A seção "Leituras Geopolíticas" é produzida por alunos do 5° período do Curso de Relações Internacionais da UNICURITIBA, com a orientação do professor de Geografia Política, Me. Gustavo Blum, e a supervisão da monitora da disciplina, Nathalia Valladares. As opiniões relatadas no texto pertencem aos seus autores e não refletem o posicionamento da instituição.
Delegações não-reconhecidas e representação nas Olimpíadas do Rio em 2016
Gabriel Thomas Dotta, Henrique Albuquerque e Otávio Bomfim *
No furor dos jogos olímpicos, para além das festas, vitórias, derrotas e emoções em geral, encontram-se discussões geopolíticas profundas e complexas. Ao todo, foram 207 as delegações participantes. Dessas, 205 equipes representaram, sob sua própria bandeira, países ou regiões especiais. Além dessas, dois outros times marcaram presença: aquele dos Atletas Olímpicos Independentes, e o dos Refugiados.
Na Cerimônia de Abertura da Rio 2016, momento mais cerimonioso e oficial, todas as delegações desfilaram carregando suas bandeiras ou respectivos signos, em pé de igualdade. A participação de uma delegação implica, por definição, o reconhecimento pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) da entidade representada enquanto um Estado, ou, no mínimo, portador de algum status de autonomia. De imediato, nota-se algo interessante: foram ali representados com delegações ao menos dez nações a mais que aquelas reconhecidas como membros plenos pelas Nações Unidas (ONU).
A discrepância de reconhecimento entre as duas organizações tem muito a ver com seus processos de adesão à condição de membro. No COI, são menos relevantes as pressões políticas exercidas pelos membros existentes. Seja como for, fato é que muitos dos Estados excedentes não apenas não são reconhecidos pela ONU, mas são especialmente deslegitimados por outros Estados ou nações, igualmente presentes na ocasião.
Somado ao encontro emblemático entre os Estados com status contestados e aqueles que detém a sua soberania nominal, outro elemento é muito importante: cerca de três bilhões pessoas, ao redor do mundo assistiram a esta cerimônia, segundo estimativas prévias. Isso significa que na cerimônia todas essas nações foram representadas aos olhos de cerca de um terço do mundo, queiram ou não, reconheçam-nos ou não, como Estados ou regiões autônomas. Alguns casos merecem especial destaque.
Sendo a República Popular da China, ou China continental, um dos grandes competidores, é interessante analisar como a sua participação nos jogos se relaciona com a participação de outras delegações historicamente ligadas ao país, como as de Hong Kong e de Taiwan.
Tendo sido colônia do Império Britânico desde o fim da Primeira Guerra do Ópio, em 1842, Hong Kong participou dos Jogos Olímpicos pela primeira vez em 1952, de forma autônoma. Em 1997, retornou ao controle da China, com o status de região administrativa especial. Porém, seguiu competindo com delegação própria separada da chinesa, por ser uma Região Administrativa Especial do país, exercendo extrema autonomia com exceção de questões de defesa e política externa. Sua participação exemplifica bem a capacidade e a capacidade de reconhecimento de uma delegação pelo COI, ainda que não constitua a representação de um Estado em si. Macau, diferentemente, embora também Região Administrativa Especial, não possui delegação própria autorizada.
Taiwan, cujo nome oficial é o de República da China, é um bom exemplo de outra delegação envolvida em disputas territoriais com a China continental. O regime que inicialmente exerceu controle sobre toda a China exilou-se na ilha conhecida no Ocidente como Formosa com a Revolução de 1949. O governo foi um dos fundadores da ONU, e seguiu sendo reconhecido como representante internacional da China até 1971, quando foi substituído pela outra força governamental, a comunista República Popular da China, que tinha controle territorial da parte continental do país.
Hoje, é apresentado como uma democracia de reconhecimento internacional limitado, exercendo controle apenas sobre Formosa e outras pequenas ilhas. O país possui delegação olímpica nomeada Taipé Chinês, reconhecida pelo COI como participante distinto da delegação chinesa. O nome é fruto da enorme pressão exercida pela República Popular, fazendo com que a comunidade internacional evite o uso de um nome que possa implicar que Taiwan seria um país independente.
Por sua vez, a participação da delegação da Palestina nos jogos também pode ser considerada geopoliticamente simbólica. O grupo, que contou com 19 integrantes, dentre eles seis atletas, foi o maior da história do Estado nos jogos, e representou o país em sua sexta participação. Apesar da falta de reconhecimento internacional amplo, o Estado Palestino foi integrado ao Comitê Olímpico Asiático em 1986 e ao COI em 1995, tendo sua primeira participação oficial nos Jogos de Atlanta, de 1996.
Devido à conturbada relação histórica entre Palestina e Israel, que configura um dos conflitos geopolíticos mais complexos da atualidade, é extremamente simbólica a participação palestina nos jogos. Desde a criação do Estado de Israel, em 1948, a Palestina perdeu seu território gradativamente: primeiro, por Resolução da ONU, depois, pelo avanço dos assentamentos israelenses e guerras motivadas por questões étnicas, políticas, religiosas e econômicas. Ainda, a falta de apoio externo, devido ao alinhamento a Israel de potências como os Estados Unidos e a maioria dos europeus, fez com que o grupo radical islâmico Hamas emergisse e liderasse o país em conflitos violentos com o Estado Judeu.
Apesar de independente, o Estado Palestino vive hoje sob certo controle de Israel: cerca de 60% do território, conhecido por Cisjordânia, possui total controle civil e militar israelense. Além disso, o país possui um reconhecimento internacional consideravelmente baixo: 109 países o reconhecem formalmente e é apenas membro-observador da ONU. O déficit de reconhecimento resulta das pressões exercidas por Israel e seus aliados. Por isso, a Palestina busca representação internacional através da adesão a organizações internacionais, como, além do próprio COI, o Tribunal Penal Internacional.
É importante ressaltar que a participação desses países, junto a outros, como o Kosovo, com representação formal e declarada, é também simbólica ao dar concretude ao chamado “Espírito Olímpico”, caracterizado pela união e convivência pacífica de todos os povos, independentemente das diferenças.
Por fim, merece menção o emblemático caso do Kuwait, geopoliticamente simbólico por ser o único a apresentar uma total inversão da lógica até então exposta: trata-se de um Estado que nunca teve sua legitimidade contestada, seja por outros Estados ou por organizações internacionais, mas que não foi autorizado a apresentar representação própria.
O país, no ano passado, aprovou em sua legislação norma que permite à Autoridade Pública do Esporte, espécie de ministério do governo, dissolver qualquer entidade esportiva situada no país, incluindo o Comitê Olímpico do Kuwait. Em razão disso, encontra-se com participação suspensa frente ao COI.
Para que os atletas não fossem individualmente prejudicados, o COI permitiu que participassem sob o título de equipe “Atletas Olímpicos Independentes”. Estes, porém, não puderam carregar a bandeira ou qualquer signo de seu país. Também as medalhas que obtiveram não foram atribuídas ao Kuwait.
* Gabriel Thomas Dotta, Henrique Albuquerque e Otávio Bonfim são acadêmicos do curso de Relações Internacionais do 5º Período. São, também, membros dos Grupos de Pesquisa “Redes e Poder no Sistema Internacional” e “América Latina – rompendo as barreiras de uma integração inevitável”.
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