segunda-feira, 18 de abril de 2011

“Inside Job” – Um comentário sobre a verdade nua e crua da crise

Cintia Rubim

O melhor documentário de 2010, o premiado Inside Job, destrincha a crise a partir de extensa pesquisa e entrevistas concedidas e não concedidas (várias pessoas se negaram a dar entrevista, dentre elas Alan Greenspan, ex presidente do Federal Reserve, Ben Bernanke, atual presidente do FED e Timothy Geithner, atual secretário do Tesouro dos EUA).
De fato, não há nada ali de essencialmente novo, mas o filme aborda muito mais do que a crise de 2008. Didaticamente estruturado em cinco partes: Como chegamos, A Bolha, A Crise, Prestação de Contas e Onde Estamos Agora, retrata a evolução do sistema financeiro americano, sobretudo a partir do Governo de Ronald Reagan nos anos 80, até os dias pós crise, levando o espectador a concluir que dois anos após a deflagração do colapso do sistema, nada realmente mudou. Não me proponho a explicar a crise, fato que já muitos artigos e o próprio documentário, dentre outros, o fizeram, mas a tecer breves comentários que me inquietam muito mais do que o próprio evento crise.
Quando Ronald Reagan assume o governo inicia o período mais intenso de desenvolvimento do sistema financeiro americano. Alan Greenspan, presidente do FED de seu governo e que seguirá à frente do FED nos governos de Bill Clinton e George Bush, continuará no discurso do endeusamento do mercado financeiro. Esse mercado irá realmente decolar enquanto que a riqueza financeira vai se sobrepondo quase que exponencialmente à riqueza produtiva.
Uma forte característica da globalização financeira do século XX e que nos últimos anos tem suscitado inúmeras discussões acadêmicas e não acadêmicas, é a tal da desregulamentação do sistema financeiro, que vai culminar nos anos 90 na criação dos mercados de derivativos. Peço desculpas ao leitor por chamar “a tal da desregulamentação”, mas o que quero expressar é uma questão um pouco mais profunda, o que vem antes? A ganância do homem e a falta de ética como norteadoras do sistema ou a normatização do próprio sistema como norteadora da ação do homem, com vistas a dar garantias à sociedade? O que é causa e o que é consequência? Um belo debate. Com certeza essa é uma discussão que perpassa a esfera da teoria econômica e segue para outras searas como a filosófica, antropológica e até psicológica (ah! O velho Keynes e o “animal spirits”).
Difícil crer, como mostra o documentário, que diretores e altos executivos do mercado financeiro criaram e perseguiram a verdade (para eles) de terem descoberto inovações financeiras com maiores lucros e menores riscos, quando nossa velha (e porque não boa) teoria econômica nos diz exatamente o contrário: quanto maiores os lucros, maiores serão os riscos das operações financeiras. Auto-engano? Falta de informação? Alta evasão escolar desses bilionários executivos quando estavam nos bancos escolares? Pobres ricos coitados...
Mas o que mais me entristeceu, como professora e pesquisadora, foi a parte do documentário que apresenta a ligação de professores de renomadas universidades dos EUA e da Inglaterra (como Harvard, Berkeley, London School of Economics) ligados à pesquisas e ao próprio mercado e que passaram anos formando e influenciando cérebros na lógica da irracionalidade e ganância. Como economista, não sou de forma alguma contrária ao mercado. Faço parte de uma escola que reconhece a importância do mercado para o crescimento e desenvolvimento econômico, porém sou contrária à ganância e ao mercado em detrimento da sociedade. Sou contra a exuberância financeira per se, a exuberância às custas do desemprego, da falta de produção, do aumento da pobreza e da marginalização, do colapso de outras economias.
Hoje quando percebemos que pessoas que estavam no Governo há 15, 20 anos, aconselham o presidente Obama e discutem as reformas, sobretudo a financeira, vemos que nada significativamente está mudando no que se refere ao sistema financeiro. Apesar das discussões presentes também na esfera das economias emergentes e do G-20, nada de concreto ainda. O que precisa mudar: o homem ou o sistema? Os dois?
De qualquer forma, o documentário vale a pena. Sugiro que depois se dediquem a uma sessão de comédia romântica (ou pastelão, conforme a preferência) regada à pipoca e, porque não, Coca-Cola para relaxar!


Cintia Rubim é professora de Economia do UNICURITIBA.

2 comentários:

  1. Algumas coisas me incomodaram nesse documentário. Uma delas é eles terem omitido o fato de que os anos que precederam a crise de 2008 foram os tempos de maior prosperidade de toda história da humanidade, e que isso se deveu em grande parte ao livre movimento de capital. O trecho em que o documentário indica que os investidores de Wall Street são freqüentadores de casas de prostituição não me parece cumprir nenhum propósito além do de demonizá-los. As questões referentes ao ensino da economia também me parecem suspeitas... Deveríamos aceitar a suposição de que os alunos das principais universidades norte-americanas aderem plenamente a que lhe é passado por esses professores "tendenciosos" e que são incapazes de questionar. Do contrário, desmascarariam seus mestres. Mas no geral o documentário é bastante interessante.

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  2. Essa discussão, reforma do sistema financeiro, no meu ponto de vista, pode ser mais profunda e passar sim por outras áreas do conhecimento, como você destacou no artigo. Concordo com a sua posição.
    Não consegui ver o documentário ainda, mas vou fazer algumas considerações gerais.
    O modelo identificatório da sociedade ocidental (especialmente), institucionalizado atualmente, propõe e impõe ao homem, enquanto indivíduo social, o modelo de indivíduo que ganha e usufrui o máximo possível. Pode-se dizer que ganhar ($) está totalmente dissociado de função social, paradoxalmente à retórica neoliberal. Exemplo clássico: mercado financeiro.
    Como esperar que o indivíduo social, no desempenho de suas atividades, seja íntegro e ético, enquanto o sistema, tal como se apresenta, não justifica os valores esperados? Parece que não encontramos respostas na significação imaginária da sociedade capitalista neoliberal que justifiquem tais valores. Como mudar isso, quando todo o universo de consumo, cassino, aparência, sucesso, competição, poder, permeia toda a sociedade e atinge os indivíduos desde as suas mais tenras fases de socialização?
    Acredito que o que pode dar garantias à sociedade, em várias outras instâncias inclusive, é a própria sociedade, mediante mudanças nas suas próprias significações imaginárias. Como separar o mercado da sociedade? O mercado não é construído e institucionalizado socialmente?
    Uma reforma no sistema financeiro internacional pode não ser garantia para evitar futuras crises, considerando toda a fluidez do sistema financeiro (vide os mercados derivativos) e as significações imaginárias da sociedade.
    Isso não quer dizer que sou contrário a reforma do SFI, por razões mais imediatas, começando por reformas no sistema financeiro americano, ator principal do SFI. Porém, por outro lado, sou cético em relação a reformas mais profundas. Acredito que as reformas fiquem mais na retórica do que nas ações. As reformas ocorridas até agora são insignificantes. Será que o tempo decorrido desde a crise já não seria suficiente para ações mais concretas?
    Talvez, apesar de tudo, essa crise financeira, como tantas outras crises que vivenciamos, não tenha sido suficientemente catastrófica a ponto de a própria sociedade querer mudanças. Querer mudanças nas suas próprias significações imaginárias. É uma discussão sem fim .... deixemos para outra oportunidade.
    O acordo de Basiléia II não foi suficiente para evitar o colapso do sistema. Falhou, especialmente, na regulação e supervisão prudencial internacional. Agora, se discute, no âmbito do Comitê de Supervisão Bancária (Comitê de Basiléia), o acordo III, como conseqüência dessa crise, pretendendo corrigir as falhas verificadas no acordo II, acordo esse ainda não totalmente implementado por sistemas financeiros nacionais. Parece que a regulação está sempre atrasada e insuficiente (ou quer estar atrasada e ser insuficiente?).
    É necessário se antecipar ao mercado, não só regulamentando, mas fiscalizando e, sobretudo, punindo, em tempo hábil, se for o caso.

    Beijos.

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