sábado, 5 de outubro de 2019

Me indica um filme: HANNAH ARENDT – DE MARGARETHE VON TROTTA


A análise do filme “Hannah Arendt” fez parte da avaliação do Primeiro bimestre da disciplina de Introdução ao Estudo do Direito, ministrado pela Prof. Michele Hastreiter. O texto abaixo foi escolhido pela professora, dentre mais de 50 trabalhos  recebidos, para a publicação no Blog. 

Por Fernando A. Yazbek - acadêmico do Primeiro Período de Relações Internacionais 
 A ótima interpretação do ator Ben Kingsley no filme “A Operação Final“, dirigido por Chris Weitz, serve muito bem como prólogo para o filme quase biográfico de Hannah Arendt. O nazista Adolf Eichmann, trazido a forma por Kingslay, tem na Argentina o Mossad – serviço secreto israelense – na sua cola. O longa trata de todo o processo da captura do alemão pelos agentes secretos, entre eles Peter Malkin, interpretado pelo ator Oscar Isaac, famoso pela filmografia de temática judaica. “Operação final” já traz – de maneira mais velada que o filme sobre Arendt – certo debate sobre a legitimidade do seqüestro e julgamento de Eichmann por Israel.
“Hannah Arendt” começa com a detenção de Eichmann em Buenos Aires e se desenrola pela intenção de Arendt, àquela altura uma intelectual consagrada, de cobrir – para o jornal New Yorker – o julgamento em Jerusalém, para onde o Mossad levara Eichmann.
Apesar de não empolgar pelos diálogos ora despretensiosos, ora desgastantes e pela paleta de cores exageradamente desbotada, o filme é equilibrado quando pretende não ser necessariamente uma biografia – uma vez que trata de um período curto da vida da filósofa – nem um documentário. Mesmo com imagens reais do julgamento de Eichmann, Margarethe Von Trotta toma cuidados no enredo para não torná-lo uma peça fundamentalmente jornalística.

Se em “Operação Final” pode-se destacar a caracterização perfeita de Kingsley como Eichmann, a recíproca é verdadeira quanto à semelhança que o filme de Arendt a retratou quando jovem no papel de Freiderike Becht. Ela aparece em “flashbacks” no decorrer do filme quando a judia Hannah tivera um caso acadêmico e amoroso com seu professor (bem mais velho) e filósofo Martin Heidegger, que viria a se juntar ao nacional-socialismo alemão.

A trama pode ser analisada à luz do Direito pelo “quadrado amoroso” que se desenvolve nos personagens de iniciais H: Hannah; Henrich (seu marido); Hans (um judeu amigo de longa data) e Heidegger.

Na comemoração de sua viagem ao Oriente Médio, Hannah e Henrich recebem uma porção de amigos para celebrar o encargo que Arendt recebera do periódico nova-iorquino. Entre eles estava Hans Jonas, judeu que fora soldado na Segunda Guerra. E é aí que a introdução ao estudo do Direito tira uns “frames” para si.

Henrich contesta veementemente o julgamento de Eichmann por Israel. Sua frase mais marcante é de que não se pode julgar a história, mas apenas um homem. Israel não era nem um Estado formalizado e reconhecido quando Eichmann teria cometidos seus crimes. O marido de Arendt se mostra, portanto, um discípulo do ramo positivista do Direito. Henrich fala da “mutabilidade” da legislação, isto é, que Eichmann seguia a ordem estabelecida para determinados tempo e sociedade. Ele exemplifica utilizando-se dos 10 mandamentos, em específico o quinto: o original “não matarás” fora alterado para “matarás”.

Hans, por outro lado, se mostra um verdadeiro jusnaturalista quando diz em todas as letras que Israel tem o direito divino de julgar o nazista, uma vez que o jus naturalismo se caracteriza por fundamentos religiosos de ordem universal e imutável.

Além dos embates filosóficos e teóricos, Henrich certa vez pessoaliza a discussão com Hans – que odeia Heidegger – ao dizer que o asco do judeu pelo nazista se devia mais em função do professor ter seduzido e namorado Hannah do que por suas tendências fascistas.

Hannah se estabelecera nos Estados Unidos quando ainda jovem e nunca tinha visto um nazista de perto – que foi inclusive uma motivação para sua vontade de ir a Jerusalém. Quando finalmente na Terra Santa, Arendt se espanta com a simplicidade de Eichmann em seu modo de falar, de agir e de pensar. Era um burocrata que, apesar de enviar um número enorme – embora incerto – de pessoas para o abate, não via mal maior em suas ações: apenas cumpria ordens.  Por nunca ter matado nenhum judeu diretamente e por ter tido relações amorosas com uma judia, Eichmann se sentia isento de qualquer punição. E Arendt, ao não retratá-lo como um monstro sanguinário bem como a propaganda e o senso-comum o imaginavam, foi humilhada por parentes, colegas acadêmicos e amigos.

Muito embora houvesse espaço para um drama pessoal, o filme mostra uma Hannah determinada e combativa de suas idéias que chocaram a comunidade judaica – a qual pertencia – e que a escorraçou.

Hannah Arendt foi uma mulher inteligentíssima, mas acima de tudo corajosa. E isto está posto tanto na História quanto no filme.  Foi preciso muito peito para afirmar – ainda mais no contexto de recém superação no nazismo – que líderes judeus não foram exatamente resistentes ao extermínio de seu povo. Ficaram, segundo ela, numa linha entre a resistência e a cooperação. De mais bravura que dizê-lo foi publicá-lo na mídia e academia liberais, burguesas e de grande presença judia de Nova Iorque.

Do julgamento de Eichmann, Arendt escreveu seu livro “A Banalidade do Mal”, que postula juntamente com “Origens do Totalitarismo” na mesma alta prateleira de obras para se entender o século vinte e um. Por ir de encontro com o pensamento “mainstream” da propaganda sionista e ocidental, o livro foi ameaçado de censura em Israel. 

Censura por si só não configura um estado de exceção, ou totalitário ou quiçá fascista. Mas em nada contribui para o processo civilizatório.

 O filme que não tem lá suas atrações cinematográficas se justifica pela importância histórica de Arendt, da superação do positivismo jurídico pelo nazismo e da obsolescência histórica e racional do jusnaturalismo. Não é o filme ideal para uma sessão da tarde, mas não deixa de ser importante acadêmica e pessoalmente.



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