de outro país ou região geográfica, incluindo o imigrante, o emigrante, o residente fronteiriço e o apátrida;
II – imigrante: pessoa nacional de outro país ou apátrida que trabalha ou reside e se estabelece temporária ou definitivamente no Brasil;
III – emigrante: brasileiro que se estabelece temporária ou definitivamente no exterior;
IV – residente fronteiriço: pessoa nacional de outro país ou apátrida que conserva sua residência habitual em município fronteiriço de país vizinho;
V – visitante: pessoa nacional de outro país ou apátrida que vem ao Brasil para estadas de curta duração, sem pretensão de se estabelecer temporária ou definitivamente em território nacional;
VI - apátrida: pessoa não considerada por qualquer Estado, conforme sua  legislação, como seu nacional, nos termos da Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, de 1954, promulgada pelo Decreto nº 4.246, de 22 de maio de 2002.
§ 2º São plenamente garantidos os direitos originários dos povos indígenas e das populações tradicionais, em especial o direito à livre circulação em terras tradicionalmente
ocupadas."

                 São notáveis as diferenças nas formas de tratamento dos não nacionais entre o Estatuto e o Projeto. O primeiro é decididamente nacionalista e prioriza a segurança e os interesses nacionais, chegando a ter caráter punitivo em algumas seções. O segundo concentra-se primeiramente na garantia de direitos, tanto aos nacionais quanto aos estrangeiros, e no combate à discriminação. Uma das raízes dessa diferença certamente diz respeito ao contexto histórico da elaboração de cada texto. No momento em que o Projeto 2516/15 foi formulado, eclodia uma crise de refugiados com proporções jamais vistas antes, em que os solicitantes de refúgio têm morrido em massa durante a fuga de seus países de origem e, quando conseguem sobreviver, não têm certeza de que terão um futuro digno, com direitos humanos básicos respeitados. Portanto, faz-se necessário que a sociedade internacional se adapte a esses tempos para oferecer asilo ao máximo número de imigrantes possível, uma vez que refugiados não deixarão de entrar e viver no país se sua entrada e permanência for proibida; apenas entrarão de forma ilegal e isso causará problemas futuros ao país, aos próprios refugiados e aos seus descendentes. A priorização da acolhida aos refugiados é, antes de tudo, uma adaptação humanitária aos tempos em que vivemos.

                 Em 1980, além de não haver uma crise de refugiados, havia uma situação em particular que hoje não existe mais: a censura aos meios de comunicação. O país vivia em uma ditadura e existia uma preocupação por parte do governo que um imigrante pudesse fomentar instabilidade se exercesse atividade midiática ou intelectual:

"Art. 106. É vedado ao estrangeiro:        
II - ser proprietário de empresa jornalística de qualquer espécie, e de empresas de televisão e de radiodifusão, sócio ou acionista de sociedade proprietária dessas empresas;
III - ser responsável, orientador intelectual ou administrativo das empresas mencionadas no item anterior;
(...)
VII - participar da administração ou representação de sindicato ou associação profissional, bem como de entidade fiscalizadora do exercício de profissão regulamentada;
                                                                   (...)          
IX - possuir, manter ou operar, mesmo como amador, aparelho de radiodifusão, de radiotelegrafia e similar, salvo reciprocidade de tratamento;"

  Tais proibições não têm mais razão de ser fora do contexto da ditadura militar que vigorou até 1985 e, portanto, estão fora do Projeto de Lei Migratória, que assegura direitos iguais aos estrangeiros e nacionais, com exceção da posse de certos cargos públicos. Isso se trata sem dúvida alguma de um avanço, uma vez que esses artigos são obsoletos e sua invalidade consolidará a liberdade de expressão. É absolutamente descabido proibir estrangeiros de exercer profissões que possam estimular a formação de opiniões no contexto de uma democracia.

 Tomando os exemplos acima dados, é possível inferir que, enquanto a prioridade do Estatuto do Estrangeiro de 1980 era garantir a segurança nacional e a estabilidade do regime militar, a natureza do Projeto de Lei Migratória é essencialmente humanitária. Há também um capítulo dedicado aos direitos dos emigrantes – que não são mencionados no Estatuto de 1980. Essa nova seção, criada para facilitar a repatriação e garantir os direitos dos brasileiros fora do Brasil, é mais um reflexo do contexto atual de um mundo cada vez mais globalizado. Há mais de um milhão de brasileiros vivendo fora do país e muitos enfrentam dificuldades no que concerne ao retorno. Em menor escala, não havia muita margem para a garantia de direitos aos emigrantes quando o Estatuto do Estrangeiro foi criado, uma vez que muitos desses emigrantes eram exilados ou auto exilados por perseguição política e corriam risco de vida caso decidissem retornar ao Brasil. Essa situação deixou de existir com o fim da ditadura militar, o que é mais um motivo para dar atenção aos brasileiros expatriados. Há ainda reflexos dessa preocupação nos novos critérios de concessão da nacionalidade brasileira, que exige um tempo de residência ligeiramente menor para a concessão da naturalização ordinária, elimina a necessidade de se abrir mão da nacionalidade de origem e extingue certas exigências para o processo, bem como diminui o número de casos em que haverá perda de nacionalidade, restringindo-os à condenação transitada em julgado nos termos constitucionais. Na Lei da Nacionalidade vigente, a nacionalidade brasileira pode ser cassada se o nacional em questão adquire outra nacionalidade de forma voluntária (art. 22.1) ou "aceita, sem a permissão do Presidente da República, comissão, emprego ou pensão de governo estrangeiro" (art. 22.2).

 Nota-se também uma flexibilização maior dos requisitos para a obtenção de asilo, refúgio e aquisição de nacionalidade. Não há dúvidas de que facilitar a entrada e a permanência legal de refugiados, bem como possibilitar a regularização de imigrantes ilegais – o que não é possível pelo artigo 38 do Estatuto do Estrangeiro - é importante no contexto atual. As regras agora vigentes estão obsoletas e não servem bem à situação atual. Mas há uma ressalva: a crise dos refugiados é acompanhada por um enorme aumento no número de atentados terroristas pelo mundo. Facilitar a entrada de estrangeiros poderia então facilitar a entrada de terroristas no país, uma vez que o próprio grupo autodenominado Estado Islâmico confessa ter infiltrado militantes entre os refugiados saídos da Síria e do Iraque?

 Essa pergunta pode parecer preconceituosa, mas é pertinente, uma vez que muitas pessoas a tem em mente e muitas outras pessoas morreram em atentados ao redor do mundo. Certamente, porém, isso não é motivo suficiente para impedir a entrada de todos os refugiados ou criar condições discriminatórias para indivíduos com certa confissão religiosa ou nacionalidade. É impossível determinar uma regra a ser aplicada para barrar apenas aqueles que vêm com intenções violentas, uma vez que é também impossível diferenciar esses indivíduos dos demais a partir de seus documentos ou sua nacionalidade. Lidando com seres humanos, não é justo que os atos de uma minoria sirvam como precedente para tolher os direitos de uma maioria, especialmente quando esta massa já está sendo oprimida e perseguida em seus países de origem. Isso iria contra tudo o que pregam os Direitos Humanos, que são muito prezados na Constituição vigente e no próprio Projeto 2516/15.

Há meios mais eficazes de prevenir atentados terroristas e o aumento de outros tipos de crimes. Um exemplo deles é dado pela Finlândia. Após o início do acolhimento aos refugiados, o país viu o número de ataques sexuais aumentar e as autoridades governamentais concluíram que isso se devia às diferenças culturais entre os nacionais e os estrangeiros vindos de sociedades mais conservadoras. Então, o Ministério do Interior finlandês passou a financiar aulas de integração aos imigrantes vindos de tais sociedades. Essas aulas referem-se especialmente às formas de tratar as mulheres no país, mas poderiam facilmente ser adaptadas para também reverter a radicalização de militantes e até mesmo ajudar os não-militantes a se integrarem à sociedade brasileira.

          A necessidade de se alterar certas regras imigratórias e criar condições mais adequadas ao contexto que vivemos atualmente é inegável e urgente. O Projeto de Lei Migratória 2516/15 cumpre esse papel - ainda que não o faça de forma perfeita. É, também, mais ajustado aos preceitos humanitários pregados pela Constituição de 1988, conhecida como Constituição Cidadã do que o retrógrado Estatuto de 1980. É possível então inferir que, mais do que responsabilidade e protagonismo na crise de refugiados, a natureza do projeto é também uma questão de coerência com a Carta Magna. Se efetivamente aprovado, seu  maior desafio será garantir que suas belas palavras serão realmente cumpridas e aplicáveis na prática. E isso só será possível com a vigilância e o zelo constantes das autoridades competentes.



Fontes:

                                            

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