segunda-feira, 2 de julho de 2018

Teoria das Relações Internacionais em destaque:As ondas do feminismo e a abordagem feminista de segurança internacional: O estupro como arma de guerra

Artigo apresentando na disciplina de Teoria das Relações Internacionais I, ministrada pela Profa Dra Janiffer Zarpelon, do curso de Relações Internacionais do Unicuritiba. As opiniões expressas no artigo pertencem aos seus autores e não refletem o posicionamento da instituição.


Laura Marrie de Oliveira Almeida
 
            A primeira onda acontece no fim do século XIX, caracterizado pelo ataque às diferenças discriminatórias insustentáveis, principalmente com relação ao trabalho e à política, o marco desse período é o movimento sufragista nos Estados Unidos e na Inglaterra. É nessa época também que começam a surgir os primeiros movimentos estruturados da luta feminista, focos de concentração e organização de protestos e manifestações a favor dos direitos políticos, sociais e econômicos das mulheres. No Brasil, o movimento feminista ganha força sob a liderança de Bertha Lutz, parte do movimento de mulheres da classe média e classe média alta, altamente instruídas e com grande influência política - Bertha é a responsável pelo projeto de lei que garante a extensão do voto às mulheres, em 1927.
            A segunda onda surge no final dos anos 1960, sob a influência dos movimentos políticos de 1968 e do sentimento que nasce no pós-guerra e ainda persiste nesse período. Aqui as reivindicações são a respeito da liberdade da mulher, de seu direito sobre seu próprio corpo e também sobre os papéis de gênero. Apesar do importante papel feminino realizado durante a guerra, a reinserção da mulher na sociedade pós-guerra não acontece de forma eficaz, e a imposição da conceito “bela, recatada e do lar” volta a aparecer - o ser mãe, esposa e dona de casa se torna novamente uma obrigação, mas a experiência de “liberdade” ainda é expressiva e buscada. Apesar da agenda internacional falar principalmente sobre a liberdade feminina, no Brasil, e na América Latina de forma geral, a necessidade era de combate à violência contra a mulher, em especial a doméstica e a policial (tendo em vista o período antidemocrático que a região experienciou).
            Nos anos 1990 a pauta feminista se reformula, principalmente no que diz respeito ao movimento nele mesmo. A terceira onda do feminismo, ou como chamados por alguns estudiosos, o pós-feminismo, abre as discussões sobre a identidade do movimento, expondo a exclusão das fases anteriores ao exibir um movimento universal e uniforme, deixando à margem a luta de mulheres negras, lésbicas, indígenas e pobres. Essa nova onda vai trazer pluralidade e novas realidades ao movimento, tornando-o mais inclusivo.
            Nas Relações Internacionais, as leituras feministas começam a surgir a partir da década de 1980, como consequência dos movimentos sociais das mulheres em todo o mundo. O lugar da mulher na política internacional foi um dos primeiros alvos de questionamentos de feministas nas RI - a ocupação de cargos menos importantes, ou ainda quase invisíveis, na visão de autoras como Ann Tickner e Cynthia Enloe, é fruto da desigualdade de gênero e também de sua construção social.
A construção de gênero é um tema recorrente nas discussões feministas, a idéia predominante é de que as relações de gênero são construtos sociais, fruto de um substrato psicológico subjetivo e inconsciente comum a todos os seres humanos, que definem o que é “feminino e masculino”. A partir disso, entende-se que nas Relações Internacionais os papéis de gênero tem o poder de gerar experiências masculinizadas, como o militarismo e a não inclusão de mulheres na política internacional. É possível dizer que a constante relação traçada entre a “fragilidade feminina” e o poder associados a cargos mais altos influenciam diretamente a conquista desses lugares pelas mulheres.
Para além das questões políticas, o feminismo nas Relações Internacionais tem contribuído para a reconsideração de certezas disciplinares à muito fincadas nesse campo de estudo. A segurança internacional, por exemplo, tem sido reformulada, notoriamente quanto a ideia de segurança e proteção.  As novas leituras feministas de segurança internacional vão questionar o Estado como provedor último da segurança de seus cidadãos, sugerindo a necessidade de proteção do indivíduo mesmo que este esteja sob um Estado. Além disso há uma exposição do estupro como uma estratégia militar que suscita reflexões sobre a situação de mulheres e crianças em situação de conflito.
O estupro em situações de guerra não é uma prática recente, é possível identificar essa realidade em diversas obras literárias e artisticas - como em A ilíada de Homero, onde as troianas são usadas como recompensa da guerra e instrumento de vingança, ou em The tragedy of lucretia de Botticelli - que representa a peça O estupro de lucrécia de Shakespeare.
Um caso atual do uso estupro como arma de guerra aconteceu na Guerra da Bósnia de 1992. Durante o conflito, campos de estupro foram instaurados (geralmente em escolas, armazéns e ginásios) onde as mulheres, principalmente muçulmanas e croatas eram obrigadas a ter relações sexuais com mais de um soldado. Em seu livro Mass Rape, Alexandra Stiglmayer conta do caso do campo em Doboj, onde duas mil mulheres e algumas crianças foram aprisionadas. Os relatos falam sobre a situação desesperadora que passavam no campo, onde frequentemente homens chegavam e escolhiam algumas mulheres para serem estupradas a fim de engravidá-las. Caracterizada por uma “limpeza étnica”, o objetivo final de tamanhos absurdos era de dominação da descendência e subjugação da mulher, e estima-se que cerca de vinte mil mulheres foram estupradas durante a guerra.
É possível citar também o caso vivido no Iraque, durante a invasão norte-americana. Há inúmeros relatos de estupros cometidos por soldados estadunidenses contra as mulheres nacionais, mas o tema não é muito abordado e discutido. É interessante citar a abordagem dada por Camen Rial em seu artigo Guerra de imagens e imagens da guerra, no qual a autora expõe a omissão das mídias de informação que nunca citaram os crimes cometidos no Iraque, dizendo ainda que a escolha “aleatória” (majoritariamente mulheres de estereótipo muçulmano) era usado como arma de guerra uma vez que esse estereótipo atribui ao ato um caráter de vitória, o transforma em um troféu contra a própria nação, de certa forma.
Diante de tal realidade, é legítimo o questionamento sobre as ações das autoridades internacionais, e da comunidade internacional como um todo a respeito do tema. É somente em 1993 que o estupro é reconhecido como arma de guerra, pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU. Fora da ONU, é aprovado em 1998 o Estatuto de Roma, que cria o Tribunal Penal Internacional, e que traz em seu texto a criminalização do estupro e de outros atos de violência sexual, especialmente como crime de guerra. Nesse ponto, as teorias feministas possuem papel fundamental, pois é a partir das discussões trazidas pelo movimento que a relação entre os gêneros são contestadas.
É importante ressaltar que as discussões sobre a mulher no cenário internacional ainda é inicial, sendo necessário inúmeros avanços tanto quanto à segurança na guerra, como em outras áreas, mas a inclusão do tema no debate internacional é significativo e serve como pressuposto para o avanço das discussões e das ações para a defesa dos direitos femininos em todo o mundo. 

REFERÊNCIAS

SARFATI, Gilberto. Teoria de Relações Internacionais. 1 Ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
RIAL, Carmen. Guerra de imagens e imagens da guerra: estupro e sacrifício na Guerra do Iraque. Revista Estudos Feministas. 2007, vol.15, n.1, pp.131-151. ISSN 0104-026X. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0104-026X2007000100009>.
PERES, Andréa Carolina Schvartz. Campos de estupro: as mulheres e a guerra na Bósnia. Cadernos Pagu. 2011, n.37, pp.117-162. ISSN 0104-8333. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0104-83332011000200005>.
PEREIRA, H. H. T. F. P.; CAVALCANTI, S. C. M. A prática do estupro de mulheres como estratégia de guerra sob o viés do direito internacional. Revista Tema. 2015 vol. 16, n. 24 e 25. Disponível em: <http://revistatema.facisa.edu.br/index.php/revistatema/article/view/232>.
MENDES, Marina Macêdo. Gênero e Relações Internacionais. Universidade de Brasília. 2011. Disponível em: <http://bdm.unb.br/bitstream/10483/1997/1/2011_MarinaMacedoMendes.pdf>.
SOUZA, A. T. C. O pessoal é internacional: como as teorias feministas transformam o estudo das RI. Universidade Estadual de Londrina, Anais do III Simpósio Gênero e Políticas Públicas, 2014. Disponível em: <http://www.uel.br/eventos/gpp/pages/arquivos/GT10_Ana%20Clara%20Telles%20C%20de%20Souza.pdf>.

SIQUEIRA, Camila Karla Barbosa. As três ondas do movimento feminista e suas repercussões no direito brasileiro. CONPEDI, XXIV Congresso Nacional de 2015. Disponível em: <https://www.conpedi.org.br/publicacoes/66fsl345/w8299187/ARu8H4M8AmpZnw1Z.pdf>.

Laura Marrie de Oliveira Almeida é estudante do curso de Relações Internacionais do Unicuritiba. 

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