quarta-feira, 22 de junho de 2016

Direito Internacional em Foco: O Caso da Guerrilha do Araguaia e a Decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos







 A seção "Direito Internacional em Foco" é produzida por alunos do 3° período do Curso de Relações Internacionais da UNICURITIBA, com a orientação da professora de Direito Internacional Público, Msc. Michele Hastreiter, e a supervisão do monitor da disciplina, Gabriel Thomas Dotta. As opiniões relatadas no texto pertencem aos seus autores e não refletem o posicionamento da instituição.



O Caso da Guerrilha do Araguaia e a Decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos

Diego Silvi, Fabiane Levisky, Franciele dos Anjos e Gabriela Albini

 

            A partir de 1964, com a implantação da ditadura militar no Brasil, alguns movimentos de esquerda, perseguidos e excluídos da cena política formal, passaram a se radicalizar em vistas de oferecer respostas ao regime vigente por meio da luta armada. Tais movimentos foram brutalmente reprimidos pelo Estado, de forma que, à época, o cidadão comum sequer chegava a tomar conhecimento de sua existência. Nem todos os traços, no entanto, foram apagados, e alguns casos passaram a ser descobertos e visibilizados após a redemocratização do Brasil, por iniciativa de familiares dos combatentes. Um caso emblemático é o da Guerrilha do Araguaia, que resultou nos anos 2000 na primeira condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos relativamente à ditadura.

            O projeto que ficou conhecido como Guerrilha do Araguaia teve início em 1966, quando cerca de setenta militantes do Partido Comunista do Brasil, já banido à ilegalidade, dirigiram-se para a área conhecida como Araguaia, por conta do rio  que por ali passava, localizada entre os estados de Goiás, Maranhão e Pará. Tinham como objetivo fundamental a implantação do socialismo no Brasil por meio da luta armada, aos moldes das Revoluções Chinesa e Cubana, e para tanto visavam organizar-se em um local longe do centro do poder público e conscientizar os locais para que aderissem à causa. Conforme camponeses da região também aderiam ao movimento, chegaram a somar cerca de noventa militantes no Araguaia.
  
            A preparação para a execução da guerrilha foi feita entre 1970 e 1973. Durante esse período, ocorreram cerca de seis operações das forças armadas nacionais com o objetivo de colocar um fim ao movimento, objetivo que foi conquistado. Até o final de 1973, todos os integrantes da dita guerrilha foram dizimados pelas operações. Dessa forma, o nome “guerrilha” é pouco apropriado, posto que a luta armada do Araguaia nem mesmo foi colocada em prática.
           
            Os militantes da causa foram executados onde se encontravam e muitos corpos ainda hoje ainda não foram encontrados. Vale lembrar que todas essas ações militares eram feitas em silêncio, em nenhum momento sendo citadas na imprensa, não tendo sido a guerrilha de conhecimento popular, apenas tornando-se pública anos após o fim da ditadura e por iniciativa da sociedade civil. No caso em questão, metade dos guerrilheiros foram executados quando estavam sob a tutela do poder público, ou seja, quando estavam sob custódia dos militares, não mais carregando armas.

            Os militantes do Araguaia foram torturados, mortos, tiveram sua liberdade de expressão e suas garantias judiciais negadas e vários outros direitos humanos violados. Como será visto mais adiante, segundo o Direito Internacional dos Direitos Humanos, os crimes de desaparecimento forçado, de execução sumária extrajudicial e de tortura, a exemplo de alguns dos perpetrados sistematicamente pelo Estado para reprimir a Guerrilha do Araguaia, são crimes de lesa-humanidade, imprescritíveis, cujos julgamentos não podem ser obstados pelo decurso do tempo, bem como por dispositivos normativos de anistia.

            Com o fim da ditadura militar no Brasil, muitos familiares dos guerrilheiros desaparecidos passaram a buscar informações sobre eles, sem obter qualquer resposta do Estado. O motivo para tal abstenção era a Lei da Anistia de 1979, pela qual eram anistiados todos que cometeram crimes políticos, eleitorais ou conexos a estes entre 1961 e 1979, a exemplo do extermínio promovido pelos militares no Araguaia, cujo caso não era passível de julgamento e, assim, não motivava investigações públicas. Só anos depois é que os familiares das vítimas descobriram que os militantes tinham sido mortos e que seus corpos nunca tinham sido encontrados, e o fizeram por iniciativas próprias.

            Os parentes dos militantes entraram, em 1982, com uma Ação Civil contra a União, buscando informações mais precisas, mas sem qualquer êxito. Como resposta, entraram em contato, em 1995, com o Centro pela Justiça e o Direito Internacional, e, com sua assistência, denunciaram a abstenção do Estado brasileiro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O fundamento da Comissão ao acatar o caso foi a ausência de resposta pelo Estado quanto ao pedido dos familiares entre 1982 e 1996. Sua competência é baseada na Convenção Americana dos Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil em 1998.

            O Estado brasileiro rechaçou todos os pedidos feitos pela Comissão, entre 2001 e 2007, requerendo o arquivamento do caso, usando como base as obrigações decorrentes da Lei da Anistia. Frente às negativas do Estado, a Comissão finalmente submeteu o caso à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, cuja jurisdição é também aceita pelo Brasil desde 1998. A Comissão indagou, fundamentalmente, sobre a compatibilidade da Lei da Anistia com a Convenção Americana de Direitos Humanos, e também sobre a existência de violações de diversos artigos do referido tratado, como do direito à vida e à proteção judicial. O caso foi nomeado “Gomes Lund e outros vs. Estado Brasileiro”.

            O Estado brasileiro alegou perante a Corte que esta não seria competente para analisar o caso e que não teria havido esgotamento de recursos internos de julgamento, requisitos necessários para qualquer julgamento na instância. Ambos os argumentos foram negados, mas o primeiro merece especial destaque. Quando da ratificação da Convenção, em 1998, o Brasil fez a ressalva de que os crimes de tortura e execução de pessoas só poderiam ser analisados se ocorressem depois daquela data, argumento levantado no caso Araguaia. A Corte respondeu que fatos envolvendo desaparecimento forçado de pessoas constituem espécie de sequestro, cuja consumação se propala pelo tempo, sendo, assim, crime permanente, não se aplicando a ressalva.

            Em novembro de 2010, analisadas todas as provas e defesas, a Corte Interamericana de Direitos Humanos proferiu sua sentença. Os principais pontos proferidos foram: a)  as disposições da Lei da Anistia que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana e carecem de efeitos jurídicos; b) o Estado foi responsável pelo desaparecimento forçado e, em decorrência, pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal; c) o Estado descumpriu com sua obrigação de adequar seu direito interno à Convenção, haja vista a interpretação e aplicação dada à Lei da Anistia; e d) por afetar o direito de conhecer a verdade e de buscar e receber informação, o Estado violou o direito à liberdade de pensamento e de expressão.

            Em decorrência dos achados, foram impostas uma série de obrigações ao Estado, cabendo especial destaque à de conduzir eficazmente a investigação penal dos fatos do caso e determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja. É dizer: investigar apropriadamente o ocorrido no Araguaia e punir seus responsáveis. Tal obrigação segue sem ser cumprida, com o Estado usando como fundamento a Lei da Anistia.

            Paralelamente, um caso dentro do Brasil melhor esclareceu a posição nacional, em absoluto descompasso com o achado da Corte de que as disposições da Lei da Anistia brasileira são incompatíveis com a Convenção Americana e carecem de efeitos jurídicos.

            A OAB ingressou, em 2008, com uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no Supremo Tribunal Federal, pedindo a anulação parcial da Lei da Anistia de 1979. O STF decidiu, por sete votos a dois, contra a revisão da Lei, mantendo o perdão a todos os crimes políticos da ditadura, colocando os torturadores no mesmo patamar que os torturados. Cabe destacar que, além do Judiciário, o Executivo reafirmou a decisão do Supremo, tendo a Advocacia-Geral da União defendido, durante o processo, o mesmo entendimento que viria a ser adotado pelos ministros.

            Ainda mais infeliz que a decisão da ADPF foram as posteriores opiniões expressas por ambos os poderes com relação à decisão da Corte Interamericana. Segundo o então presidente do Supremo, Cezar Peluso, a decisão da Corte “não revoga, não anula, não caça a decisão do Supremo [...] provoca efeitos [somente] no campo da Convenção”. Para o ministro Marco Aurélio, a decisão da Corte “pode [apenas] surtir efeito ao leigo no campo moral”. O Advogado-Geral da União disse que “o Brasil não está obrigado a cumprir decisões da Corte Interamericana”. As infelizes opiniões trouxeram várias manifestações contrárias por parte de juristas e da sociedade civil. Com elas, parece justo dizer, o Estado brasileiro reafirmou sua falta de compromisso tanto com o Direito Internacional como um todo quanto com os direitos humanos.

            Por fim, merece nota o fato de que, quarenta e dois anos após a sua adoção no âmbito internacional, o Brasil permanece sem a devida ratificação da Convenção sobre Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes de Lesa-Humanidade, não obstante tê-la assinado. Teoricamente, essa falta de ratificação é superada, pois, como entendeu a própria Corte Interamericana, a sua observância obrigatória decorre do costume internacional, e não exclusivamente de tratados. A doutrina chega a reconhecê-la como jus cogens, não passível de não reconhecimento por Estados individuais. Como visto, no entanto, tais entendimentos não afetam em muito a prática do Estado brasileiro.

            Assim, é prudente reafirmar que a jurisprudência, o costume e a doutrina internacionais consagram que nenhuma lei ou norma de direito interno, tais como as disposições acerca da anistia, as normas de prescrição e outras excludentes de punibilidade, deve impedir que um Estado cumpra a sua obrigação inalienável de punir os crimes de lesa-humanidade, por serem eles insuperáveis nas existências de um indivíduo agredido, nas memórias dos componentes de seu círculo social e nas transmissões por gerações de toda a humanidade. Em similar sentido, afirma expressamente a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, da qual o Brasil é parte, que nenhuma norma de direito interno pode justificar descumprimento de obrigação decorrente de tratado, tal como a Convenção Americana dos Direitos Humanos, sendo inaceitável a posição do Estado brasileiro adotada no caso da Guerrilha do Araguaia.






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