A
seção "Direito Internacional em Foco" é produzida por alunos do 3°
período do Curso de Relações Internacionais da UNICURITIBA, com a
orientação da professora de Direito Internacional Público, Msc. Michele
Hastreiter, e a supervisão do monitor da disciplina, Gabriel Thomas
Dotta. As opiniões relatadas no texto pertencem aos seus autores e não
refletem o posicionamento da instituição.
Um direito para mim,
mas um favor para você – o caso dos irmãos LaGrand
Luis Gabriel Duizit, Samuel Weverson S. Pelentrir e Emílio H. Augustin
Um observador atento dos dias atuais pode prever a direção
para a qual caminha o direito. Quando tratamos de DIP, sigla que o nosso leitor
já conhece como sendo para ”Direito Internacional Público”, fica mais evidente
tal rumo para quem com atenção observa: internacionalização do direito,
globalização e multiplicação dos atores internacionais. Assim sendo, mostram-
se necessárias normas internacionais que possam mediar o relacionamento entre o
crescente número de atores. No entanto, por mais que possa ser percebida como
inevitável essa mudança, que pode ou não ser uma evolução no sentido positivo
da palavra, existe certa resistência por parte de alguns Estados no que diz
respeito ao cumprimento de tratados. O presente artigo descreve um contencioso,
uma divergência em matéria de peso de normas de um tratado que envolveu, pasmem
os senhores, gramática na tradução. Este, leitor, é o caso da Alemanha (e seus
cidadãos, os irmãos LaGrand) e os Estados Unidos da América.
Os dois alemães em questão, irmãos, Karl e Walter LaGrand
foram julgados por um tribunal do estado do Arizona, EUA., que os considerou
culpados do homicídio de um funcionário de uma agência bancária após a mesma
ser roubada. Condenados à pena capital, foram executados em 1999. Para o
Direito Internacional tal sequência de acontecimentos ganhou relevância em
razão da não observância de normas da Convenção de Viena sobre Relações
Consulares e por uma posterior contravenção a uma ordem da CIJ, a Corte
Internacional de Justiça, também conhecida como o principal órgão judicial das
Nações Unidas, pelos Estados Unidos da América.
Condenados em 1984 pelos crimes que aconteceram em 1982, o
Estado alemão veio a ter conhecimento do caso apenas em 1992, sendo que foi
oficialmente notificado apenas em 1998. No ano seguinte, ano da aplicação da
sentença dos irmãos, a Alemanha instaurou um processo junto à CIJ por violação
efetuada pelos E.U.A. na Convenção de Viena sobre as Relações Consulares com
base no julgamento, e as consequentes condenações, dos irmãos LaGrand terem
acontecido sem que os dois tivessem sido informados de seus direitos segundo
consta no artigo 36, parágrafo 1º, alínea b) da citada convenção: ter
notificado o órgão consular pertencente ao Estado do qual um nacional detido
faz parte sobre a detenção do mesmo, e comunicarem-se com o órgão em questão.
A partir da notificação oficial, a Alemanha entra em 2 de
março de 1999 com medidas cautelares para que Walter LaGrand, com execução
marcada para 3 de março do mesmo ano, não fosse executado até que a Corte
examinasse e se pronunciasse sobre o caso – medida que foi acatada pela CIJ. Em
vão foi o esforço judicial alemão já que em nada alterou o curso da condenação
e Walter LaGrand acabou sendo executado em 3 de março de 1999, 15:00 no horário
de Phoenix, no Arizona. Defendeu-se o Estado norte-americano com a alegação de
que foi tardia a solicitação, o que foi rebatido pela CIJ com a alegação de que
a Corte pode vir a analisar qualquer processo a qualquer tempo, assim que
solicitado.
A mesma corte identificou divergência na interpretação do
artigo 41 de seu Estatuto, uma vez que o
Estado europeu argumentou que os Estados Unidos violaram a obrigação de deixar
de adotar qualquer medida que interferisse com o mérito de uma disputa em curso
na CIJ – no caso, por meio da execução do alemão antes do pronunciamento definitivo
da Corte – ao passo que os EUA afirmavam
que a decisão da Corte de suspender a execução não tinha caráter mandatório.
O Estatuto da Corte Internacional de Justiça, como anexo a
Carta da ONU, indicou que os textos em chinês, francês, russo, inglês, e
espanhol faziam igualmente fé. No entanto, comparando as versões em francês e
em inglês, notou-se que algumas palavras
acabaram sendo transpostas de um idioma para o outro com erros em seu sentido real.
A versão em francês sustenta que:
"1. La Cour a
le pouvoir d'indiquer, si elle estime
que les circonstances l'exigent, quelles mesures conservatoires due droit de
chacun doivent être prises à titre provisoire.
2. En attendant l'arrêt définitif, l'indication de ces mesures est
immédiatement notifiée aux parties et au Conseil de sécurité." (Emphasis
added.)[1]
Neste texto, os termos "indiquer" e
"l'indication" podem ser considerados neutros quanto a
obrigatoriedade ou não das medidas sugeridas; no entanto, as palavras
"doivent être prises" não deixam dúvidas quanto ao caráter imperativo
da norma.
Por outro lado, a versão em Inglês estabelece o seguinte:
"1. The Court shall have the power to indicate, if it considers that
circumstances so require, any provisional measures which ought to be taken to preserve the respective rights of either
party.
2. Pending the final decision, notice of
the measures suggested shall
forthwith be given to the parties and to the Security Council."
Segundo a interpretação estadunidense,
o emprego de palavras como “ought” ao invés de “must” ou “shall” e “indicate”
ao invés de “order” e “suggested” em lugar de “ordered” não traria caráter
obrigatório no artigo. A seguir, uma tabela para melhor ilustrar o descrito
acima:
Em português
|
O que foi escrito
|
O que deveria constar
|
Em português
|
Pode
|
Ought
|
must, shall
|
deve
|
indicar
|
indicate
|
order
|
ordenar
|
Sugerido
|
suggested
|
ordered
|
ordenado
|
Neste caso, os textos em Inglês e Francês eram igualmente
autênticos, e nos termos da própria Carta da ONU, tinham “igualmente fé”, de
modo que não existia, no próprio Estatuto, uma solução para as contradições
apresentadas.
A Corte, então, socorreu-se da Convenção de Viena sobre o
Direito dos Tratados (1969) – tratado que positivou normas consuetudinárias em
matéria de elaboração, negociação, aplicação e interpretação de tratados
internacionais. No artigo 33 da referida Convenção, consta que se a comparação dos
textos autênticos revelar uma diferença de sentido, o sentido que melhor
concilia o Tratado com o seu objeto e finalidade deverá ser utilizado.
A Corte, então, entendeu, em análise ao artigo 41 de seu Estatuto, que se fosse declarada como
não obrigatória, tal disposição seria contrário ao objetivo e finalidade do
Tratado, já que a Corte foi criada para resolver disputas internacionais por
meio de decisões de natureza obrigatória. O artigo 41 tem como propósito
assegurar a efetividade das decisões da Corte – e portanto, não há como
sustentar que seu cumprimento seja facultativo. Concluiu, portanto, pelos
efeitos obrigatórios da norma, entendendo pela violação do Direito
Internacional perpetrada pelos Estados Unidos.
O caso apresentado mostra como se faz necessário que um
tratado se faça claro para ambas as partes, com divergências mínimas ou
inexistentes na tradução – em especial no que diz respeito aos tratados que preveem
mais de um idioma como autêntico. Do contrário, um direito pode vir a ser
interpretado como um mero favor.
-
Fontes consultadas:
CENTRO DE DIREITO INTERNACIONAL. Caso LaGrand (Alemanha v.
Estados Unidos da América). Disponível em: <http://www.cedin.com.br/wp-content/uploads/2014/05/casos-conteciosos_1999_01.pdf>.
Acesso em: 20 de outubro de 2016.
HALL, C. O caso
LaGrand e o sistema federado estadunidense: a utilização de uma “nova
linguagem” na Corte Internacional de Justiça. Academia. Disponível em <http://www.academia.edu/23498162/O_CASO_LAGRAND_E_O_SISTEMA_FEDERADO_ESTADUNIDENSE_A_UTILIZA%C3%87%C3%83O_DE_UMA_NOVA_LINGUAGEM_NA_CORTE_INTERNACIONAL_DE_JUSTI%C3%87A._THE_LAGRAND_CASE_AND_THE_U.S._FEDERATED_SYSTEM_THE_USE_OF_A_NEW_LANGUAGE_IN_THE_INTERNATIONAL_COURT_OF_JUSTICE>.
Acesso em: 20 de outubro de
2016.
INTERNATIONAL
COURT OF JUSTICE. Vienna convention on consular relations (Paraguay v. United
States of America). Disponível em: <http://www.icj-cij.org/docket/index.php?sum=506&p1=3&p2=3&case=99&p3=5>.
Acesso em: 26 de outubro de 16
POLIDO, F. P. Caso “Avena e outros nacionais mexicanos”
(Mexico v United States of America). Disponível em: <http://www.faap.br/faap_juris/pdf/CASO%20_AVENA%20E%20OUTROS%20NACIONAIS%20MEXICANOS_.pdf>.
Acesso em: 20 de outubro de 16
[1] A
tradução realizada pelo Ministério das Relações Exteriores brasileiro conta com
a seguinte versão: “Artigo 41. 1. A Côrte terá a faculdade de indicar, se
julgar que as circunstâncias o exigem, quaisquer medidas provisórias que devem
ser tomadas para preservar os direitos de cada parte. 2. Antes que a sentença
seja proferida, as partes e o Conselho de Segurança deverão ser informados
imediatamente das medidas sugeridas”.
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