quarta-feira, 13 de abril de 2011

Religião X Ciência: equilíbrio ao poder do Estado pela moral da Igreja


Marina Formighieri Sperafico

Religião e ciência nunca foram exemplos de grandes cooperadores na história mundial. Pelo contrário: no Brasil, já houve caso de um Procurador do Tribunal Eclesiástico publicar carta aberta ao Presidente da República ameaçando-o de excomunhão caso fosse sancionado projeto aprovando as pesquisas com células-tronco embrionárias. E tal radicalismo não é recente. Cientistas como Galileu Galilei enfrentaram resistências incomensuravelmente mais fortes contra seus certeiros descobrimentos na Idade Média, época em que a Igreja era a principal instituição vigente e gozava de poderes exorbitantes, tanto em sua própria esfera, quanto nas áreas econômica, cultural e principalmente política.

Todavia, largos foram os passos dados pela ciência de lá para cá e a igreja muitas vezes os acompanhou de forma silenciosa e defensiva. João Paulo II, alguns anos após o Concílio Vaticano II – que marcou o início do aggiornamento da igreja Católica – publicou trabalhos relacionados a atitudes e práticas modernas, entre os quais se destacaram as encíclicas Evangelium Vitae e Fides et Ratio. Métodos contraceptivos, utilização de embriões supranumerários, pena de morte e outros temas polêmicos foram condenados com considerável incisão, principalmente na primeira publicação. A segunda obra, por outro lado, trouxe um teor notoriamente mais sutil, numa flexibilidade inédita para uma entidade cujo líder sustenta o título de infalível.

Apesar do evidente amadurecimento pontifício – verificado especialmente pela forma mais suave como aborda assuntos como o niilismo e as posturas contemporâneas mais radicais, que enfrentam a igreja frontalmente –, o papa não deixa de condenar o uso da razão para fins essencialmente utilitaristas, de prazer ou de poder. Neste contexto, as pesquisas com células-tronco embrionárias são frequentes faíscas a calorosas discussões. Seu caráter passível de análise ética traz à tona numerosas teses sobre o início da vida, do indivíduo em ato e a concepção.

Análises sobre o impacto das condenações vaticanas sobre a discussão de aprovação de pesquisas com células-mãe nas relações internacionais mostram que, em países cuja população é majoritariamente católica, o governo sofre maior resistência para ir em frente com legislações favoráveis a estes estudos. Percebe-se, da mesma forma, que não existe um parecer único sobre a utilização destas células para fins de pesquisa científica. Mesmo nos países onde os estudos são mais desenvolvidos existem receios e restrições no regimento interno. Todavia, vemos também que são grandes as chances de o Estado optar por agir da forma que melhor lhe posicione internamente e no sistema internacional.

Segundo Edward Carr, esse posicionamento é explicado pela teoria realista. O Estado irá agir conforme seus próprios interesses e não pautado em ideais morais que grupos ou igrejas tendem a defender. É o caso do Brasil, que aprovou as pesquisas mesmo sob as condenações católicas. Isso implica num afastamento da Igreja Católica aos seus próprios fiéis e aos outros Estados. Os liberais, por sua vez, são mais inclinados a pensar nos Estados rumo à globalização; tendem a considerar que, à medida que o mundo se torna mais interdependente, a cooperação irá substituindo a competição, o que, de acordo com alguns autores, é uma ideia precipitada.[1]

De qualquer forma, o Vaticano não abre espaço para a discussão da maior parte de seus conceitos, estabelecidos há mais de séculos, e evita prolongar seus pronunciamentos a vertentes que possam lhe enfrentar. A boa notícia é que a Igreja não tem mais o peso institucional que outrora possuía; hoje sua presença nas relações internacionais está mais para um farol que uma fogueira. É natural que ela, felizmente, não consiga tornar sólida sua ideologia, estagnando o processo evolutivo pelo qual a ciência não cansa de atravessar. Mas, a partir do momento em que nos deparamos com algo novo, mesmo que envolvente, faz-se mister analisar cautelosamente as consequências a que ele sujeita o ser humano, dando lugar ao debate e estimulando, tanto a transparência nos projetos científicos, quanto a busca por métodos mais evoluídos que substituam os que sofrem de condenação moral.


Internacionalista formada pelo UNICURITIBA. Atualmente é Analista Comercial Sênior na Câmara Americana de Comércio e cursa MBA em Gestão Estratégica de Empresas na Fundação Getúlio Vargas. A coluna Cultura e RI vai ao ar às quartas-feiras.







[1] NYE, Joseph. Compreender os Conflitos Internacionais: uma introdução à teoria e à história. 3ª ed. Lisboa: Gradiva, 2002. p. 227.

7 comentários:

  1. O Brasil ainda é hoje o maior país católico do mundo. Não à toa, o português é prioritário nos pronunciamentos pontífices em suas audiências.
    Contudo, pesquisas comprovam que em 2020, o país poderá ter uma nação majoritáriamente evangélica. Essa posição do Estado Eclesiástico, trazido brilhantemente pela Marina não revela essa preocupação. Do contrário, mostra uma Igreja cada vez mais retrógrada, focada em seus princípios incondizentes com a realidade em que vivemos e mais, cega à nação que ainda defende sua bandeira.

    Parabéns pelo artigo Marina.
    Parabéns pelo blog, Unicuritiba!

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  2. O comentário acima traz muito da ideia e até da origem do tema do artigo: mostrar como a igreja tem dificuldade em acompanhar a evolução e a dinâmica dos Estados, da cultura, da ciência, enfim, da humanidade como um todo. O que se percebe é que sua estrutura foi tão fortemente embasada em fundamentos rígidos (provavelmente para que a população nunca ousasse questioná-la) - como o princípio da infalibilidade papal, por exemplo -, que mesmo ela própria querendo mudar, acaba não conseguindo, ou conseguindo muito pouco. Isso pode, de fato, fazer com que, não apenas a população se torne majoritariamente evangélica no futuro, mas que se encontrem cada vez menos religiosos por todo o mundo.

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  3. Concordo com você, Marina. Essas mudanças acabam acontecendo em um ritmo muito lento em comparação com a velocidade do mundo moderno. Mas isso serve, de alguma forma, aos propósitos da Igreja, pois esta posição "mais pesada" acaba por impor uma reflexão sob aspectos morais, em contraponto a interesses políticos, econômicos e culturais. Assim, a Igreja assume o papel de farol que vc falava ao fim do artigo. Não creio que haja uma preocupação na Igreja em que as sociedades se tornem evangélicas: melhor católicos convictos que aqueles que se dizem por tradição, ou pelo fato que foram batizados apenas. Os católicos precisam se imbuir da ética de convicção que os fariam defender com mais ardor suas posições frente ao que consideram "pecado". Parabéns pelo artigo e pelas reflexões que suscita.

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  4. a igreja católica apostolica romana sempre foi uma pedra no sapato dos governos do velho mundo e tampouco das ciências antigas e modernas,ainda bem que somos um país laíco,mas a igreja católica ainda insiste em manter um poder sobre a sociedade brasileira e mundial,poder este que não existe mais,onde se ver que a falta de respeito e a cultuação da moral dentro da própria igreja está desaparecendo ou melhor sumiu,é o caso dos enormes escandâlos de padres pedófilos dentro das igrejas,como que eu vou impor uma moral cristã se dentro do meu próprio lar eu cometo crimes e injustiças? é complicado ditar regras se mesmo eu não cumpro,o próprio papa bento XVI tem a maior dificuldade quando vai falar a imprensa mundial sobre temas polêmicos,no pleito passado este mesmo papa foi dar palpites sobre o tão polêmico caso do aborto que estava sendo discutidos na campanha presidencial e levou maior invertida do presidente lula,onde deixou bem claro que nos assuntos do governo manda o chefe da nação e não o papa. sem falar das atrocidades que a igreja cometeu na idade média,inquisição etc. certo foi napoleão que não deixou ser coroado pelo papa e com este gesto mostrou a igreja a divisão de poderes na frança.

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  5. Parabéns pelo artigo, mas eu tenho que discordar de alguns pontos. O que a Igreja Católica faz está longe de ser uma tentativa de "estagnar o processo evolutivo pelo qual a ciência não cansa de atravessar". O que ela faz é propor questões de natureza ética às pesquisas, o que pode se evidenciar no próprio exemplo que você trouxe Marina:

    Segundo a doutrina católica, a vida humana começa com a concepção (e é bom lembrar que não temos, hoje, uma verdade definitiva médica sobre o assunto), logo pesquisas que envolvam células tronco embrionárias seriam a manipulação (e extinção) de vidas humanas. Aqui a Igreja cumpre muito bem o seu papel enquanto líder espiritual de milhões de pessoas, qual seja, o de trazer à discussão os temas de natureza ética que estão indissociavelmente ligados às explorações científicas.

    Afastar enquanto totalmente contraditórios os valores morais e as descobertas científicas é um processo que pode muito bem levar a experimentos com seres humanos como os feitos em Auschwitz e nos Gulags, sempre em nome do progresso e contra essas forças retrógradas que não são capazes de compreender a modernidade.

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  6. Sem dúvidas, Bruno, concordo com você quando diz que a igreja cumpre muito bem seu papel como farol ético à humanidade. É comum ouvirmos esta palavra, “ética”, quando uma atitude está sendo julgada, observada ou condenada.
    Entretanto, não se pode afirmar taxativamente que todos são imparciais e assépticos a influências em seus julgamentos. Conforme você bem salientou, não temos uma verdade médica definitiva sobre o momento em que se dá a concepção da vida em si. Isso significa que as pesquisas com células-tronco embrionárias podem ser, como também podem muito bem não ser a extinção delas. O que se se tem absoluta certeza, por outro lado, é que muitas vidas são salvas por causa destas células.
    Mas voltando à ética, Leonardo Boff diz que as religiões são a base mais realista e eficaz para se construir ‘uma ética global para a política e a economia mundiais’. Por outro lado, na construção do norte à que ela deve seguir, ele ressalta o importante papel da razão.
    A religião considera-se numa posição mais elevada à do Estado, da política e do direito (o que é natural, afinal, quem é que estaria acima de Deus?). E aí, realmente, a argumentação religiosa assume, frente seus credores, teórica e relativa vantagem sobre o que se puder reunir de estudos voltados à ética e, principalmente, à moral humanas.
    Em suma, considero, sim, que é importante monitorar os progressos da humanidade e das práticas que os humanos se utilizam para tal. Afinal, em sua maioria, nossa raça não tem um caráter muito angelical, e pode nos levar a conhecer barbáries como a tragédia de 11 de setembro, de Auschwitz e Gulags, o nazismo, a pedofilia, a própria Inquisição, Ruanda, Lidice, enfim. O que eu não posso concordar é com a rigidez pela qual a igreja impõe sua ideologia, sem dar espaço para qualquer opinião que lhe confronte.

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  7. Mas, via de regra, as escolhas defendidas pelo Vaticano hoje tem uma fundamentação filosófica e científica mais sólida do que a maioria dos outros grupos de pressão que tem por aí.
    Usando o exemplo das células tronco embrionárias novamente: sim, pesquisas com elas salvam muitas vidas, e a discussão então seria a seguinte: sendo que não se pode determinar se o embrião é ou não uma vida humana, é ético correr o risco de matar milhares de bebês para ter certeza de salvar outros milhares de vida?
    Veja bem, esses argumentos tem tanta solidez lógica e racional quanto o contrário, de que as células tronco podem curar inúmeros pacientes que estariam fatalmente condenados e que embriões não devem ser vistos como um ser humano. Eu só não acho que estes pontos podem ser simplesmente descartados como ideologia retrógrada ou coisa que o valha.

    Sobre a influência da razão na religião, os próprios escolásticos (incluindo Tomás de Aquino) argumentavam ainda na Idade Média que até mesmo a compreensão de fenômenos religiosos e da existência de Deus se dá através da razão. Sei lá, pra mim essa contradição razão x religião é totalmente sem sentido.

    Enfim, me alonguei meio demais, mas não adianta, eu gosto de discutir com quem tem idéias interessantes :)

    abraços

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