Por Fernando Archetti
A situação cômica retratada pelo filme
''Terra de Ninguém'' oferece considerações pertinentes para o estudo das
Relações Internacionais. Enquanto os bósnios e sérvios encontram-se em um
conflito regular um diante do outro, as Nações Unidas mantém-se mais ou menos
passivas diante de sua missão alegadamente humanitária no conflito balcânico da
última década do século passado, como que atadas em um limbo jurídico, no
tradicional conflito entre as políticas de poder e a prevalência do Direito
como forma de resolução de controvérsias. Assim, quando um soldado sérvio e
dois bósnios, um deles preso sobre uma mina ativada por peso, sem poder se mover,
veem-se presos em um trincheira entre as respectivas linhas de cada combatente,
a ''Terra de Ninguém'', as Nações Unidas são chamadas para intervir na
situação, já que a nenhum dos lados era claro o que ocorria ali.
Caro à tradição teórica da Escola Inglesa,
o conceito de Sistema de Estados pode
ilustrar a situação inicial do conflito. Para caracterizar-se um sistema como
estatal, bastaria então que houvesse uma interação de qualquer tipo entre um
número de Estados, sem que haja ainda um entendimento maior entre estes e um
conjunto de valores compartilhado que permitisse um entendimento mútuo. Em um
ambiente anárquico, buscar-se-ia os interesses nacionais, ou seja, a
sobrevivência e tender-se-ia ao balanceamento de poder. Associa-se a esse
estágio às políticas de poder. Então quando as duas partes beligerantes
representadas no filme estão em conflito militar direto, estaríamos diante de
uma situação corriqueira que bastaria para descrever o Sistema de Estados.
Assim como o general prussiano Clausewitz definiu a guerra como mera
continuação da política por outros meios, a opção bélica aparece como uma forma
comum de solução de conflitos e disputas entre os Estados.
O desenrolar do filme a partir da
dificuldade de resolver a situação na Terra de Ninguém mostra a interação entre
os dois bósnios e o sérvio, cujo companheiro havia sido morto por um dos
bósnios, quando então a ONU é chamada para o local. Isso traz a discussão sobre
outro conceito central da Escola Inglesa: a Sociedade
Internacional. Passar-se-ia a haver uma sociedade internacional quando
então se desenvolvesse valores compartilhados entre os Estados, objetivos
comuns e busca-se construir a convivência sob regras comuns, ou seja, o Direito
Internacional, e então as instituições passam a garantir a efetividade dessas
regras, pelo menos em tese.
Desde a dificuldade de intervir na
situação, mesmo só de chegar ao local, fica ilustrada como há um longo caminho
entre um Sistema de Estados e uma Sociedade de Estados. Comece-se apenas por
mencionar as barreiras linguísticas. Enquanto os soldados da ONU que vão ao
local falam o francês e o inglês, já ao primeiro contato com os soldados de um
dos lados em conflito, ao se dirigir ao local, há uma dificuldade de
comunicação, já que estes não falam nenhuma das 2 línguas. E, depois, logo ao
terem chegado à Terra de Ninguém, recebem ordens de seus superiores para
retornarem, atados pelas normas jurídicas às quais buscam conferir efetividade
e uma cadeia hierárquica. Aqui já se evidencia a dificuldade que há no embate
entre o Direito e o poder político, e também a criação de uma identidade comum,
de uma cultura, de valores e regras compartilhados e respeitados, pressupostos
de uma Sociedade Internacional. Somente com a pressão dos jornalistas é que
eles conseguem retornar ao local, por medo do oficial que deu a ordem de
retorno da repercussão internacional que poderia ocorrer. Uma menção poderia
ser feita a respeito desse fato sobre a importância de outros autores na
Política Mundial, além daqueles tradicionalmente contemplados nas teorias
tradicionais, nomeadamente o Estado.
Estabelecido o cessar-fogo e tendo sido
enviado um especialista em minas para o local, os soldados bósnio e sérvio são
retirados do local, para que a mina sob o outro soldado bósnio fosse desativada,
porém sem sucesso. Enquanto o outro soldado bósnio e o sérvio morrem tentando
matar um ao outro, o bósnio sob a mina permanece lá, apenas esperando a morte.
Este último retrato pode ser uma alusão à fragilidade do Direito Internacional
e sua falta de efetividade, como em muitos casos a ONU acaba em um beco sem
saída, em um limbo entre as políticas de poder e o Direito Internacional. Por
outro lado, o sonho de uma Sociedade
Mundial, conceito que expressa uma ideia de unidade moral pelos indivíduos
em nível mundial, ainda parece
distante, restrito a áreas reduzidas do mundo, com uma ordem baseada em valores
compartilhados por indivíduos internacionalmente.
Por ora, parece que, na maioria das vezes,
o Direito Internacional, central especialmente no conceito de sociedade
internacional, e os valores compartilhados internacionalmente por indivíduos,
de particular importância na sociedade mundial, são pesos frágeis sobre uma
mina, que sob o menor movimento podem explodir.
Fernando Archetti é acadêmico
do curso de Relações Internacionais do UniCuritiba.
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