segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Opinião: Cultura e Poder na História das Olimpíadas









Cultura e Poder na História das Olimpíadas

Eduardo Teixeira de Carvalho Junior
  Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná
Professor do Centro Universitário Curitiba - Unicuritiba

A restauração dos Jogos Olímpicos no século XIX pelo Barão de Coubertin foi um resgate do ideal de homem da Grécia Antiga a partir das questões sociais e políticas dadas pelo contexto histórico do século XIX, especialmente o nacionalismo e o imperialismo. O Discóbolo, escultura que representa um lançador de disco, foi muito cobiçada por Hitler por representar o ideal de corpo perseguido pelo nazismo.

Apenas recentemente o esporte passou a ser encarado como objeto de pesquisa nas Ciências Sociais. Por muito tempo foi considerado apenas uma atividade lúdica, sem relevância acadêmica. Atualmente, porém, vem se afirmando como um importante campo de pesquisa na análise da sociedade contemporânea. Afinal, os grandes eventos esportivos como as Olimpíadas tanto podem significar a superação de limites atléticos e técnicos do corpo humano, como para a legitimação de regimes políticos. Além disso, determinadas modalidades de esporte acabaram se tornando um instrumento de promoção da identidade nacional. Cite-se como exemplo o fato de muitos pesquisadores utilizarem a importância do futebol para a compreensão da sociedade brasileira. Assim, seguindo a máxima de Clausewitz ,poderíamos dizer que na era moderna o esporte se constitui como uma continuação da política por outros meios.

É preciso distinguir os jogos atléticos da antiguidade dos esportes modernos. Há uma diferença fundamental na função ocupada por esta prática em cada um destes contextos históricos. A partir da Revolução Industrial e da Revolução Francesa os esportes modernos emergem como uma prática social voltada para o controle e domesticação do corpo.  Seguindo as análises de Norbert Elias,trata-se do processo social em que o guerreiro se humaniza e se torna “homem da corte”, a violência e força física do guerreiro medieval são “domesticadas” pelos procedimentos “civilizados” da etiqueta de corte. (ELIAS, 2001) A prática do esporte nasce então de uma necessidade de “civilizar”, “disciplinar”, domar os instintos. Portanto, no século XIX o esporte preenche uma função social importante de acordo com exigências de uma sociedade disciplinar (FOUCAULT, 1987) e de acordo com os valores sociais do capitalismo. Na Antiguidade, por sua vez, o contexto era muito diferente.
Os jogos olímpicos na antiguidade
Na Antiguidade o “lugar” ocupado pelos Jogos Olímpicos é diferente da sua versão moderna, era uma espécie de festividade sagrada onde se representavam os valores de uma sociedade que cultivava a beleza do corpo e as virtudes cívicas. Os Jogos Olímpicos antigos surgiram na Grécia Antiga no ano de 884 a.C, data de fundação dos jogos, mas que passaram a ser contados somente a partir do ano 776 a.C. Duraram doze séculos até serem extintos no ano de 393 de nossa era pelo imperador romano Teodósio, o mesmo que tornou o cristianismo a religião oficial do Império Romano. Teodósio proibiu a prática dos jogos por considera-los um rito pagão.
Na Grécia Antiga, os jogos Olímpicos tinham um caráter sagrado, realizavam-se em Olímpia, na planície da Élida, em honra de Zeus, mas havia também os jogos Píticos, Nemeus, Ístimicos (GIORDANI, 1992). O mensageiro anunciava a celebração das grandes solenidades e ao mesmo tempo proclamava a trégua sagrada, o que acarretava a suspensão de todas as hostilidades e a inviolabilidade dos que se dirigiam a Olímpia. O participante deveria ser heleno de nascimento e homem livre, excluindo-se escravos e mulheres de forma geral.  Havia provas de corridas, lutas, lançamento de disco, corridas de carros (de duas rodas puxadas por cavalos) e o prêmio oferecido aos vencedores era a coroa de louro e o ramo de oliveira. Os vencedores ganhavam muito prestígio, em Esparta, por exemplo, poderiam ter o privilégio de combater nas batalhas ao lado dos reis.






Pinturas sobre a prática dos jogos foram encontradas em vasos e ânforas indicando a sua importância na sociedade grega antiga. Na primeira figura à esquerda vemos uma Taça do ano 500 a.C. – 480 a.C.  representando a prática do lançamento de dardo e lançamento de disco. Ao lado um vaso em forma de cálice do ano 510 a.C. representando os preparativos dos atletas antes das competições.
Além de festividade religiosa, os jogos olímpicos apontavam para uma característica importante do homem grego, a valorização da beleza e do vigor corporal. O historiador e filólogo alemão Werner Jaeger, especialista em história grega antiga, se notabilizou pelo seu trabalho sobre o conceito de Paideia, um conceito que representa o ideal de humanidade na visão da cultura grega antiga. (JAEGER, 1986) Este conceito se aproxima do que hoje chamaríamos de “cultura” e “educação”.
Na Grécia Antiga havia uma preocupação com a formação do cidadão, formação das virtudes voltadas para cidade.  Na República de Platão percebemos um debate sobre a virtude da coragem nos jovens, que não poderia ser confundida simplesmente com treinamento militar, trata-se da coragem que leva a virtude da justiça, do equilíbrio, a uma “grandeza da alma”.  Além da coragem, outras virtudes também eram consideradas importantes como a generosidade, harmonia, moderação, sabedoria.
A Paideia diz respeito tanto à educação do corpo quanto a do espírito. Defendia-se  um equilíbrio, aquele que pratica somente a ginástica acaba ficando tenso, degenerando em dureza que leva ao mau humor (PLATÃO, 2003, Livro III ). O conceito de Paideia exprime uma preocupação dos gregos em assegurar à comunidade um corpo de cidadãos aptos a defender a cidade e respeitar suas leis.  Assim o corpo dos jovens estava no centro das preocupações da cidade. 

Grécia: o despertar da Civilização
No século XIX,em que a História se constituía enquanto uma ciência, os historiadores não conseguiam explicar o rápido desabrochar da Civilização Grega, o “milagre grego”. Como explicar o brilhantismo intelectual de filósofos como Sócrates, Platão e Aristóteles? Além disso, os gregos inauguraram praticamente as principais áreas do conhecimento humano, como a Filosofia, História, Música, Matemática, Medicina, Teatro, Poesia,  Geografia. Houve uma corrida em busca das cidades perdidas da antiguidade, uma busca alavancada pela Arqueologia e que lembra muito os filmes de Indiana Jones, especialmente Indiana Jones e os caçadores da Arca Perdida.
As descobertas arqueológicas fascinavam a imaginação dos eruditos das principais Universidades europeias. Nas primeiras décadas do século XIX iniciaram-se as escavações na cidade de Olímpia, mais tarde as descobertas arqueológicas de Heinrich Schliemann e Arthur Evans iriam revolucionar o conhecimento sobre a antiguidade clássica. Schliemann, obcecado com a Ilíada e a Odisseia de Homero, era um comerciante rico que havia abandonado os negócios para tentar encontrar os lugares citados na obra de Homero. Durante muito tempo os estudiosos acreditavam que a Ilíada e a Odisséia fosse fruto de fantasia e imaginação. Muitos já haviam procurado os lugares apontados na obra sem sucesso, até que Schliemann descobriu a cidade de Troia em 1873 na colina de Hissarlik, na entrada do estreito de Dardanelos, atual Turquia. Mais tarde, um de seus colaboradores, Arthur Evans seria responsável pelas escavações do Palácio de Minos na ilha de Creta, o suposto local habitado pelo lendário minotauro.
O século XIX, por meio das descobertas arqueológicas, descobria os vestígios matérias de uma sociedade que até então estava encoberta de mistérios e lendas da mitologia. As novas descobertas arqueológicas reforçaram ainda mais o papel da Grécia Antiga como um modelo de sociedade a ser seguido pelas potências europeias. O modelo de homem grego da antiguidade passou a alimentar os ideais de nação e civismo na Europa, a exemplo do volk e do geist alemão.  

A restauração dos Jogos Olímpicos
O Barão de Coubertin, inspirado nos valores da Grécia antiga iniciou uma campanha para a difusão de práticas esportivas como instrumento pedagógico de educação, visava uma valorização do esporte para o desenvolvimento moral da juventude. A França de Coubertin saíra derrotada de uma guerra contra a Alemanha (Guerra Franco-Prussiana) e vivia sob uma crise moral e política. Depois de viajar pela Inglaterra, Coubertin inspirado na grandeza do império britânico e pelas teorias do pedagogo inglês Thomas Arnold, passa a defender a prática de exercícios físicos como meio de fortalecimento moral da juventude. Provavelmente seus esforços em difundir a importância dos esportes na formação dos jovens fazia parte de um projeto mais amplo de reforma educacional buscando resgatar o orgulho nacional dos franceses abalado pela derrota para os alemães. Entretanto, sua concepção de educação também foi inspirada em grande medida pelos ideias da antiguidade grega.
Coubertin promoveu palestras na União das Sociedades Francesas de Desportes Atléticos (USFSA) e viajou para os EUA em 1893 para divulgar suas ideias e obter o apoio dos norteamericanos. Coubertin lançou a ideia do restabelecimento dos jogos Olímpicos e logo em seguida criaria o Comitê Olímpico Internacional (COI). Depois de um esforço diplomático, consegue em 1886 a primeira reedição dos jogos olímpicos na Grécia.  Um helenista francês sugeriu a Coubertin adicionar a maratona na restauração dos jogos para remarcar a façanha do lendário soldado ateniense Filípedes que em 490 a.C. correu desde Marathon, na Ática, até Atenas numa distância de 42 KM para anunciar a vitória de Melcíades sobre os persas.

Os Jogos Olímpicos modernos: entre o realismo e o idealismo
Na Carta Olímpica de 1896, documento que estabelecia os principais valores norteadores dos jogos modernos, são apontados os objetivos de promover o desenvolvimento das qualidades físicas e morais que são a base do esporte; educar a juventude através do espírito esportivo para um melhor entendimento e amizade entre os povos, ajudando a construir um mundo melhor e mais pacífico; espalhar os princípios olímpicos pelo mundo, criando a amizade internacional; e assim, unir os atletas do mundo a cada quatro anos em um grande festival esportivo.
Contudo, as “nobres” ideias de Coubertin foram utilizadas para objetivos outros àqueles previstos pela Carta Olímpica. Os Estados passaram a usufruir os valores do esporte em benefício próprio na disputa de prestígio internacional para seus respectivos regimes políticos. Desde então, os Jogos Olímpicos não representam apenas a confraternização entre os povos ou a busca pela paz, mas também a disputa de interesses políticos e econômicos de Estados e corporações.


Na Olimpíada de Berlim Jesse Owens ao vencer as principais provas de atletismo, batendo os seus rivais “arianos”, humilhou publicamente os nazista e colocou em xeque as teorias racistas que predominavam no campo das ciências humanas até então.

Referências Bibliográficas:
ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed, 2001

FOULCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis : Vozes, 1987

GIORDANI, Mario Curtis.  História da Grécia. Petrópolis : Vozes, 1992

JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1986.

PLATÃO.  A República. São Paulo : Editora Martin Claret, 2003
Site oficial do Comitê Olímpico Internacional. Disponível em: https://www.olympic.org

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