Por Fernando Yazbek*
De quatro em quatro anos o mundo pára para
assistir a essa tradição que é antecessora ao cristianismo e mais antiga até
que os países que nela competem. Os Jogos Olímpicos, como expressão atlética do
mais alto nível, chamam a atenção do público geral em proporções astronômicas:
foram 2,5 bilhões de espectadores da
cerimônia de abertura do evento no Rio de Janeiro, em 2016. Mas é pela sua
magnitude antiquíssima e universal que as olimpíadas captam mais ainda os
olhares de historiadores e internacionalistas. Crê-se que por volta de 776 a.C.
na Grécia Antiga se realizaram os primeiros jogos no santuário de Zeus, em Olímpia, como um
festival esportivo e religioso. O evento era marcado pelas competições
esportivas de luta e corrida, pelo caráter mitológico de homenagem aos deuses
do Monte Olimpo e, principalmente, pela trégua universal entre as
cidades-estado constantemente em guerra. Apesar do armistício e da fraternidade
dos Jogos Olímpicos da Antiguidade, apenas cidadãos gregos podiam participar.
Já na era cristã do ano de 393, os jogos foram suprimidos pelo imperador romano
Teodósio I, que proibiu o paganismo da competição.
O
marco moderno das olimpíadas foi a criação do Comitê Olímpico Internacional
(COI) em 1894, que organizou a primeira edição da nova era dois anos depois em
Atenas, Grécia. Os gregos tinham acabado de conquistar, em 1830, a
independência do domínio turco e os jogos de 1896 foram uma maneira de resgatar
a cultura clássica do país. Nesta primeira olimpíada moderna competiram 14
países. No Rio, em 2016, eram 206 delegações. As mudanças da geopolítica nesse
século e quarto moldaram os jogos, impulsionados pelas tecnologias da revolução
industrial e os esportes de massa, cancelados pelas guerras mundiais e
boicotados pelos polos na Guerra Fria. Já se viu de tudo desde então:
competições que eram mais políticas que esportivas, maratonista sendo
atropelado em 2004, bola entrando no gol direto do escanteio em 1924, atleta
negro faturando quatro medalhas de ouro na frente de Hitler em plena Berlim de
1936, o primeiro atentado terrorista considerado global em 1972 e o primeiro
ouro olímpico para um pais da África em 1960 depois da descolonização. Nunca
houve na modernidade, no entanto, um adiamento.
O
coronavírus, que ataca a China desde o final de 2019 e o ocidente desde o
começo de 2020, contabiliza, até o momento, mais de meio milhão de infectados
pelo mundo em todos os continentes. A Organização Mundial da Saúde (OMS) chegou
a considerar a doença uma pandemia de dimensões apocalípticas. Baseado nas
recomendações de segurança da OMS e no crescente número de vitimados pelo
covid-19, o COI decidiu - no dia 24 de março - pelo adiamento de um ano dos
Jogos Olímpicos de Tóquio 2020. Para entender as repercussões dessa decisão sem
precedentes, entrevistamos dois jornalistas esportivos, um historiador e uma
ex-atleta que falaram de cronograma, dos impactos históricos e esportivos, da
punição por doping imposta à Rússia e de xenofobia nas olimpíadas.
Daniel
Emmendoerfer Castro é jornalista e trabalha na Folha de São Paulo desde 2015.
Ele era o repórter designado para a cobertura do evento neste ano, pelo veículo.
Quando perguntado sobre como o COI atuou
no processo de adiamento, o repórter olímpico ponderou que a decisão tomada com
quatro meses de antecedência foi razoável, mas que o comitê falhou em não se
posicionar ao lado dos atletas desde a eclosão da pandemia. Para ele, houve uma
demora para admitir que poderia haver sim o adiamento, uma vez que queriam
entregar a definição de uma nova data dos jogos (definida quase uma semana
depois da postergação) junto à noticia da suspensão. Castro ressalta que se
abre um precedente inédito com uma olimpíada realizada em ano ímpar, já que
mesmo nos cancelamentos com as guerras se respeitou o quadriênio: “saindo do
livro de regras, quebra-se um tabu”.
De
fato, houve muita demora na decisão do COI e, se não fosse pela pressão do
governo japonês, “talvez demorasse mais”. Foi isto o que nos disse o jornalista
Ayrton Batista Junior, da rádio CBN (Central Brasileira de Notícias) e do site globoesporte.com.
Ele discorda de Daniel Castro de que se abre um precedente importante na
história dos jogos olímpicos por se tratar, no contexto da pandemia do
coronavírus, de um fato "absolutamente extraordinário". “Tusca Jr”,
como é conhecido o filho de Ayrton Batista - três vezes presidente do Sindicato
dos Jornalistas do Paraná e duas vezes secretário de estado de imprensa -, nos
lembra do tenista paranaense Thiago Wild que contraiu o covid-19 no
pré-olímpico. Sem o adiamento, Wild perderia todas as chances - ainda que
remotas como frisou Batista - de participar dos jogos em Tóquio se fossem em
2020.
Daniel
e Ayrton concordam que um ano faz muita diferença na perfomance esportiva de um
atleta de alto desempenho. Mas, por cada competidor reagir à sua própria
maneira, não há como cravar que algum país se beneficiaria do adiamento no
quadro de medalhas. O repórter da Folha frisa que atletas experientes têm a
vantagem de conhecer melhor o próprio corpo, na mesma medida que esportistas
mais jovens terão mais tempo para se desenvolver. Ele conclui, no entanto, que
nunca saberemos os medalhistas de 2020 que, certamente, não serão os mesmos de
2021. Já o produtor da CBN Esportes nos alerta para a situação delicada das
ginásticas com o adiamento. "Ter 19 anos é muito diferente de ter 20. O
auge [do ginasta] é precoce e dura muito pouco”. Diferente é a situação do
futebol masculino, em que só se permitem jogadores de até 23 anos. Resolve-se,
facilmente, afrouxando o limite de idade para 24, afirmou Ayrton Batista
Junior.
Outro
assunto que fez os colegas jornalistas discordarem foi a suspensão imposta pela
Agência Mundial Antidoping (WADA, na sigla em inglês) à Rússia, proibida de ser
representada em Tóquio 2020 e nos jogos de inverno de Pequim em 2022, além da
Copa do Mundo do Catar nesse mesmo ano. “[O adiamento dos Jogos] não altera
nada. Mesmo que a punição fosse apenas para os Jogos de 2020, deveria ser
mantida porque o COI pretende continuar com o ano 2020 na marca do evento”,
disse a “enciclopédia ambulante”, apelido carinhoso de Batista Jr. Para Daniel
Castro, na antemão, a suspensão de Tóquio faz como que haja tempo hábil para
haver julgamento da apelação russa na Corte Arbitral do Esporte, instância
máxima do direito esportivo. Havia temores, para Castro, de que não houvesse
julgamento. O adiamento dos jogos acabou, portanto, dando chances para que
ocorresse a apuração. Havendo decisão - favorável ou contrária - quanto à
Rússia, continua o repórter, acaba-se com a insegurança jurídica que paira
sobre as federações, que tratam os russos cada qual de sua maneira. Ele finaliza
reiterando que o cabo-de-guerra entre a Rússia, que se sente historicamente
injustiçada, e os Estados Unidos, que lideram o lobby para punições
severas a Moscou, só cria incertezas para todos do o universo esportivo.
Batista
Jr e Castro afinaram as respostas quando o assunto foi xenofobia. O surto do novo coronavírus, motivo do
adiamento dos Jogos Olímpicos de Tóquio2020 no Japão, teve seu epicentro na
vizinha China. Apesar de não haver fronteira terrestre entre os países, o
preconceito não respeita território. Muitos casos de xenofobia contra asiáticos
foram registrados na Europa, Estados Unidos e América Latina desde a explosão
da pandemia. Até mesmo Donald Trump, presidente da maior potência militar do
mundo, se referiu ao covid-19 como “vírus chinês”. Gesto foi repetido no Brasil
pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL), presidente da Comissão de
Relações Exteriores da Câmara dos Deputados e filho do Presidente da República,
que deflagrou uma crise diplomática com o maior parceiro comercial brasileiro.
Mesmo que a ignorância confunda um vírus com um ser humano, Ayrton Batista
Junior recorda que “a comunidade esportiva sempre deu exemplos de
solidariedade” e que os boicotes dos EUA aos jogos de Moscou em 1980 e da URSS
à olimpíada de Los Angeles em 1984 foram promovidas por estados e governos, não
pelo corpo esportivo. Daniel vê na xenofobia um grande mal do esporte
globalizado, mas acredita que o mundo esportivo tem pautado causas sociais com
maior atenção, haja visto a crescente onda de racismo que se observa em jogos
de futebol por todo o continente europeu. Ele também acredita que o COI deve
ficar vigilante quanto à intolerância, embora o próprio comitê internacional
seja historicamente distanciado de tópicos como este. Por sua abrangência
global, o COI proíbe manifestações políticas durante competições dos Jogos
Olímpicos. Castro ainda sublinha preocupação na relação hostil que o Japão
nutre de longa data com as próximas China e Coréia do Sul.
O
Blog Internacionalize-se também ouviu a ex-atleta, e também jornalista, Juliana
Veiga. Ela cobriu os Jogos Olímpicos de Londres em 2012 e do Rio de Janeiro em
2016 na bancada do telejornal esportivo SportCenter, no horário nobre da
emissora ESPN Brasil. Veiga, que é pentacampeã brasileira de snowboard, conhece
bem os dois lados do jornalismo esportivo e por isto viu com bons olhos o
adiamento já que “cuidar das vidas é prioridade, tanto de atletas quanto de
jornalistas”. Disse que a demora na tomada de decisão era esperada, por haver
infinitos fatores logísticos, esportivos e comerciais a serem costurados com a
suspensão. A pioneira do surfe na neve no Brasil explicou que, mesmo que a
quarentena, o distanciamento e o isolamento social - para frear o avanço do
vírus - afetem os treinos, os atletas tem maior facilidade para ajustar a
rotina e se recuperarem de lesão. Para ela, as Olimpíadas de Tóquio não
trarão grande prejuízo esportivo dos
competidores, mas sim emocional da sociedade como um todo.
Para
finalizar, o Blog ouviu o historiador Andrew Patrick Traumann, doutor em
História, Cultura e Poder pela Universidade Federal do Paraná. O adiamento dos
jogos que seriam em 2020, diz ele, entra pra história com igual importância dos
cancelamentos de 1916 em Berlim, 1940 em Tóquio (coincidentemente) e 1944 em
Londres. O professor de Relações Internacionais do Centro Universitário
Curitiba coloca as olimpíadas adiadas de Tóquio como mais relevantes
historicamente que os boicotes de EUA e URSS na Guerra Fria, uma vez que os
jogos aconteceram mesmo sem a presença deles. Traumann ainda vê a atual
suspensão em prateleira mais alta de notabilidade em comparação com os
atentados do grupo palestino Setembro Negro, que mataram 11 israelenses na vila
olímpica de Munique em 1972. Os assassinatos não são tão lembrados pelo público
em geral e fica restrito aos estudos das R. I. sobre o Oriente Médio, defende o
professor, enquanto o cancelamento dos Jogos Olímpicos por conta da pandemia do
coronavírus transcende essa bolha. O historiador parece discordar do repórter
Daniel Castro quando diz que o adiamento é, inclusive, pior para a Rússia,
porque retarda o cumprimento da punição.
Jogos
Olímpicos e política internacional sempre estiveram umbilicalmente ligados.
Esta relação passou, além dos já citados atentados terroristas, boicotes na Guerra
Fria e dos cancelamentos nas Grandes Guerras, pelo desmembramento da URSS em 1991, quando
Letônia, Estônia e Lituânia desfilaram em Barcelona (1992) com o hino do comitê
olímpico. Em 2000, o mesmo COI, que abrigou os ex-soviéticos desgarrados, baniu
o Afeganistão dos jogos de Sydnei em represália ao regime Talibã. As para-olimpíadas
- modalidade de competição para deficientes físicos e amputados - teve sua
criação no período que sucedeu a Segunda Guerra Mundial, porque havia uma
enormidade de feridos pelo conflito. Exemplos da combinação político-esportiva
dão uma lista extensa demais para se enumerar. O coronavírus soma a este
panorama e, possivelmente, levaremos gerações para entender totalmente o
impacto da pandemia nos Jogos Olímpicos e nas relações internacionais.
*Fernando Yazbek é aluno do segundo período de Relações Internacionais do UNICURITIBA e também cursa Ciência Política na Universidade Federal do Paraná. Além de integrar a equipe de 2020 do Blog Internacionalize-se, também é responsável pelo Blog Democratiba - que discute os meandros políticos que interferem na vida esportiva do Coritiba Foot Ball Club, seu time do coração.
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