domingo, 14 de outubro de 2012

Do Sistema de Estados à Sociedade Mundial: a abordagem da Escola Inglesa no filme No Man's Land


Por Fernando Archetti


A situação cômica retratada pelo filme ''Terra de Ninguém'' oferece considerações pertinentes para o estudo das Relações Internacionais. Enquanto os bósnios e sérvios encontram-se em um conflito regular um diante do outro, as Nações Unidas mantém-se mais ou menos passivas diante de sua missão alegadamente humanitária no conflito balcânico da última década do século passado, como que atadas em um limbo jurídico, no tradicional conflito entre as políticas de poder e a prevalência do Direito como forma de resolução de controvérsias. Assim, quando um soldado sérvio e dois bósnios, um deles preso sobre uma mina ativada por peso, sem poder se mover, veem-se presos em um trincheira entre as respectivas linhas de cada combatente, a ''Terra de Ninguém'', as Nações Unidas são chamadas para intervir na situação, já que a nenhum dos lados era claro o que ocorria ali.

Caro à tradição teórica da Escola Inglesa, o conceito de Sistema de Estados pode ilustrar a situação inicial do conflito. Para caracterizar-se um sistema como estatal, bastaria então que houvesse uma interação de qualquer tipo entre um número de Estados, sem que haja ainda um entendimento maior entre estes e um conjunto de valores compartilhado que permitisse um entendimento mútuo. Em um ambiente anárquico, buscar-se-ia os interesses nacionais, ou seja, a sobrevivência e tender-se-ia ao balanceamento de poder. Associa-se a esse estágio às políticas de poder. Então quando as duas partes beligerantes representadas no filme estão em conflito militar direto, estaríamos diante de uma situação corriqueira que bastaria para descrever o Sistema de Estados. Assim como o general prussiano Clausewitz definiu a guerra como mera continuação da política por outros meios, a opção bélica aparece como uma forma comum de solução de conflitos e disputas entre os Estados.

O desenrolar do filme a partir da dificuldade de resolver a situação na Terra de Ninguém mostra a interação entre os dois bósnios e o sérvio, cujo companheiro havia sido morto por um dos bósnios, quando então a ONU é chamada para o local. Isso traz a discussão sobre outro conceito central da Escola Inglesa: a Sociedade Internacional. Passar-se-ia a haver uma sociedade internacional quando então se desenvolvesse valores compartilhados entre os Estados, objetivos comuns e busca-se construir a convivência sob regras comuns, ou seja, o Direito Internacional, e então as instituições passam a garantir a efetividade dessas regras, pelo menos em tese.

Desde a dificuldade de intervir na situação, mesmo só de chegar ao local, fica ilustrada como há um longo caminho entre um Sistema de Estados e uma Sociedade de Estados. Comece-se apenas por mencionar as barreiras linguísticas. Enquanto os soldados da ONU que vão ao local falam o francês e o inglês, já ao primeiro contato com os soldados de um dos lados em conflito, ao se dirigir ao local, há uma dificuldade de comunicação, já que estes não falam nenhuma das 2 línguas. E, depois, logo ao terem chegado à Terra de Ninguém, recebem ordens de seus superiores para retornarem, atados pelas normas jurídicas às quais buscam conferir efetividade e uma cadeia hierárquica. Aqui já se evidencia a dificuldade que há no embate entre o Direito e o poder político, e também a criação de uma identidade comum, de uma cultura, de valores e regras compartilhados e respeitados, pressupostos de uma Sociedade Internacional. Somente com a pressão dos jornalistas é que eles conseguem retornar ao local, por medo do oficial que deu a ordem de retorno da repercussão internacional que poderia ocorrer. Uma menção poderia ser feita a respeito desse fato sobre a importância de outros autores na Política Mundial, além daqueles tradicionalmente contemplados nas teorias tradicionais, nomeadamente o Estado.

Estabelecido o cessar-fogo e tendo sido enviado um especialista em minas para o local, os soldados bósnio e sérvio são retirados do local, para que a mina sob o outro soldado bósnio fosse desativada, porém sem sucesso. Enquanto o outro soldado bósnio e o sérvio morrem tentando matar um ao outro, o bósnio sob a mina permanece lá, apenas esperando a morte. Este último retrato pode ser uma alusão à fragilidade do Direito Internacional e sua falta de efetividade, como em muitos casos a ONU acaba em um beco sem saída, em um limbo entre as políticas de poder e o Direito Internacional. Por outro lado, o sonho de uma Sociedade Mundial, conceito que expressa uma ideia de unidade moral pelos indivíduos em nível mundial, ainda parece distante, restrito a áreas reduzidas do mundo, com uma ordem baseada em valores compartilhados por indivíduos internacionalmente.

Por ora, parece que, na maioria das vezes, o Direito Internacional, central especialmente no conceito de sociedade internacional, e os valores compartilhados internacionalmente por indivíduos, de particular importância na sociedade mundial, são pesos frágeis sobre uma mina, que sob o menor movimento podem explodir.


Fernando Archetti é acadêmico do curso de Relações Internacionais do UniCuritiba.

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