quarta-feira, 20 de abril de 2016

Direito Internacional em Foco: Quanto há de “Estado” no Estado Islâmico?

 A seção "Direito Internacional em Foco" é produzida por alunos do 3° período do Curso de Relações Internacionais da UNICURITIBA, com a orientação da professora de Direito Internacional Público, Msc. Michele Hastreiter, e a supervisão do monitor da disciplina, Gabriel Thomas Dotta. As opiniões relatadas no texto pertencem aos seus autores e não refletem o posicionamento da instituição.


Quanto há de “Estado” no Estado Islâmico?

Ana Caroline Leite Pozza, Kamila Pierin e Kimberly Coelho de Oliveira


            O autodenominado Estado Islâmico aterroriza o mundo desde a proclamação do califado nas regiões da Síria e do Iraque. O grupo, na verdade, não é novo, sendo quase unânime o entendimento de que suas origens podem ser traçadas à invasão do Iraque no início do atual milênio. Desde seu desmembramento da Al Qaeda do Iraque, passou por diversas fases até sua configuração atual. Mas o suposto califado pode ser considerado um Estado perante o direito internacional?
            O Estado Islâmico do Iraque e da Síria (EI, ISIS ou Daesh) proclamou sua atual identidade internacional em 2013. Tem como líder Abu Bakr al Bagdhadi, autoproclamado Califa, denominação dada aos antigos sucessores de Maomé, atuando na região noroeste do estado do Iraque e na região central da Síria, além de reclamar direito sobre vastas regiões pertencentes a outros países. O grupo extremista vem ganhando cada vez mais espaço na mídia, sobretudo em resultado de suas ações contra a população civil  da região onde atua, como estupros, massacres de cristãos, xiitas, minorias étnicas e também ataques internacionais.
            Seus membros aderem a uma versão radicalizada do Islã sunita, em muito semelhante ao salafismo saudita. Nesta vertente radical, advogam pela aplicação literal das regras do Alcorão, ou da sharia, direito que provém das escrituras sagradas, e tem como inimigos os muçulmanos xiitas e a cultura ocidental em geral. O objetivo do grupo é estabelecer um sistema de governo monárquico tradicional islâmico, e também a expansão de seu território por todo o Oriente Médio, parte da África e da Ásia, e até mesmo da Europa.
            Segundo Mazzuoli, subjetivamente, um Estado é uma instituição criada pelos homens com a finalidade de organizar as diversas atividades humanas dentro de um dado território. Os elementos que o compõem, bem como a forma como são interpretados, variam conforme a análise. Para o mesmo autor, por exemplo, tais são: uma comunidade de indivíduos, um território determinado, um governo independente e a finalidade de zelar pelo bem comum daqueles que o habitam.
            Em que pese o direito positivado, a Convenção de Montevidéu sobre os Direitos e Deveres dos Estados de 1933 é por muitos considerada o corpo principal na matéria. Seu art. 1º estabelece como elementos do Estado: população permanente, território definido, governo e capacidade de estabelecer relações com outros Estados.
            Certo é que ao menos três características são apontadas como fundamentais em qualquer análise: território, população e governo. Um quarto elemento comumente identificado pela doutrina, substituindo o critério de Mazzuoli e o da Convenção de Montevidéu, é o da soberania.
            Assim, ainda que o EI venha conquistando vastos territórios, e independentemente de seu nome,  isso não parece bastar para que seja definitivamente reconhecido internacionalmente como Estado. Neste sentido, cabe uma breve análise dos elementos clássicos dos Estados.
            Primeiramente, como estabelecido tanto pelo tratado quanto pela doutrina, para tais fins o território de um Estado deve ser delimitado ou definido. Este não nos parece ser o caso do EI. Devido às constantes batalhas contra a coalizão internacional, as forças curdas e os governos da Síria e do Iraque, o suposto califado não conseguiu estabelecer um controle definitivo sobre as áreas que ocupam ou fronteiras reais para que o território ocupado pudesse ser considerado uma área delimitada, encontrando-se, na verdade, em constante oscilação.
            Em segundo lugar, a população deve ser permanente e, naturalmente, associada ao Estado em questão. Este ponto é nebuloso, uma vez que não se espera uma absoluta lealdade da comunidade de indivíduos a seu governo; ainda assim, também não nos parece aplicável.
            Apesar de estar sob o controle de fato do EI, sujeita inclusive a tributação, a quase totalidade das pessoas que vivem nessas áreas não quer ser parte do Estado Islâmico e não se compromete a qualquer vínculo concreto com o grupo, apenas se submetendo às arbitrariedades de seus líderes, o que não perece se enquadrar no conceito de população permanente.
            Por outro lado, pode-se argumentar que o conceito de governo é encontrado na atual configuração do EI. É de notar, por exemplo, que o grupo arrecada impostos e possui uma burocracia altamente organizada, contando com tribunais de aplicação da sharia, impondo sua lei e provendo “serviços públicos”, como a educação e a saúde. Estima-se que 17% da arrecadação tributária do EI seja usada para a prestação de serviços às pessoas que ali residem.
            Breve nota cabe também ao conceito de soberania, especificamente com relação à sua leitura política, segundo a qual a soberania é o poder do povo de se organizar como Estado. Nos parece inaplicável pelos mesmos motivos desenvolvidos ao discutir a inexistência de uma população permanente.
            De toda forma, com relação aos elementos que compõem os Estados, é importante se ter em mente que sua interpretação goza de bastante flexibilidade. Por exemplo, a Albânia e Israel foram reconhecidos como Estados antes do estabelecimento claro de suas fronteiras; a Bósnia foi reconhecida em meio às guerras iugoslavas, logicamente sem a existência de um governo efetivo; o mesmo ocorre hoje com a Somália ou a Líbia, que não possuem governos que controlem todo o território reconhecido internacionalmente como sob sua jurisdição.
            É partindo-se desses vácuos que muitos argumentam que, segundo tais critérios tradicionais, o Estado Islâmico poderia sim ser considerado um Estado mediante seu reconhecimento. E isto nos traz a outro conceito importante: o de reconhecimento de Estados.
            O reconhecimento de Estados é o ato voluntário e unilateral que reconhece a existência de um Estado independente em determinado território, aliando bases legais a visões políticas.
            Duas teorias existem quanto à natureza jurídica do reconhecimento: segundo a teoria constitutiva, o Estado só passa a existir a partir do momento em que é reconhecido como tal pelos demais Estados; para a teoria declaratória, o Estado em causa já existe e possui personalidade jurídica própria anteriormente a qualquer ato de reconhecimento, sendo tal ato apenas político. Não obstante presente em uma diversidade de tratados internacionais, como a própria Convenção de Montevidéu, esta última teoria tem perdido espaço na doutrina em nome da primeira
            É neste contexto que cada vez mais tem ganhado espaço o entendimento segundo o qual certos requisitos devem estar presentes para que se efetue o reconhecimento, sendo os principais o respeito aos direitos humanos e a autodeterminação dos povos. Exemplo, de certa forma, desse pensamento são países como o Brasil, que só reconhece Estados já reconhecidos pela ONU, sendo que a Carta desta estabelece que só “Estados amantes da paz” podem tornar-se membros.
            No momento atual, para manter sua existência como grupo, o EI necessita dispor de intensa máquina de propaganda nos mais diversos meios de comunicação, objetivando recrutar mais pessoas a aderir às suas ideologias. Para tanto, uma de suas marcas registradas é a reprodução de vídeos. Estima-se que cerca de 20 mil pessoas foram até agora recrutadas dessa forma, inclusive vindo da Europa. Para manter sua burocracia, contam com doações de patrocinadores ricos, extorsões e assaltos. Assim movimentam milhões de dólares.
            É possível concluir que certos elementos devem estar presentes para que uma entidade seja reconhecida como Estado, mas que tais elementos são bastante variáveis. Dessa forma, o fato resta no reconhecimento concreto, caso por caso; e a prática da comunidade internacional tem mostrado que, em muitos casos, o reconhecimento é inviável, seja por questões morais ou políticas. Dessa forma, conforme opiniões de estudiosos e do nosso entendimento da Convenção de Montevidéu de 1933, para nós, o Estado Islâmico não pode ser considerado um Estado.

FONTES CONSULTADAS:

YAMALI, Nurullah. What is meant by State Recognition in International Law. General Directorate of International Laws and Foreign Affairs, Ministry of Justice of Turkey (s/d).
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 5ª Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

FONTE DA IMAGEM:

https://www.publico.pt/mundo/noticia/o-que-e-o-estado-islamico-1690458



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