Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a pandemia do COVID-19 já atingiu a marca de 2 milhões de pessoas infectadas e o número de mortos, infelizmente, já beira os 170 mil, — expondo a fragilidade de nosso sistema e a necessidade de aperfeiçoamento em diversas áreas da sociedade. A pandemia tem tomado conta dos principais noticiários, que, incansavelmente, reproduzem números e estimativas do novo coronavírus, alertando sobre os perigos da doença e indicando formas de prevenção, o que tem silenciado outros inúmeros problemas no planeta, fazendo-nos esquecer do mundo que há para além do nosso isolamento. Foram apagadas do noticiário questões como o refúgio, a violência doméstica e a guerra, o que acaba nos distanciam da realidade dolorosa de muitas pessoas.
Esse é o caso da guerra na Síria, cujos acontecimentos foram objeto de reportagens e comoção ao redor do mundo desde o seu início em 2011, mas que em meio a pandemia acabou caindo em esquecimento, quase como se subitamente o país entrasse numa paz duradoura — o que definitivamente não aconteceu. A guerra no país já dura 10 anos e até agora deixou cerca de 384 mil mortos e pelo menos 25 milhões de refugiados, mostrando a imensidão de seus efeitos e a vulnerabilidade em que se encontra a sua população. De acordo com a Médicos Sem Fronteiras, o sistema de saúde sírio está em colapso e as condições de vida e higiene não são capazes de suportar uma emergência como o novo coronavírus. Não é, no entanto, somente a Síria que se encontra em meio ao caos causados pelos conflitos armados: segundo o Uppsala Conflict Data Program, em 2018 os números de conflitos armados estatais e não estatais somavam 130, e os números de mortes totalizaram 72 495 vítimas.
Da mesma forma, dados do Armed Conflict Location & Event Data Project (ACLED), indicam que em 2019 os eventos de violência política chegaram a 91 448, enquanto as mortes em razão desses eventos somaram um total de 126 047 fatalidades no mesmo ano. Ainda conforme o ACLED, os países focos dos conflitos armados em 2019 foram a Síria, a Ucrânia, o Afeganistão, o Iêmen, a Índia, a Nigéria e a Somália, sendo que a Síria teve o maior número de eventos de violência política em 2019, enquanto o Afeganistão registrou o maior número de mortes em razão de conflitos armados. Além disso, conflitos com início mais recente se intensificaram, como é o caso do Myanmar e da República Democrática do Congo, expondo mais uma vez a fragilidade da paz.
O desafio que a COVID-19 apresenta aos países é imenso, e, se até mesmo nos países desenvolvidos há dificuldade em controlar a pandemia, a ameaça é ainda maior em Estados em guerra. Isto porque os conflitos armados afetam diretamente os sistemas de saúde desses países, e o enfraquecimento do sistema é inevitável nessas situações. Além disso, o escasso acesso a itens básicos de higiene, como a água, dificulta a prevenção de doenças e colocam em risco a saúde de suas populações de maneira significativa.
Assim, urge a necessidade de ações de paz e diplomacia, de modo que as populações não sejam ainda mais expostas ao novo perigo que a pandemia representa. Nesse sentido, no último mês o secretário-geral da ONU, António Guterres, veio a público pedir um cessar-fogo global. Em seu pronunciamento, Guterres ressalta a continuidade de inúmeras as lutas e guerras ao redor do mundo mesmo com a pandemia em plena expansão. O secretário-geral fala ainda sobre as consequências econômicas e políticas da pandemia que intensificam conflitos em curso e colocam em risco a frágil paz de algumas localidades, o que dificultaria a luta contra o novo coronavírus. Num esforço pela paz, juntaram-se ao porta-voz das Nações Unidas figuras de alto escalão, como o Papa Francisco, que durante a celebração de uma Missa, reforçou a necessidade de um cessar-fogo, ressaltando a importância do diálogo na resolução de conflitos. Além do Pontífice, a União Europeia declarou apoio ao cessar-fogo na Síria, assim como o presidente francês Emmanuel Macron.
É claro que a construção da paz não é simples, e em sua fala, Guterres reconhece as “enormes dificuldades” na implementação de uma trégua para deter conflitos que se deterioram há anos, nos quais “a desconfiança é profunda”. Ainda assim, após o apelo de António Guterres, diferentes atores de países em conflito declaram apoio ao cessar-fogo — mesmo que temporariamente — como foi o caso de grupos rebeldes no Camarões e nas Filipinas, do O Exército de Libertação Nacional na Colômbia, e da coalizão militar liderada pela Arábia Saudita no Iêmen, que também declarou um cessar-fogo temporário.
Contudo, não bastam discursos para a concretização da paz, uma vez que os efeitos dos conflitos armados são reais e não apenas discursivos. Assim, apesar das dificuldades enfrentadas na execução de ações para a paz, a resolução desses conflitos se faz indispensável na contenção do vírus e na proteção da vida. Dessa forma, os esforços devem ser mútuos e concretos, não se restringindo somente à palavras, mas em ações em prol da sua rápida solução diplomática — sendo o cessar-fogo um primeiro passo para a paz.
Referências
ARTIGO: Apelo a um cessar-fogo mundial. Nações Unidas. 23 de março de 2020. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/artigo-apelo-a-um-cessar-fogo-mundial/>.
Chefe da ONU pede mais esforços diplomáticos para atingir cessar-fogo em meio à pandemia. Nações Unidas. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/chefe-da-onu-pede-mais-esforcos-diplomaticos-para-atingir-cessar-fogo-em-meio-a-pandemia/>.
Coalizão dirigida por Riade no Iêmen anuncia cessar-fogo por coronavírus. Estado de Minas Internacional. 08 de abril de 2020. Disponível em: <https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2020/04/08/interna_internacional,1137085/coalizao-dirigida-por-riade-no-iemen-anuncia-cessar-fogo-por-coronavir.shtml>.
Covid-19: Bruxelas defende cessar-fogo na Síria. Plataforma Média. 30 de março de 2020. Disponível em: <https://www.plataformamedia.com/pt-pt/noticias/politica/covid-19-bruxelas-defende-cessar-fogo-na-siria-12003461.html>.
COVID-19: Urgent action needed to counter major threat to life in conflict zones. International Committee of the Red Cross. Disponível em: <https://www.icrc.org/en/document/covid-19-urgent-action-needed-counter-major-threat-life-conflict-zones>.
Francisco reitera apelo por cessar-fogo global. Vatican News. Disponível em: <https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2020-03/papa-francisco-angelus-pede-fim-guerras.html>.
Guerra na Síria entra no 10° ano com Bashar al-Assad refém de seus aliados. G1. 15 de março de 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/03/15/guerra-na-siria-entra-no-10deg-ano-com-bashar-al-assad-refem-de-seus-aliados.ghtml>.
ONU reporta primeiras respostas positivas a apelos de cessar-fogo. Estado de Minas Internacional. 26 de março de 2020. Disponível em: <https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2020/03/26/interna_internacional,1132822/onu-reporta-primeiras-respostas-positivas-a-apelos-de-cessar-fogo.shtml>.
Por coronavírus, guerrilha colombiana decreta cessar-fogo. G1. 30 de março de 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/03/30/por-coronavirus-guerrilha-colombiana-decreta-cessar-fogo.ghtml>.
Síria: o impacto que a COVID-19 pode ter em Idlib. Médicos Sem Fronteiras. 09 de abril de 2020. Disponível em: <https://www.msf.org.br/videos/siria-o-impacto-que-covid-19-pode-ter-em-idlib>.
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