sexta-feira, 24 de junho de 2016

Direito Internacional em Foco: A saída do Reino Unido da União Europeia


“(...)Temos de construir uma espécie de Estados Unidos da Europa, e só dessa forma centenas de milhões de trabalhadores serão capazes de reconquistar a simples alegria e esperança que tornam a vida interessante. O processo é simples. Tudo o que você precisa é o objetivo de centenas de milhões de homens e mulheres, fazer o bem ao invés de fazer o mal e como recompensa bênçãos ao invés de maldições(...)” (Winston Churchill – 1946)


Direito Internacional em Foco: A saída do Reino Unido da União Europeia

Michele Hastreiter*
  
              Setenta anos depois do discurso em que Winston Churchill conclamou a formação dos  “Estados Unidos da Europa”, sua terra natal é a primeira a decidir abandonar o projeto de integração europeu – em uma apertada votação popular em que o “Brexit” (Britain Exit) venceu o “Remain” por  cerca de 1 milhão de votos. É um momento de incertezas para o Reino Unido, para o futuro do continente europeu e para a comunidade internacional como um todo. Antes de traçarmos arriscados prognósticos para o futuro,  cabe, aqui, uma breve reflexão sobre a formação do bloco europeu e a participação do Reino Unido neste processo.

                A ideia de integrar a Europa surge ao final da Segunda Guerra Mundial – quando evitar um novo conflito e encerrar a rivalidade histórica entre os países do continente (sobretudo França e Alemanha) era a preocupação primordial dos líderes europeus. Neste contexto, Winston Churchill foi um dos pioneiros a defender uma Europa unida como o caminho para garantir a paz mundial. A proposta britânica, porém, era a de criar uma espécie de confederação pautada em uma cooperação intergovernamental sem que houvesse uma cessão de soberania a instâncias supranacionais. Em outras palavras, os britânicos acreditavam em um projeto de integração europeu no qual os Estados continuassem mantendo intacto seus poderes decisórios e nos quais a tomada de decisão dependesse de uma unanimidade entre os países.

                Existiam, porém, outras propostas para integrar o continente europeu e a perspectiva funcionalista - capitaneada pelo intelectual francês Jean Monnet - que defendia uma estratégia gradual de transferência de soberania, acabou prevalecendo.  Em 09 de maio de 1950 (data hoje celebrada como o Dia da Europa), o Ministro de Relações Exteriores francês Robert Schuman concretizou a declaração de Churchill de que a paz e o progresso na Europa passariam por uma cooperação Franco-Germânica, mas adotou os postulados teóricos do funcionalismo de Monnet para fundar a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço - CECA (formalmente criada pelo Tratado de Paris em 18 de abril de 1951).

                A CECA inovava por trazer instituições como a Alta Autoridade e o Tribunal de Justiça que poderiam emanar decisões obrigatórias aos Estados.  O Reino Unido, que não concordava com a criação de autoridades supranacionais, não estava entre seus membros fundadores (França, Itália, Alemanha Ocidental, Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo). Em 1957, os países da CECA avançam na integração e criam, por meio do Tratado de Roma, celebrado em 25 de março daquele ano, a Comunidade Econômica Europeia (CEE) – e novamente o Reino Unido optou por não participar do projeto de integração. No mesmo ano, criou-se também a Comunidade Europeia de Energia Atômica (CEEA) e as três Comunidades passaram a dar o norte da integração europeia.

                Em razão das recusas iniciais do Reino Unido a participar do bloco, o presidente francês Charles de Gaulle vetou o ingresso dos britânicos quando estes pediram para entrar nas Comunidades Europeias pela primeira vez, já na década de 60.  Foi só em 1973 que o Reino Unido finalmente aderiu ao projeto. Após este primeiro alargamento das Comunidades, o crescimento da integração europeia acelerou-se, tanto no que diz respeito ao número dos países membros quanto no escopo da integração.  A formação de um mercado comum, com livre circulação de bens, pessoas, serviços e capitais foi um grande passo – decidido com o Ato Único Europeu de 1987 e implementado com a fusão das três comunidades pelo Tratado de Maastricht em 1992. Foi quando se instituiu a União Europeia nos moldes atuais.

                Dali em diante, a integração europeia avançou e atingiu patamares até então inimaginados pelo Direito Internacional. O Direito Comunitário alargou-se fortemente pelas demandas criadas pelo mercado comum. Pautado na primazia sobre os direitos nacionais, vários aspectos da vida europeia passaram a ser regulados por um Direito emanado de instâncias comunitárias. Criou-se uma cidadania europeia e pouco a pouco, foi-se alterando as estruturas institucionais do bloco para possibilitar a adoção de uma moeda comum: o Euro.               

                Apesar dos avanços marcantes no projeto europeu, o relacionamento dos súditos da Rainha sempre foi mais distanciado, até mesmo porque o Reino Unido nutria especial proximidade com os Estados Unidos e demais países da Commonwealth. Não por acaso, opuseram-se a criação da Zona do Euro e dela nunca fizeram parte, assim como se mantiveram alheios ao Acordo Schengen – que cria um espaço de livre circulação com diversos países da região.  Este derradeiro plebiscito sequer foi o primeiro no qual os britânicos questionaram-se sobre a permanência no bloco: em 1975 foi feito um questionamento semelhante, mas a opção vencedora foi a de permanecer.
               
                É bem verdade que o processo europeu não se firmou sem críticas – muitas, especialmente acentuadas após o ingresso de países do leste europeu no bloco, a crise econômica de 2008 e a atual crise migratória. Estas críticas não se limitam ao Reino Unido e há quem diga, de fato, que o continente estagnou em seus propósitos de integração e que talvez um limite tenha sido atingido, sendo que a saída do Reino Unido é apenas o início de outras retiradas e inevitáveis reformas no bloco.

                O que se nota, porém, é que apesar de muitas críticas pertinentes na integração do continente - merecendo destaque aos questionamentos quanto a participação popular e o déficit democrático no bloco europeu, bem delineados por Jurgen Habermas em “Sobre a constituição da Europa” - muitos dos argumentos que defendiam a saída do Reino Unido do bloco são mais elementares e vão de encontro a uma visão cosmopolita de uma sociedade formada por cidadãos do mundo, na qual a existência da União Europeia tornava possível acreditar.  Dentro deste contexto, é difícil não interpretar a decisão como um enrijecimento das linhas imaginárias e invisíveis que separam os países e um retrocesso para a comunidade internacional.

                 É preciso destacar, por fim, que o procedimento de saída da União Europeia não é bem definido pelos Tratados que a constituíram.  A saída de países do bloco europeu está prevista no artigo 50[1] dos Tratados da União Europeia, na redação dada pelo Tratado de Lisboa (firmado em substituição a não aprovada Constituição da Europa em 2007), mas os passos para que isto aconteça dependerão de um acordo a ser celebrado pelo Reino Unido com o Conselho Europeu – no qual também ficará definido como será o relacionamento do país com os demais membros do bloco de agora em diante. O Tratado também prevê que as normas do ordenamento jurídico europeu continuam vigentes e obrigatórias para o Reino Unido até uma data a ser estabelecida neste futuro acordo – ou, em caso de não haver acordo, por mais dois anos.

                Isto significa que as mudanças não serão repentinas, mas é certo que a saída do Reino Unido afetará, no curto prazo, a economia mundial, a vida de milhares de trabalhadores migrantes e a dinâmica geopolítica global.



* Michele Hastreiter é professora de Direito Internacional Público e Privado no UNICURITIBA, responsável por organizar a seção Direito Internacional em Foco no Blog "Internacionalize-se". 

Fontes:
HABERMAS, Jürgen. Sobre a constituição da Europa. São Paulo: Ed. Unesp, 2012.
GOMES, Eduardo. Direito da integração econômica. Curitiba: Intersaberes, 2015.  
EUROPEAN COMISSION. Winston Churchill: calling for a United States of Europe. Disponível em: http://europa.eu/about-eu/eu-history/founding-fathers/pdf/winston_churchill_en.pdf             . Acesso em 24 de junho de 2016.
DN. A conflituosa relação entre o Reino Unido e a União Europeia. Disponível em: http://www.dn.pt/mundo/interior/a-conflituosa-relacao-entre-reino-unido-e-uniao-europeia-5241201.html. Acesso em 24 de junho de 2016.
BBC. O Dia em que os britânicos decidiram permanecer na Europa. Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/internacional-36592826. Acesso em 24 de junho de 2016.





[1]1. Todo Estado membro poderá decidir deixar a União de acordo com as suas leis.
2. Um Estado membro que decida deixar a UE deverá notificar a organização da sua intenção. De acordo com o que foi definido pelo Conselho Europeu, a UE devera chegar a um acordo com esse Estado, preparando a sua saída e tendo em conta o futuro da relação entre a União e esse mesmo Estado. O acordo deverá ser negociado tendo em conta o artigo 218(3) do Tratado de Lisboa sobre o funcionamento da UE. Deverá ser concluido em nome da União pelo Conselho Europeu, por maioria qualificada, depois de obtida a autorização do Parlamento Europeu.
3. O Tratado deixará de estar em vigor para o Estado em questão a partir da data acordada no acordo ou, caso não seja possível, dois anos depois da notificação referida no parágrafo dois, a não ser que o Conselho Europeu, depois de chegar a acordo com o Estado em causa, decida extender esse periodo.
4.Relativamente ao disposto nos parágrafos segundo e terceiro, o membro do Conselho Europeu que representa o Estado que abandona a União não participará nas discussões do Conselho Europeu que lhe digam respeito. Deverá ser acordada uma maioria qualificada de acordo com o artigo 238(3)(b) do Tratado, sobre o funcionamento da UE.
5. Todo Estado que tenha abandonado a UE e queira voltar à mesma, terá de se sujeitar ao processo disposto no artigo 49”. 

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