Por Lígia Penia
“Seu Deus nos
diz:“crescei e multiplicai-vos” , mas como terei esposa e filhos se não posso
sustenta-los nas terras que me me propõe”?
Touro Sentado, chefe
indígena
O
pós colonialismo faz parte do grande grupo do terceiro debate nas relações
internacionais. Esse é o grupo pós positivista que traz à tona perspectivas
muito diferentes das clássicas dentro da área, e os estudos relacionados ao
tema em questão serão especialmente diferentes por adotarem perspectivas
teóricas marginais.
Na
perspectiva imperialista há o centro, o colonizador, e os outros sob seu
domínio. Do centro vem o domínio material, que se dá a partir da tomada das
terras, por exemplo. Pensando a partir da perspectiva pós colonialista, existem
vários centros, e se apenas alguns poucos têm poder, a desigualdade se vê nas
margens, mas não apenas materialmente, mas também no processo que segue após a descolonização,
no qual se percebe que a visão de mundo permanece, o padrão de vida, os
comportamentos: a cultura do dominador que incide sobre o dominado, são
exemplos o modo pelo qual a história foi contada, as referências e a aplicação
do pensamento. A desconstrução pós colonialista questiona essa forma de ver o
“outro”, e propõe recontar a história reconhecendo o “eu”, além de propor a partir
daqui novas alternativas.
Para
chegarmos aí, a proposta é analisar novamente o que conhecemos como correto,
óbvio, porque a partir daí podem-se compreender outras verdades, e sociedades
completas, inclusive, que sob esse véu foram violentadas material e ideologicamente.
Sociedade
relevante à essa análise é a sociedade indígena na América do Norte, das tribos
Dakota, Ute, Soiux e Cheyenne retratadas por Dee Brown em seu livro “Enterrem
meu Coração na Curva do Rio”. O autor e historiador dedica seus estudos à
história americana: no título original “Bury My Heart at Wounded Knee”. Wounded
Knee foi o massacre da população indígena na reserva de Pine Ridge, que seria
pertencente ao povo Dakota. O filme, de 2007, é uma interpretação muito bela da
obra.
Holywood
é representação, como seu próprio nome diz, de uma terra ‘sagrada’, mas os seus
filmes de faroeste mostraram a morte de uma população que não teve a
oportunidade de mostrar o seu modo de compreender seu sagrado ali. “Enterrem
meu coração à margem do rio”, portanto, é oportunidade nova de compreender a
história a partir da perspectiva indígena, esquecida até então.
O
filme conta a história dos acordos entre o senado e os indígenas sobre
demarcação de território. Num primeiro contato, muitos índios foram mortos com
a vinda dos europeus à região, agora o senado compreendia estar numa nova fase
de articulação pacífica. É uma obra cheia de significados do começo ao fim, mas
dois momentos chamam especial atenção.
No
início do filme, um menino é escolhido para ter formação como médico, ele é
retirado da comunidade indígena que vivia para viver num padrão europeu.
Ohiyesa, na formação primária, está sentado na sala de aula quando a professora
faz uma pergunta e ele levanta sua mão para respondê-la. Ela o diz que apenas
poderá ouvi-lo quando tiver escolhido seu nome cristão. A partir daí Ohiyesa
passa a se chamar Charles. Charles realmente existiu.
O
nome tem grande importância na vida de uma pessoa, já que nele estão as raízes
sociais. Seu nome era característico de outra cultura, e como ela não era
permitida ali, só poderia começar a falar ao se enquadrar no padrão cristão
europeu enquanto Charles. Foi um ato de racismo e humilhação, não apenas da
professora, mas de toda aquela sociedade. Mais tarde, quando Charles já é
adulto, tem dificuldades em compreender algo diferente do que viu na sua
formação, por isso apoia os projetos dos “homens brancos”. Ao voltar à sua
família indígena, começa a compreender tudo o que viveu e a realidade e
sofrimento daquele povo. Passa então de apoiador para crítico, por isso de
médico oficial para desempregado e atordoado. Depois de meses com dificuldades
lhe é oferecido um trabalho para que se sustente: o de escolher nomes cristãos
para pilhas de índices com nomes de indígenas, tudo para facilitar a
identificação dessas pessoas pelo governo.
O
segundo momento é quando um grupo de homens do governo vai até as terras
indígenas para fazer uma proposta: demarcariam terras individuais para cada
família, onde poderiam plantar e morar. As terras remanescentes da reserva
seriam vendidas, por preço ínfimo, e o dinheiro lhes seria pago. Parece uma
proposta muito boa, segundo a lógica dos novos americanos, e aos seus olhos
irrecusável - porém não faz sentido algum perante a lógica indígena por
diversos motivos: os índios não
plantavam e apenas comiam de vegetais e frutas o que já havia naturalmente
nascido, índios caçavam, o que não pode ser feito na propriedade privada, já
que a caça exige vastos terrenos e, por último, como Charles mesmo pontua no
filme, na lógica indígena não existe a ideia de propriedade privada, não se
poderia nem compreender isso na linguagem já que nunca existiu para eles.
Aceitar a proposta significaria submergir na lógica do outro, por isso não o
fizeram, já que nada daquilo fazia sentido. Algum tempo depois definitivamente
deixou de existir, porque o massacre eliminou todos.
O
autor, Dee Brown, faleceu em 2002, tido como referência enquanto historiador
especialista da história indígena americana, e, enquanto escritor, deixou uma
vasta biblioteca com diversos títulos sobre o assunto.
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