quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Aconteceu no UNICURITIBA: A política internacional dos eventos esportivos - Geopolítica dos eventos esportivos mundiais, Olimpíadas e poder

No dia 16 de agosto de 2016, o Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba) sediou o evento "OLIMPÍADAS: História, Política e Direito". Abaixo, leia a transcrição de umas das falas, do Prof. Gustavo Glodes Blum


Geopolítica dos eventos esportivos mundiais, Olimpíadas e poder


Gustavo Glodes Blum [i]

Boa noite.

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer ao Unicuritiba pela realização deste evento, de tanta relevância num momento em que vivemos aquelas que já estão sendo chamadas, tanto por meios de comunicação como por diversos setores da sociedade civil, de “as Olimpíadas mais politizadas da história”. Obviamente, esta terminologia está sendo utilizada de acordo com o ponto de vista e o local de fala daquela ou daquele que faz essa afirmação. Fazendo uma pesquisa prévia para esta fala, encontrei pessoas desde o Frei Betto utilizando esse termo para atacar o exclusivismo com que os casos de dopping da Rússia estão sendo tratados, até os editores da Gazeta do Povo, jornal de característica conservadora e de recorte retrógrado em suas propostas políticas, utilizando-se do termo para afirmar que “as manifestações políticas durante os jogos revelam o nosso fanatismo do dia-a-dia”.

Não caberia aqui fazer uma leitura a respeito do que seria a política em uma leitura mais consubstancial, ou de delimitar o que realmente seria a política pois, como veremos, esse termo pode ser aplicado em vários momentos. É importante notar, porém, que durante as Olimpíadas do Rio esses termos, “política” e “politização”, vêm sendo utilizados grandemente para descrever diversos fatos que têm ocorrido recentemente. Não haveria, porém, algo intrínseco a estes grandes eventos esportivos mundiais que trariam, em si, algumas pistas para entender essa politização? Seriam as Olimpíadas do Rio as únicas que poderiam entrar nessa circunscrição? Como é possível pensar o que atualmente ocorre para mudar essa realidade, ou mais: é necessário mudar o que aí está? Seria a sustentabilidade o novo caminho das Olimpíadas, como demonstrado na Cerimônia de Abertura dos Jogos do Rio? Esses são alguns questionamentos que vou buscar mais suscitar que responder nessa breve explanação, inclusive para favorecer o debate e a discussão.

Começo, portanto, a partir do meu campo de conhecimento mais específico, que é aquele da Geografia Política e da Geopolítica. Cabe aqui uma pequena nota de diferenciação para compreender do que estamos falando, no que me baseio na obra de Wanderley Messias da Costa: [ii] há que se delimitar um certo limiar entre esses dois termos, que normalmente são utilizados para falar das mesmas coisas e acabam se confundindo. Enquanto no campo da Geografia Política utiliza-se o conhecimento científico para compreender-se de qual forma é possível fazer uma leitura dos poderes diversos através do uso do espaço, na Geopolítica analisa-se quais são as estratégias colocadas em prática pelos diversos tipos de atores sociais. 

Há uma discussão que costumo fazer com meus alunos a respeito dos níveis de cientificidade de ambas, mas que não cabe aqui. Cabe, apenas, apresentar que analisar a Geopolítica significa de certa forma buscar compreender qual maneira ocorre aquilo que começamos a fazer no século XIX e até hoje é a seara específica das Relações Internacionais, ou seja, a determinação das formas como o poder mundial está dividido. 

Vários autores buscaram trazer leituras a respeito disso, mas para nós o importante é compreender que alguns ferramentais da Geopolítica são interessantes para abordar de uma maneira satisfatória esses grandes eventos mundiais. Seriam os questionamentos básicos da Geopolítica que abordam quatro pontos principais: como ocorre a relação de forças no cenário internacional e nacional, por quais motivos ela se encontra dessa maneira, através de quais meios esse poder é instrumentalizado e quais as possibilidades de mudança num futuro próximo. Sem ser ortodoxo no sentido da Geopolítica clássica de Friedrich Raztel, Alfred Mahan, Karl Haushofer ou Halford Mackinder, vou tentar passar por estes quatro pontos para abordar estes megaeventos esportivos mundiais.

Para poder abordar estes quatro pontos, porém, me parece necessário compreender o contexto no qual estes jogos se enquadram, de sua criação na era moderna até os dias de hoje. Como todos estão carecas de saber – inclusive em razão da insistência da mídia em pasteurizar vários casos específicos das Olimpíadas e da Copa, por exemplo –, quando retomados ao final do século XIX através da ação do Barão de Coubertin, os Jogos Olímpicos tinham uma outra intenção que aquela que observamos atualmente, que é a da competição entre as nações. Como podemos observar em filmagens destas competições mais antigas, as Olimpíadas na era moderna não escapam de um contexto de superação humana, uma luta do homem sobre seus próprios limites.

Faço essa afirmação por dois motivos. Em primeiro lugar, pela insistência do próprio Barão, e do COI posteriormente, em não aceitar, neste primeiro momento, atletas profissionais. Banindo aqueles que poderiam estar já acostumados a superar as barreiras físicas e psicológicas dos grandes feitos esportivos, a intenção parece mesmo estar inserida no espírito de tempo do século XIX de que a humanidade seria o ápice da natureza, e o homem branco, em específico, seria aquele que representa o máximo da evolução natural. Ainda sob uma influência muito grande do darwinismo social, as Olimpíadas surgem como essa demonstração de força, e já como um poder simbólico, uma vez que estarão relacionadas também com as Exposições Universais, que buscavam demonstrar a partir do século XIX o poder e o simbolismo dos países no mundo.

Por outro lado, falo também em “uma luta do homem”, uma vez que a definição de humanidade evoluída, para o próprio Barão de Coubertin, se limitava à parte masculina e branca da população. É notória a história de que o Barão haveria ameaçado se demitir quando, forçado por pressões de alguns grupos feministas e a partir da participação de mulheres de forma não-oficial nos jogos de Paris, em 1900, de St Louis, em 1904, e de Londres, em 1908, se deparou com a questão da participação feminina nos jogos. 

Um relatório do Comitê Olímpico Internacional (COI) afirmaria, em 1912, antes da realização das primeiras Olimpíadas com a participação oficial de mulheres, que “uma Olimpíada com mulheres seria impraticável, desinteressante, não-estética e imprópria”. [iii] Num momento em que as Olimpíadas são proclamadas como “os Jogos das Mulheres”, é importante trazer esse debate novamente à tona, de forma a demonstrar a especificidade dos jogos à esta época.

Nesse primeiro momento, me parece que a função dos eventos esportivos mundiais seria a de uma demonstração de força, mas ainda individualizada. É a superação do homem sobre o homem, ainda se adaptando a um mundo que muda, e no qual começa a decadência da ordem internacional europeia embasada no colonialismo (e sua noção de supremacia racial) e na supremacia humana sobra a natureza. Não à toa, os primeiros jogos Olímpicos, ainda restritos em sua divulgação em razão da falta de meios de comunicação de massa e de um letramento maior das sociedades, não tiveram tanto impacto geopolítico no mundo, embora tenham sido suspensos pela Primeira Guerra Mundial. Algumas décadas depois, porém, este cenário mudaria em Munique, no ano de 1936.

A partir do momento em que as Olimpíadas são utilizadas pelo regime nazista para demonstrar na prática a superioridade da raça ariana e do volk alemão, as Olimpíadas passam a ter uma outra característica, e uma outra funcionalidade. A partir deste momento, tanto a quantidade de medalhas arregimentadas por um Estado-nação como o uso de aspectos simbólicos são fundamentais para a divisão de poder através dos eventos esportivos. Não à toa, é na década de 1930 que também ocorre o surgimento do outro grande evento esportivo mundial, que é a Copa do Mundo de Futebol Masculino, com a sua primeira edição no Uruguai em 1930. A forma a partir da qual começamos a observar esses eventos muda.

Essa função de competitividade vai continuar no período após a Segunda Guerra Mundial, tanto em razão da bipolaridade que então se estruturou nas Relações Internacionais, como pela popularização de meios de comunicação em massa que permitiram um acompanhamento mais próximo destes jogos. A competição também se torna relevante em razão de ser o momento em que as duas superpotências, os Estados Unidos da América e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, podiam entrar em confronto direto sem aniquilar a vida humana, uma vez que os jogos esportivos serviam de competições de procuração para uma guerra nuclear que não podia ocorrer sem efeitos catastróficos para todos. Este tema, porém, é muito debatido, e também em razão do tempo acho que seria mais interessante observar a partir da perspectiva da década de 1990.

Os Jogos de Barcelona, em 1992, representam mais uma mudança funcional nas Olimpíadas. Das competições amadoras da virada do século XIX para o XX, deixaria de ser expressivamente uma questão de competição entre as superpotências mundiais em razão dos processos que levaram à implosão da União Soviética na década de 1980, para passarem a ser observadas enquanto oportunidade mercantil-econômica. Com isso, quero afirmar que a questão da competição entre os atletas continuaria, assim como as disputas do quadro final de medalhas (acirrado, também, nos Jogos de Pequim e de Londres), mas passariam a contar com um papel fundamental a execução de projetos econômicos caracterizados por seguir as regras do neoliberalismo em voga na época. 

Até hoje, os Jogos de 1992 são considerados “um exemplo” do “legado positivo” das Olimpíadas. Esse legado, obviamente, é observado apenas no aspecto econômico, uma vez que os custos para a realização das Olimpíadas começam a crescer muito já a partir da década de 1980. Além das Cerimônias de Abertura e Encerramento, que nos permitem compreender a imagem que o país quer mandar para o resto do planeta, também me parece importante perceber como o crescimento dos jogos e as necessidades do avanço do esporte de elite aumentaram o custo da realização destas competições. 

Assim, não é mais possível falar destes grandes projetos sem falar numa primazia econômica sobre a política internacional desde a década de 1990, momento em que também os megaeventos esportivos sucumbirão à lógica da forma-mercado (para utilizar um termo advindo dos teóricos do neoliberalismo). Isso também justifica e demonstra uma evolução na importância política dos atores não-estatais já a partir dos anos da Guerra Fria, mas que a partir dos anos de 1990 serão fundamentais na exploração econômica dos megaeventos. 

O COI é um bom objeto de estudo de transformação de uma Organização Não-Governamental (ONG) internacional, por assim se dizer, que muda de característica ao longo de sua história. Pois não nos enganemos: o massacre que a Rússia anda sofrendo pode ser encarado como uma sanção não-política e não-econômica, mas é definitivamente geopolítica. Também, não achemos que a podridão da corrupção e das negociatas está apenas junto à FIFA, uma vez que o COI também tem se imiscuído em relações perigosas e controversas ao longo de sua história. Há todo um aparato geopolítico por trás da cara sincera e querida do alemão que roubou nossos corações na abertura dos Jogos do Rio, o bonachão Tomas Bach que começou seu discurso bem, já que se rendeu ao umbiguismo brasileiro e disse “boa noite”.

Assim, me parece que há uma mudança da finalidade nesta nova fase das Olimpíadas, na qual ainda nos encontramos. A mudança dos horários de vários esportes nos Jogos do Rio, a “despolitização forçada” das manifestações contra o governo interino e golpista, o fato de que dezenas, se não centenas de cadeiras nos locais de competição ficaram vazios demonstram que, ao contrário do que nos foi e é prometido, não haveria um benefício direto local das Olimpíadas, uma vez que elas estão voltadas para outros mercados, justamente. 

Não apenas o mercado consumidor das competições que assiste aos Jogos através da Televisão ou da Internet, mas todos os próximos quatro anos na publicidade esportiva e na comercialização de aparatos esportivos depende destes jogos. Como na Copa do Mundo, não são apenas as delegações que competem: ali, também estão seus patrocinadores. E isso leva aos nossos questionamentos. A própria pauta de compra e venda de materiais esportivos por parte de nós, consumidores de roupas e aparatos relacionados aos exercícios musculares, será pautado pelo desempenho dos materiais utilizados durante esta competição.

Para que eu não demore muito, e para ir finalizando minha participação, gostaria apenas de abordar o fato de que, se essa é a nossa realidade, a leitura dos pressupostos geopolíticos nos favorece uma última leitura: a possibilidade de mudança. Volta e meia sai no noticiário a informação de que alguma cidade ou país votou por não sediar as Olimpíadas em razão do custo de realização. Não me parece esse o caminho. Pois, no fundo e como pudemos ver com as delegações da Palestina e do Time Olímpico dos Refugiados, existem outras formas de realizar e fazer estes jogos. 

Um dos pressupostos básicos da geopolítica é a dinâmica, a mudança, e essa mudança pode ocorrer, caso ela tenha uma função política representativa e ajude a mudar um pouco as coisas. Me parece que iniciar discutindo as relações de poder nelas presentes, seu uso, e novas possibilidades como aquelas abertas pelos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, os Jogos Gay, a Copa do Mundo para Países Não-Representados na FIFA, nos apresenta algumas possibilidades de mudança, caso eles sejam utilizados por nós mesmos, questionados, melhorados e utilizados para a promoção de uma troca de fato entre as culturas e uma convivência que pode ser mais pacífica entre as nações.

Muito obrigado.

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[i] Internacionalista pelo Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA) e Mestre em Geografia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atualmente, é Professor Assistente Mestre I no Centro Universitário Curitiba. 

[ii] COSTA, Wanderley M. da. Geografia política e geopolítica: Discursos sobre o Território e o Poder. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013. 

[iii] BOULOGNE, Yves-Pierre. “Pierre de Coubertin and Women’s Sport”. Disponível em http://library.la84.org/OlympicInformationCenter/OlympicReview/2000/OREXXVI31/OREXXVI31za.pdf.

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