quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Direito Internacional em Foco: Um direito para mim, mas um favor para você – o caso dos irmãos LaGrand


A seção "Direito Internacional em Foco" é produzida por alunos do 3° período do Curso de Relações Internacionais da UNICURITIBA, com a orientação da professora de Direito Internacional Público, Msc. Michele Hastreiter, e a supervisão do monitor da disciplina, Gabriel Thomas Dotta. As opiniões relatadas no texto pertencem aos seus autores e não refletem o posicionamento da instituição.


Um direito para mim, mas um favor para você – o caso dos irmãos LaGrand
Luis Gabriel Duizit, Samuel Weverson S. Pelentrir e Emílio H. Augustin

Um observador atento dos dias atuais pode prever a direção para a qual caminha o direito. Quando tratamos de DIP, sigla que o nosso leitor já conhece como sendo para ”Direito Internacional Público”, fica mais evidente tal rumo para quem com atenção observa: internacionalização do direito, globalização e multiplicação dos atores internacionais. Assim sendo, mostram- se necessárias normas internacionais que possam mediar o relacionamento entre o crescente número de atores. No entanto, por mais que possa ser percebida como inevitável essa mudança, que pode ou não ser uma evolução no sentido positivo da palavra, existe certa resistência por parte de alguns Estados no que diz respeito ao cumprimento de tratados. O presente artigo descreve um contencioso, uma divergência em matéria de peso de normas de um tratado que envolveu, pasmem os senhores, gramática na tradução. Este, leitor, é o caso da Alemanha (e seus cidadãos, os irmãos LaGrand) e os Estados Unidos da América.

Os dois alemães em questão, irmãos, Karl e Walter LaGrand foram julgados por um tribunal do estado do Arizona, EUA., que os considerou culpados do homicídio de um funcionário de uma agência bancária após a mesma ser roubada. Condenados à pena capital, foram executados em 1999. Para o Direito Internacional tal sequência de acontecimentos ganhou relevância em razão da não observância de normas da Convenção de Viena sobre Relações Consulares e por uma posterior contravenção a uma ordem da CIJ, a Corte Internacional de Justiça, também conhecida como o principal órgão judicial das Nações Unidas, pelos Estados Unidos da América.

Condenados em 1984 pelos crimes que aconteceram em 1982, o Estado alemão veio a ter conhecimento do caso apenas em 1992, sendo que foi oficialmente notificado apenas em 1998. No ano seguinte, ano da aplicação da sentença dos irmãos, a Alemanha instaurou um processo junto à CIJ por violação efetuada pelos E.U.A. na Convenção de Viena sobre as Relações Consulares com base no julgamento, e as consequentes condenações, dos irmãos LaGrand terem acontecido sem que os dois tivessem sido informados de seus direitos segundo consta no artigo 36, parágrafo 1º, alínea b) da citada convenção: ter notificado o órgão consular pertencente ao Estado do qual um nacional detido faz parte sobre a detenção do mesmo, e comunicarem-se com o órgão em questão.

A partir da notificação oficial, a Alemanha entra em 2 de março de 1999 com medidas cautelares para que Walter LaGrand, com execução marcada para 3 de março do mesmo ano, não fosse executado até que a Corte examinasse e se pronunciasse sobre o caso – medida que foi acatada pela CIJ. Em vão foi o esforço judicial alemão já que em nada alterou o curso da condenação e Walter LaGrand acabou sendo executado em 3 de março de 1999, 15:00 no horário de Phoenix, no Arizona. Defendeu-se o Estado norte-americano com a alegação de que foi tardia a solicitação, o que foi rebatido pela CIJ com a alegação de que a Corte pode vir a analisar qualquer processo a qualquer tempo, assim que solicitado.

A mesma corte identificou divergência na interpretação do artigo 41 de seu Estatuto, uma vez que  o Estado europeu argumentou que os Estados Unidos violaram a obrigação de deixar de adotar qualquer medida que interferisse com o mérito de uma disputa em curso na CIJ – no caso, por meio da execução do alemão antes do pronunciamento definitivo da Corte – ao passo que  os EUA afirmavam que a decisão da Corte de suspender a execução não tinha caráter mandatório.  

O Estatuto da Corte Internacional de Justiça, como anexo a Carta da ONU, indicou que os textos em chinês, francês, russo, inglês, e espanhol faziam igualmente fé. No entanto, comparando as versões em francês e em  inglês, notou-se que algumas palavras acabaram sendo transpostas de um idioma para o outro com erros em seu sentido real.

A versão em francês sustenta que:
    "1. La Cour a le pouvoir d'indiquer, si elle estime que les circonstances l'exigent, quelles mesures conservatoires due droit de chacun doivent être prises à titre provisoire.
    2. En attendant l'arrêt définitif, l'indication de ces mesures est immédiatement notifiée aux parties et au Conseil de sécurité." (Emphasis added.)[1]

Neste texto, os termos "indiquer" e "l'indication" podem ser considerados neutros quanto a obrigatoriedade ou não das medidas sugeridas; no entanto, as palavras "doivent être prises" não deixam dúvidas quanto ao caráter imperativo da norma.

Por outro lado, a versão em Inglês estabelece o seguinte:

    "1. The Court shall have the power to indicate, if it considers that circumstances so require, any provisional measures which ought to be taken to preserve the respective rights of either party.
    2. Pending the final decision, notice of the measures suggested shall forthwith be given to the parties and to the Security Council."

 Segundo a interpretação estadunidense, o emprego de palavras como “ought” ao invés de “must” ou “shall” e “indicate” ao invés de “order” e “suggested” em lugar de “ordered” não traria caráter obrigatório no artigo. A seguir, uma tabela para melhor ilustrar o descrito acima:

Em português
O que foi escrito
O que deveria constar
Em português
Pode
Ought
must, shall
deve
indicar
indicate
order
ordenar
Sugerido
suggested
ordered
ordenado

Neste caso, os textos em Inglês e Francês eram igualmente autênticos, e nos termos da própria Carta da ONU, tinham “igualmente fé”, de modo que não existia, no próprio Estatuto, uma solução para as contradições apresentadas.

A Corte, então, socorreu-se da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (1969) – tratado que positivou normas consuetudinárias em matéria de elaboração, negociação, aplicação e interpretação de tratados internacionais. No artigo 33 da referida Convenção, consta que se a comparação dos textos autênticos revelar uma diferença de sentido, o sentido que melhor concilia o Tratado com o seu objeto e finalidade deverá ser utilizado.

A Corte, então, entendeu, em análise ao artigo 41  de seu Estatuto, que se fosse declarada como não obrigatória, tal disposição seria contrário ao objetivo e finalidade do Tratado, já que a Corte foi criada para resolver disputas internacionais por meio de decisões de natureza obrigatória. O artigo 41 tem como propósito assegurar a efetividade das decisões da Corte – e portanto, não há como sustentar que seu cumprimento seja facultativo. Concluiu, portanto, pelos efeitos obrigatórios da norma, entendendo pela violação do Direito Internacional perpetrada pelos Estados Unidos.

O caso apresentado mostra como se faz necessário que um tratado se faça claro para ambas as partes, com divergências mínimas ou inexistentes na tradução – em especial no que diz respeito aos tratados que preveem mais de um idioma como autêntico. Do contrário, um direito pode vir a ser interpretado como um mero favor.
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Fontes consultadas:
CENTRO DE DIREITO INTERNACIONAL. Caso LaGrand (Alemanha v. Estados Unidos da América). Disponível em: <http://www.cedin.com.br/wp-content/uploads/2014/05/casos-conteciosos_1999_01.pdf>. Acesso em: 20 de outubro de 2016.
HALL, C. O caso LaGrand e o sistema federado estadunidense: a utilização de uma “nova linguagem” na Corte Internacional de Justiça. Academia. Disponível em <http://www.academia.edu/23498162/O_CASO_LAGRAND_E_O_SISTEMA_FEDERADO_ESTADUNIDENSE_A_UTILIZA%C3%87%C3%83O_DE_UMA_NOVA_LINGUAGEM_NA_CORTE_INTERNACIONAL_DE_JUSTI%C3%87A._THE_LAGRAND_CASE_AND_THE_U.S._FEDERATED_SYSTEM_THE_USE_OF_A_NEW_LANGUAGE_IN_THE_INTERNATIONAL_COURT_OF_JUSTICE>. Acesso em: 20 de outubro de 2016.
INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Vienna convention on consular relations (Paraguay v. United States of America). Disponível em: <http://www.icj-cij.org/docket/index.php?sum=506&p1=3&p2=3&case=99&p3=5>. Acesso em: 26 de outubro de 16
POLIDO, F. P. Caso “Avena e outros nacionais mexicanos” (Mexico v United States of America). Disponível em: <http://www.faap.br/faap_juris/pdf/CASO%20_AVENA%20E%20OUTROS%20NACIONAIS%20MEXICANOS_.pdf>. Acesso em: 20 de outubro de 16





[1] A tradução realizada pelo Ministério das Relações Exteriores brasileiro conta com a seguinte versão: “Artigo 41. 1. A Côrte terá a faculdade de indicar, se julgar que as circunstâncias o exigem, quaisquer medidas provisórias que devem ser tomadas para preservar os direitos de cada parte. 2. Antes que a sentença seja proferida, as partes e o Conselho de Segurança deverão ser informados imediatamente das medidas sugeridas”.
 

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