sexta-feira, 15 de junho de 2018

Redes e Poder no Sistema Internacional: Uma sociedade dividida? A situação da Irlanda do Norte vinte após o fim conflito


A seção "Redes e Poder no Sistema Internacional" é produzida pelos integrantes do Grupo de Pesquisa Redes e Poder no Sistema Internacional (RPSI), que desenvolve no ano de 2018 o projeto "Redes da guerra e a guerra em rede" no UNICURITIBA, sob a orientação do professor Gustavo Glodes Blum. A seção busca compreender o debate a respeito do tema, trazendo análises e descrições de casos que permitam compreender melhor a relação na atualidade entre guerra, discurso, controle, violência institucionalizada ou não e poder. As opiniões relatadas no texto pertencem aos seus autores, e não refletem o posicionamento da instituição.



Uma sociedade dividida? A situação da Irlanda do Norte vinte anos após o fim do conflito 



Eduardo Henrique Werner *


O ano de 2018 marca o aniversário de vinte anos do Good Friday Agreement, acordo assinado na Sexta-feira Santa de 1998 e que colocou um fim, pelo menos em teoria, ao conflito de três décadas na Irlanda do Norte, que ficou conhecido como The Troubles. 

O conflito, que envolveu questões étnicas e religiosas, se deu entre duas principais facções. De um lado, havia os Nacionalistas, republicanos católicos, que eram a favor da saída da Irlanda do Norte do Reino Unido para se unir à República da Irlanda. De outro lado, estavam os Unionistas (também chamados de Lealistas), monarquistas protestantes que eram a favor da manutenção do status da Irlanda do Norte dentro do Reino Unido. 

As movimentações políticas desse período tiveram a participação de forças de segurança da Irlanda, da Irlanda do Norte e do Reino Unido. Porém, a maior parte da ação foi protagonizada por grupos paramilitares, como o IRA – Irish Republican Army, pelo lado dos Nacionalistas, e o UDA – Ulster Defence Association, pelo lado dos Unionistas. Foram 3.532 mortes ao longo dos 30 anos do conflito, sendo que mais da metade (1.935) eram civis. Cerca de 47.500 pessoas ficaram feridas, elevando o número de vítimas para mais de 50.000. 

Apesar do conflito ter começado oficialmente em 1968, as tensões nacionalistas entre os dois grupos remontam desde o início do século XVII, quando começou a presença de colonos protestantes ingleses e escoceses na província de Ulster, no norte da Ilha da Irlanda. Foram séculos de tensão e segregação entre as comunidades de católicos e de protestantes, que se viam mutuamente como uma ameaça. A Irlanda passou por uma guerra de independência e uma guerra civil no começo do século XX para que, somente em 1937, aprovasse em referendo que todos os vínculos que o país tinha com o Reino Unido fossem removidos. A República da Irlanda, porém, ainda reivindicava todo o território da ilha, incluindo a Irlanda do Norte. A Irlanda exerceu a sua independência total do Reino Unido ao escolher ficar neutra na Segunda Guerra Mundial, mesmo com o convite dos britânicos para se juntarem aos Aliados. 

Enquanto a situação na República da Irlanda, de grande maioria católica, se estabilizou nos anos seguintes, a Irlanda do Norte era um caldeirão fervoroso de ideais nacionalistas prestes a transbordar. A comunidade protestante era duas vezes maior que a católica e elas raramente se misturavam, seja nas escolas, no mercado de trabalho, ou mesmo dentro das cidades, com bairros bem definidos para cada comunidade. A taxa de desemprego dos católicos era o dobro da dos protestantes e os cargos mais altos da sociedade, assim como a força policial, eram ocupados por protestantes vistos como autoritários e opressores pelos católicos. 

Essa situação levou, nos anos 60, a uma série de protestos de católicos por direitos civis que logo se tornaram violentos e que foram fortemente reprimidos. Em 1969, a passeata de uma associação de protestantes entrou em uma região de maioria católica em Derry, uma das cidades mais católicas da Irlanda do Norte. Essa situação local resultou em violência e desordem generalizada em toda a Irlanda do Norte por quase uma semana, episódio que ficou marcado como o início do The Troubles. 

A violência e a segregação entre as duas comunidades só se intensificou com o passar das décadas. O IRA teve mais de 30.000 membros ativos em seu auge, enquanto o UDA teve cerca de 40.000 no início da década de 1970. Ambos os grupos protagonizaram ataques terroristas na Irlanda, na Irlanda do Norte, no resto do Reino Unido e na Europa Continental. Foram pelo menos 10 mil ataques a bomba realizados durante os 30 anos de conflito, principalmente em Belfast, a capital do país. 

Do lado dos Lealistas, o maior ataque aconteceu em 1974: organizado pela Ulster Volunteer Force, 34 pessoas morreram e mais de 300 ficaram feridas por explosões em Dublin e em Monaghan, ambas na República da Irlanda. De dimensões parecidas, o maior ataque protagonizado pelos Nacionalistas irlandeses aconteceu em 1998. Explosões feitas pelo IRA em Omagh, na Irlanda do Norte, mataram 29 pessoas e feriram mais de 300. 

O UDA e o IRA, os maiores grupos paramilitares de Lealistas e Nacionalistas, anunciaram cessar fogo em 1994 e em 1997, respectivamente. Isso foi de extrema importância para o processo de pacificação da Irlanda do Norte que culminou com o Good Friday Agreement de 1998. O acordo, que foi aprovado em referendo por 71,1% da população da Irlanda do Norte e por 94% da República da Irlanda, deu muito mais autonomia para o governo norte-irlandês dentro do Reino Unido, com a possibilidade de independência total caso seja o desejo da maioria da população, além de retirar a reivindicação do território norte-irlandês por parte da República da Irlanda. 

O IRA anunciou o seu desarmamento em 2001 e o fim da luta armada em 2005. O UDA, por outro lado, anunciou o fim da luta armada em 2007, enquanto outros grupos paramilitares Lealistas, como o UVF e o Red Hand Commando, se desarmaram completamente em 2009. Desde então ataques terroristas e de cunho nacionalista estão se tornando cada vez mais raros na Irlanda e na Irlanda do Norte. Uma pesquisa desse ano feita pela Sky News mostra que 61% dos moradores da Irlanda do Norte se sentem mais seguros desde o acordo de 1998, enquanto 30% se sentem tão seguros quanto antes e 9% menos seguros. 

Apesar dessa melhora na segurança, a segregação entre as duas comunidades ainda é muito visível nas grandes cidades da Irlanda do Norte. A mesma pesquisa revelou que 62% dos eleitores do DUP – Democratic Unionist Party, e 65% dos eleitores do Sinn Féin, os dois maiores partidos Unionistas e Nacionalistas do país, afirmam que todos ou quase todos do seu círculo social são da mesma religião. 

Mas sem dúvidas o maior símbolo dessa divisão são as chamadas Peace Walls, grandes muros que separam bairros de protestantes e de católicos. Atualmente existem pelo menos cem deles espalhados por toda a Irlanda do Norte, principalmente em grandes cidades como Belfast, Derry, Lurgan e Portadown. 

Os muros podem chegar a mais de 7m de altura e se estendem por 34km ao redor do país. O número de muros se multiplicou mesmo após o acordo de 1998, sendo que o primeiro deles foi derrubado somente em 2016. A meta do governo norte-irlandês é de acabar com todos os muros até 2023. Hoje em dia, além de dividir comunidades, as muralhas se tornaram pontos turísticos, principalmente em Belfast, pelo valor histórico e por seus graffiti. 

Outro lugar em que a sociedade norte-irlandesa pode ser analisada é no esporte. Dos 12 times que competem na primeira divisão do futebol da Irlanda do Norte, somente um se considera oficialmente católico: o Cliftonville. Todos os outros ou são protestantes ou não se posicionam sobre isso. Recentemente, na final da Copa da Irlanda do Norte disputada entre Cliftonville e Coleraine, um time de protestantes, o hino do Reino Unido foi tocado, o que resultou em protestos por parte da torcida do Cliftonville, que vaiou e fez muito tumulto, e dos próprios jogadores, que abaixaram a cabeça em um sinal de não aceitação do hino. 

Violência entre torcidas de times de católicos e protestantes foi extremamente comum durante a segunda metade do século XX e, apesar de terem diminuído significativamente, embates ainda ocorrem. Porém ainda há esperança. A seleção de rugby da Irlanda é composta por jogadores tanto da República da Irlanda como da Irlanda do Norte, que jogam pela mesma bandeira e pelo mesmo hino, criados exclusivamente para o time. A seleção é cotada como uma das favoritas para vencer a Copa do Mundo de Rugby de 2019.


* Eduardo Henrique Werner é acadêmico do Curso de Relações Internacionais do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA) e Pesquisador do Grupo de Pesquisa "Redes e Poder no Sistema Internacional".

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