terça-feira, 16 de agosto de 2016

Acontece no UNICURITIBA: Olímpiadas e Direito Internacional – O COI como sujeito de Direito Internacional



No dia 16 de agosto de 2016, o Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba) sediou o evento "OLIMPÍADAS: História, Política e Direito". O artigo abaixo apresenta uma síntese de uma das exposições realizadas no evento.


Olimpíadas e Direito Internacional – O COI como sujeito de Direito Internacional





Michele Alessandra Hastreiter
 Mestre em Direito. Professora de Direito Internacional Público e Privado da UNICURITIBA.

            Os Jogos Olímpicos são eventos esportivos globais, cuja origem histórica nos remete à Olímpia, na Grécia, no Século VIII a.C. Trazidos à era moderna pelo Barão Pierre de Coubertin, fundador do Comitê Olímpico Internacional (COI) em 1894, os jogos de verão e inverno são realizados de dois em dois anos alternados entre si. Pelo seu caráter cosmopolita, os jogos proporcionam uma oportunidade única de comunhão entre os diferentes países, trazendo a partir do esporte a esperança em uma sociedade internacional pacífica e fraterna. É justamente em razão de sua vocação internacionalista inata que os Jogos Olímpicos despertam diversas questões para o debate no âmbito do Direito Internacional. 

            A primeira destas questões diz respeito ao papel do Comitê Olímpico Internacional (COI) na arena internacional.

            Sabe-se que o Direito Internacional Público é o ramo do Direito que disciplina a sociedade internacional. Esta sociedade, por sua vez, é formada por sujeitos – entes aos quais o Direito é destinado e que possuem capacidade de atuação (direta ou indiretamente) no plano internacional. Assim, consideram-se sujeitos de Direito Internacional Público “os entes ou entidades cujas condutas estão diretamente previstas pelo direito das gentes e que têm a possibilidade de atuar direta ou indiretamente no plano internacional”[1]. Embora exista certa divergência doutrinária em torno da matéria, pode-se dizer que os sujeitos de Direito Internacional são aqueles aos quais as normas internacionais impõem direitos e obrigações.

            Na concepção clássica da sociedade internacional, os Estados eram seus únicos sujeitos – considerados, portanto, como sujeitos originários. Tratam-se sem sobra de dúvidas os sujeitos fundadores do Direito Internacional, já que no período sucedeu a Guerra dos Trinta Anos, os vários agrupamentos humanos começaram a se organizar em comunidades estatais e as normas que criaram para reger as relações que travavam deram origem ao próprio surgimento da disciplina. 

            Com o passar dos anos, o aumento na integração global ampliou os sujeitos que atuam nesta arena, passando a considerar, além dos Estados, também as Organizações Internacionais Governamentais – as quais, por serem formadas por Estados, ganhariam personalidade internacional derivada à dos entes estatais.  Hoje, porém, não se pode dizer que apenas os Estados e as Organizações formadas por Estados atuam na sociedade internacional. O debate contemporâneo acerca do rol de sujeitos de Direito Internacional encampa outros autores de relevância crescente, dentre os quais cabe destaque às organizações não governamentais (ONGs).

            As ONGs existem nas mais diversas áreas de preocupações humanas e muitas atuam através de diferentes Estados nacionais. Por isto, é bem verdade que algumas ONGs possuem um status jurídico reconhecido em tratados e em conferências internacionais – o caso mais notório é o do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, organização que desempenhou papel vital na proteção de direitos humanos e na garantia do cumprimento de obrigações de Direito Internacional Humanitário em diversas situações.

            É precisamente dentro deste contexto em que se inserem os questionamentos sobre o Comitê Olímpico Internacional (COI). O COI é uma organização não governamental que, como já se mencionou, foi criada em 1894 pelo Barão Pierre de Coubertin. Com sede na Suíça, a organização sem fins lucrativos detém os direitos sobre os Jogos Olímpicos – possuindo também a palavra final nas disputas emergentes a partir dos Jogos. O COI também controla os Comitês Olímpicos Nacionais e as Federações Esportivas Internacionais – os quais, em conjunto, recebem a insígnia de “Movimento Olímpico”.

            O funcionamento do COI é regulado pela chamada Carta Olímpica, um conjunto de regras para a organização dos Jogos, composto por 5 capítulos e 61 artigos. Dentre suas principais funções, destacam-se: a escolha das cidades sede e sua fiscalização para garantir que a cidade escolhida seguirá as regras da Carta Olímpica; o reconhecimento dos Comitês Olímpicos Internacionais e de seus respectivos direitos; a determinação de novos membros do COI e a negociação de direitos televisivos e de imagem. 

            Em 01 de novembro de 2000, o Conselho Federal Suíço (país sede do COI) assinou um acordo com o Comitê no qual reconheceu a dimensão mundial de sua atuação e sua importância para as relações internacionais, outorgando-lhe personalidade jurídica própria com o objetivo precípuo de garantir-lhe liberdade de atuação. Isso significa, por exemplo, que o COI tem liberdade para contratar estrangeiros para trabalharem em sua sede sem se limitarem as regras migratórias suíças. 

            De acordo com David J. Ettinger[2], porém, o reconhecimento do COI como sujeito de direito internacional é, inclusive, anterior ao Acordo celebrado com o governo Suíço, sendo que as regras da Carta Olímpica podem ser consideradas regras de Direito Internacional Consuetudinário – que vinculam todos àqueles que, voluntariamente, decidem participar dos Jogos Olímpicos e do COI. 

            Um exemplo deste reconhecimento pode ser encontrado na jurisprudência estadunidense (no caso Martin v. International Olympic Committe), quando corredoras norte americanas ingressaram com uma ação contra as Olimpíadas de Los Angeles de 1984, solicitando que fossem incluídas as provas de atletismo feminino para 5km e 10km (ambas previstas na programação das provas masculinas). O argumento era o de que a não inclusão destas provas para as mulheres consistia em discriminação de gênero e contrariava a Constituição do país. A decisão, no entanto, foi no sentido de que os Jogos Olímpicos eram organizados e regulados pelo COI e que as regras previstas na Carta Olímpica seriam regras de Direito Internacional, não podendo ser alteradas unilateralmente pelos Estados Unidos.

            A confirmação do COI enquanto sujeito de Direito Internacional pela comunidade internacional de modo geral é, no entanto, bem mais recente. O COI já havia tentado reconhecimento por parte da ONU de sua personalidade jurídica na década de 1980, sem sucesso. Este reconhecimento, porém, surgiria em 2009, quando a Assembleia Geral das Nações Unidas concedeu ao COI o status de membro observador[3].  Em abril de 2014, as duas organizações celebraram um acordo onde reafirmam a contribuição das Olimpíadas para a promoção da paz e do desenvolvimento. Este acordo também consagrou o apoio da ONU à independência e autonomia do Comitê Olímpico Internacional na condução dos Jogos e do Movimento Olímpico.  

            Nas Olimpíadas do Rio de Janeiro de 2016, um exemplo do reconhecimento da personalidade jurídica internacional do COI ficou bastante evidente: o COI reconhece 206 países como membros, 13 a mais do que as Nações Unidas. Dentre estes membros, encontra-se o Kosovo, nação de independência jovem ainda não reconhecida plenamente por todos os países e tampouco pelo Brasil ou pela ONU.

            O território do Kosovo localiza-se na península balcânica, onde ficava a antiga Iugoslávia. Após a fragmentação do país, Kosovo passou a ser parte do território da Sérvia, que até hoje não reconhece sua independência, declarada de maneira unilateral em 2008. Esta declaração foi reconhecida por alguns países, como Estados Unidos, França e Alemanha, e pelo COI – em 2014 – que admitiu sua participação nos Jogos de modo independente. A judoca kosovar Majlinda Kelmendi ganhou a medalha de ouro e fez tocar o hino do Kosovo e hastearem a bandeira kosovar em território brasileiro, ainda que o país siga negando-lhe o reconhecimento.   

            Com isto, percebe-se haver pouco espaço para dúvidas: o Comitê Olímpico Internacional é um sujeito de Direito Internacional e as normas que emana – sobretudo por meio da Carta Olímpica – são normas de Direito Internacional Público, vinculando os Estados que voluntariamente a ela se engajam, ao optarem por participar das Olimpíadas. Assim, o cumprimento do Brasil dos dispositivos desta Carta, não deve ser considerado como mera exortações de cunho moral, mas como normas de Direito Internacional às quais o país manifestou sua expressa adesão.


            Neste sentido, antes mesmo de confirmada a escolha do Rio de Janeiro como cidade sede, a Lei n° 12.035/2009 foi promulgada, com a finalidade de assegurar a candidatura do Rio de Janeiro às Olimpíadas.  A Lei buscou adequar o arcabouço jurídico nacional em diversos assuntos para atender as exigências do COI. Confirmada a escolha do Rio como cidade sede, a referida lei foi ainda alterada pela Lei 13.284/2016 – com novas exigências determinadas pela organização. Dentre as principais questões suscitadas pelo Ato Olímpico, destacam-se as seguintes:


  1.   Política Migratória: o Ato Olímpico dispensou visto aos estrangeiros vinculados à realização dos Jogos Rio 2016, considerando o passaporte válido e o credenciamento olímpico documentos suficientes para o ingresso no território nacional e sua permanência no período entre 05 de maio de 2016 e 05 de novembro de 2016; da mesma forma, por meio do Ato Olímpico, o Brasil comprometeu-se a conceder vistos de entrada para espectadores com ingressos válidos para os Jogos Olímpicos, independentemente de nacionalidade, raça ou credo.
  2. Propriedade Intelectual: o Ato Olímpico e a Lei que posteriormente o alterou (Lei 13.284/2016) concedeu proteção especial temporária equivalente a de marca de alto renome a diversas marcas relativas aos Jogos Olímpicos.
  3.    Liberdade de Manifestação: No art. 28 da Lei 13.284/2016, estabeleceram-se como condição de acesso e permanência nos locais oficiais a “não utilização de bandeiras para outros fins que não o da manifestação festiva e amigável”. 

            No que diz respeito à política migratória, é de se destacar que uma maior abertura a estrangeiros – em face de nosso Estatuto do Estrangeiro, extremamente obsoleto – é necessária e imprescindível inclusive em face da orientação voltada à primazia dos direitos humanos de nossa Carta Constitucional atual. Além das supracitadas inovações legislativas, o Brasil também suspendeu unilateralmente a exigência de vistos para diversos turistas durante o período dos jogos. Não obstante, é digno de nota que se perde uma oportunidade valiosa para rediscutir a política migratória como um todo quando se opta por endereçar a questão apenas por meio das soluções paliativas propostas para atender ao COI.

No mesmo sentido, a regulação de Propriedade Intelectual no período das Olimpíadas estabeleceu mecanismo diverso para registros, afastando custos e procedimentos, estabelecendo um regime de exceção que poderia conflitar com - nos dizeres de Márcia Carla Pereira Riberio e Giovani Ribeiro Rodrigues Alves (em artigo em que analisam a Lei da Copa, similar em muitos aspetos)[4]  - “o estado de direito que se pressupõe estabelecido sobre bases gerais e estáveis, não sobre particularismos justificadores do reconhecimento de privilégios”. Também neste sentido, perdem-se oportunidades de aperfeiçoamento do regime geral registral no Brasil, criando vantagens ao COI que não são estendidas a outros atores públicos ou privados.

No tocante ao registro das marcas tidas como “alto renome”, é de se destacar, ainda, que a proteção se dá a todos os ramos de atividade (e não apenas ao ramo específico da atividade do detentor da marca), com o objetivo de evitar os chamados free riders – caronistas, que sem ter contribuído para o sucesso de um determinado empreendimento, dele se aproveitam para pegar carona – e para proteção dos consumidores, que poderiam ser induzidos a acreditar que se trata de um produto ou serviço correlato ao original. No que diz respeito às Olimpíadas, é de se destacar que expressões genéricas como “Rio de Janeiro 2016” e “Olimpíadas” foram registradas, sendo vedado qualquer uso – comercial ou não -  até mesmo em eventos como “Olimpíadas Ecológicas” – conforme exemplo da Nota Técnica INPI/CPAPD n°002/2016[5] – sob o risco de gerar uma associação indevida com o evento protegido.  Esta proteção excessiva – que pode inclusive ser cerceadora do direito à liberdade de expressão – protagonizou um caso curioso perante à Suprema Corte americana (o San Francisco Arts & Athletics Inc. v. United States Olympic Committee)[6].

  A San Franscisco Arts & Atletics (SFAA) é uma associação sem fins lucrativos estadunidense que, em 1981, começou a divulgar uma “Olimpíada Gay”, com o objetivo de reforçar o orgulho homossexual em um contexto marcado por mortes relacionadas à Aids. O Comitê Olímpico, entretanto, interferiu para que a palavra Olimpíada não fosse utilizada. Seguiu-se uma disputa judicial. A Suprema Corte, ao final, deu ganho de causa ao COI, afirmando que a palavra “Olimpíadas” era produto do trabalho do Comitê ao longo do tempo e que o emprego pretendido pela SFAA poderia gerar uma falsa associação. Pode-se questionar, porém, se tal restrição não vai de encontro à liberdade de expressão – considerando mormente o uso histórico da expressão “Olimpíadas”, que nos remete a períodos tão longínquos quanto a Grécia Antiga.

Por fim, saliente-se que a liberdade de manifestação tem sido cerceada durante a realização dos Jogos Olímpicos, em razão da supramencionada vedação da manifestação que não seja “festiva e amigável”. Apesar do parágrafo primeiro do artigo 28 assegurar a liberdade de expressão, torcedores envolvidos com protestos “Fora Temer” foram retirados dos estádios e o COI prometeu recorrer da decisão da Justiça Federal que autorizou as manifestações e proibiu o cerceamento.  O Brasil vive um momento peculiar de sua história, com uma incerteza política que levou – inclusive – ao não comparecimento de diversos chefes de Estado à cerimônia de abertura, os quais não queriam reconhecer prematuramente o governo ainda interino e tomar parte na discordância interna. Dentro deste contexto, nada mais do que natural que as pessoas utilizem o momento dos Jogos Olímpicos para dar visibilidade internacional aos seus pronunciamentos. Restringir tal ação parece ser incompatível com os valores de uma sociedade pluralista e democrática.

Nota-se, portanto, que o Brasil adotou uma série de medidas excepcionais na regulação dos Jogos Olímpicos, atendendo às exigências do COI.  Concebendo o COI como um sujeito de Direito Internacional Público, não há dúvidas de que tais medidas resultam do consentimento soberano do Brasil manifestado ao candidatar-se a sediar os jogos e devem ser cumpridas em obediência ao princípio do “pacta sunt servanda”. Porém, dois questionamentos permanecem:


  • Concebendo o Direito Internacional como um conjunto de regras formado voluntariamente pelos Estados – que a elas manifestam sua adesão – é de se questionar se os ganhos das Olimpíadas excedem os custos (inclusive democráticos) de sediar os jogos, de modo que a escolha brasileira possa ser justificada.
  • Considerando o escopo não lucrativo do Comitê Olímpico Internacional e suas finalidades de promoção do desporto, da paz, da relação amigável entre os Estados e, sobretudo, do espírito do fairplay (como previsto no Artigo 40 da Carta Olímpica), questiona-se se não deveríamos exigir também do COI que atue como um jogador imbuído deste espírito em suas ações na arena internacional – evitando, assim, exigências descabidas e, principalmente, cerceadoras da liberdade de expressão e de manifestação.


  



[1] MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 9ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015,p. 449.
[2] ETTINGER, David J. The Legal Status of the International Olympic Committee. January 1992. Volume 4. Issue 1. Pace International Law Review. Disponível em: http://digitalcommons.pace.edu/pilr/vol4/iss1/4. Acesso em 15 de Agosto de 2016.
[4] RIBEIRO, Márcia Carla Pereira; ALVES, Giovani Ribeiro Rodrigues. Do particularismo normativo em matéria de propriedade imaterial – legislar para quê(m)?. In: DEMETERCO NETO, Antenor e CASTRO, Rodrigo Pironti (Org).Temas de Direito Econômico: A Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Curitiba: Clássica Editora, 2013. 
[6] HORBACH, Beatriz Bastide. Proteção as marcas olímpicas e liberdade de expressão: fair play?. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-ago-06/observatorio-constitucional-protecao-marcas-olimpicas-liberdade-expressao-fair-play. Acesso em 15 de agosto de 2016.

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