terça-feira, 26 de março de 2019

Direito Internacional em Foco: A burocracia como entrave à Nova Lei de Migração





Anielle Silveira, Emanuella Cascardo Silva, Henrique Oliveira, Maria Leticia Cornassini e Nathalie Souza**



No Estado Democrático de Direito são assegurados aos cidadãos todos os direitos previstos na Constituição do país. Mas será mesmo?

O que acontecia - em teoria, até recentemente - é que os estrangeiros que vinham a residir no Brasil não podiam usufruir de direitos e garantias fundamentais que, em tese, deveriam se estender a eles da mesma forma que se estendem aos brasileiros, como positivado no Art. 5 da Constituição Federal.


“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes” seguidos dos 48 incisos que tratam das garantias Fundamentais dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos.


Isto porque a Lei que regulava a entrada e permanência de estrangeiros no território nacional era a Lei n. 6.815/1980 - diploma elaborado durante a ditadura militar e permeado pela ideia da segurança nacional (vendo o estrangeiro como ameaça a esta segurança) e da defesa do trabalhador nacional (temendo que roubariam os postos de trabalho dos nacionais).


Frente à esta problemática, e após vários projetos tramitarem em ambas as casas do Congresso, no dia 24 de maio de 2017 foi sancionada, com vetos, uma nova Lei responsável por reger o processo de migrações no Estado brasileiro.


Proposta através do Projeto de Lei PLS 288/2013, e tendo como redator o então senador Aloysio Nunes Ferreira, a chamada Nova Lei de Migração (lei 13.445/2017) veio para substituir uma das “heranças” da Ditadura Militar, o antigo Estatuto do Estrangeiro, cuja maior prerrogativa era a segurança nacional. Não bastasse, o antigo Estatuto era um mecanismo que dificultava a regularização do estrangeiro no país, além de proibir atividades de natureza política e permitir expulsões arbitrárias, como nos casos do estrangeiro que “se entregasse a vadiagem e a mendicância”. Por isso a Nova Lei foi considerada um grande avanço, já que tornaria possível o respeito aos direitos humanos e aos postulados constitucionais, além de, claro, priorizar a concessão de direitos e regularização dos migrantes.


Todavia, "nem tudo são flores" e na administração Executiva do Presidente Michel Temer entrou em vigor o decreto regulamentador da lei, parecendo esquecer de uma das características básicas do Estado democrático de direito- de que o Executivo não pode atuar contra normas já existentes. O Decreto nº 9.199, de 20 de novembro de 2017 que contradiz em diversos pontos a lei 13.445/2017, como por exemplo:


  • O emprego do termo vulgar “clandestino” ao se referir a uma pessoa humana, que figura artigo 172 do Decreto regulamentador;
  • Previsão da possibilidade de prisão do deportando, ignorando o artigo 123 da nova lei, no qual se lê “Ninguém será privado de sua liberdade por razões migratórias, exceto nos casos previstos nesta Lei”.
  • Adiamento da emissão dos vistos humanitários previstos na Lei de Migração, a possível definição dos vistos, será feita por uma comissão interministerial sem data para ocorrer;
  • Os vistos temporários para pesquisa, ensino ou extensão acadêmica; para trabalho; para realização de investimento ou de atividade com relevância econômica, social, científica, tecnológica ou cultural; e para atividades artísticas ou desportivas com contrato por prazo determinado (artigos 34, § 6º; 38, § 9º; 42, § 3º e § 4º; 43, § 3º e § 4º; e 46, § 5º do Decreto) dependem de deferimento, pelo Ministério de Trabalho, de autorização de residência prévia à emissão desses vistos temporários;
  • “O texto final da nova lei promoveu uma mudança negativa na proposta originalmente formulada porque passou a exigir, em virtude do seu artigo 14 §4º, uma “oferta de trabalho formalizada por pessoa jurídica em atividade no país”. Assim, a lei deixou de proteger um vasto contingente de migrantes, provavelmente os mais vulneráveis, que ainda não possuem oferta de trabalho no Brasil. No entanto, o decreto regulamentador agrava sobremaneira o defeito da lei ao afrontar claramente o seu texto, estipulando que “a oferta de trabalho é caracterizada por meio de contrato individual de trabalho ou de contrato de prestação de serviços” (artigo 38 I da proposta). Ora, um contrato não constitui uma oferta e sim a consumação de uma relação jurídica de trabalho ou de prestação de serviços, o que por certo dificultará sobremaneira a obtenção de tal visto pelos migrantes.


Antes mesmo de sua sanção, a regulamentação da nova Lei de Migração já recebia críticas e ressalvas de diversos especialistas. Dentre os alertas dirigidos ao texto do decreto, cabe menção ao feito por André de Carvalho Ramos, Aurelio Rios, Clèmerson Clève, Deisy Ventura, João Guilherme Granja, José Luis Bolzan de Morais, Paulo Abrão Pires Jr., Pedro B. de Abreu Dallari, Rossana Rocha Reis, Tarciso Dal Maso Jardim e Vanessa Berner, integrantes da Comissão de Especialistas constituída pelo Ministério da Justiça, cuja finalidade foi a de elaborar uma proposta de Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil (2013-2014). Para eles, fazia-se indispensável a abertura do governo frente às críticas realizadas e a criação de um decreto compatível com os ditames da Lei, de modo que fossem evitadas extensas batalhas judiciais que gerariam insegurança jurídica tanto para os migrantes quanto para as pessoas com quem eles se relacionam.


Subsequentemente, além dos entraves nascidos com o Decreto, diversas portarias específicas acabam dificultando a entrada do imigrante e os pedidos de refúgio no país. Os motivos mais sobressalientes são o custo necessário e o tempo para obter resposta do governo nos casos de pedidos de refúgio e de acolhida humanitária.


Por exemplo, de acordo com a nova Lei de Migração os valores para um não nacional conseguir o visto humanitário incluem somente o custo de um passaporte válido.  Trazendo o Estado da Venezuela como exemplo, o valor seria de 18.000 VEF para a emissão do passaporte, um custo alto para a população, visto que seu salário mínimo está em 4500 VEF. Além da demora, uma pesquisa feita pelo jornal EL PAÍS mostrou que a emissão estava levando em média dois anos para se concretizar e levando muitos cidadãos a procurar a máfia venezuelana em busca de conseguir o passaporte venezuelano com maior agilidade. Por outro lado, a solicitação de refugio é gratuita, tendo o solicitante de refúgio que pagar apenas pela emissão de alguns documentos. Neste caso, o grande problema é a demora para que ocorra o deferimento, o que fica claro quando se sabe que haviam, no ano de 2017, somente 10.145 refugiados reconhecidos no Brasil, mesmo o país tendo recebido um número total de 33.666 solicitações.


Em se tratando dos pedidos de refúgio ao Governo brasileiro, tendo por base  pesquisas expostas pelo ACNUR, fica evidente o crescimento exponencial do número de requisições, em especial após o declínio da situação na Venezuela. Diretamente proporcional ao crescimento do número de requisições é o número de imigrantes aguardando respostas por parte do governo e do Conare (Comitê Nacional para Refugiados).


São cerca de 82 mil pessoas ainda esperando por qualquer tipo de pronunciamento do Estado. Mesmo em face das problemáticas circundando a solicitação de pedidos de refúgio, este mecanismo vem sendo o mais utilizado, em decorrência do princípio de “não-devolução” que o rege. Além disso, o solicitante vira titular de diversos direitos interinos, como: possibilidade de matricular o filho em escolas públicas, utilização do serviço do SUS e a obtenção de uma carteira de trabalho.


Dentre tantas questões a serem resolvidas, encontramos pessoas que buscam melhorias em suas vidas, enfrentando processos de burocratização excessivos. Já que, além de precisar ir a diversos órgãos, o imigrante ainda precisa providenciar algumas documentações, as quais podem ser custosas e, algumas vezes, inviáveis. Exemplo elucidativo é o requerimento de apresentação de certidões, dentre elas a de antecedentes criminais, para o processo de visto. E se imaginássemos então, que o país de origem de uma pessoa tenha passado por um desastre natural, fazendo com que essa não tenha um fácil acesso de tais documentos. Como ficaria este caso? Ou melhor, como preencher esta lacuna no processo da Nova Lei?


          Eis que todas essas perguntas seguem sem respostas. O atual presidente Jair Bolsonaro já se manifestou mais de uma vez contra a Nova Lei de Migração e os ideais representados por ela, inclusive afirmando, em novembro de 2018, que “a Lei de Migração transformou o Brasil em um país sem fronteiras” e dando a entender que atuará para mudar os termos da legislação, considerada uma das mais avançadas por entidades de direitos dos migrantes. “Não podemos admitir a entrada indiscriminada de quem quer que seja simplesmente por que quer vir para cá”, afirmou.


Mais adiante, em dezembro de 2018, o atual chanceler brasileiro Ernesto Araújo divulgou em seu Twitter a saída do Brasil, a partir de janeiro de 2019, do Pacto Global de Migração do qual o país era signatário. A respeito disso, precariamente se pronunciou o chanceler:  “A imigração é bem-vinda, mas não deve ser indiscriminada. Tem de haver critérios para garantir a segurança tanto dos migrantes quanto dos cidadãos do país de destino. A imigração deve estarei a serviço dos interesses nacionais e da coesão de cada sociedade. O Governo Bolsonaro se desassociará do Pacto Global de Migração que está sendo lançado em Marraqueche, um instrumento inadequado para lidar com o problema. A imigração não deve ser tratada como questão global, mas sim de acordo com a realidade e soberania de cada país. O Brasil buscará um marco regulatório compatível com a realidade nacional e com o bem-estar de brasileiros e estrangeiros”.


Mais recentemente, já na vigência do governo Bolsonaro e com Ernesto Araújo, o desacreditador do aquecimento global, como Ministro das Relações Exteriores, foi assinado o decreto nº 9.731, que dispensa visto de visita para os nacionais da Comunidade da Austrália, do Canadá, dos Estados Unidos da América e do Japão, além de alterar o Decreto nº 9.199, regulamentador da Lei de Migração. O decreto foi publicado nesta segunda-feira (18), em uma edição extra do "Diário Oficial da União". A publicação aconteceu em meio à viagem de Bolsonaro a Washington (EUA), onde o presidente se reuniu, nesta terça (19), com Donald Trump. O decreto entrará em vigor em 17 de junho deste ano e é "unilateral", ou seja, não vale para brasileiros que viajarem aos quatro países, fato que acarretou duras críticas de especialistas, haja vista que há a total desconsideração pelo princípio da reciprocidade. A medida parece evidenciar a existência de classes de imigrantes: Os que são bem-vindos e os que não são. O critério? Suas origens. Isto nos remete as políticas migratórias do século passado, altamente discriminatórias, pautadas, inclusive, em questões raciais.


Com base nesses últimos acontecimentos há indícios suficientes para evidenciar qual será a postura da atual administração Executiva no tangente à legislação de migração: regredir claramente aos postulados de cunho extremamente nacionalistas e retrógrados, inviáveis nos dias atuais, tal qual ocorria na época da Ditadura Militar. Voltamos ao paradigma da “segurança nacional”.




Referências:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/Decreto/D9199.htm


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Decreto/D9731.htm#art3


https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/03/18/bolsonaro-libera-cidadaos-de-eua-australia-canada-e-japao-de-visto-de-visita-ao-brasil.ghtml


https://veja.abril.com.br/mundo/bolsonaro-ataca-lei-de-migracao-e-diz-que-brasil-nao-sabe-o-que-e-ditadura/


https://exame.abril.com.br/brasil/saida-do-pacto-de-imigracao-prejudica-mais-os-brasileiros-que-vivem-fora/


https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/con1988_15.12.2016/art_5_.asp


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13445.htm


https://www.conjur.com.br/2017-nov-23/opiniao-regulamento-lei-migracao-praetem-legem


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9474.htm


https://g1.globo.com/mundo/noticia/brasil-tem-86-mil-estrangeiros-aguardando-resposta-sobre-refugio-e-14-funcionarios-para-avaliar-pedidos.ghtml


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/D9277.htm


http://www.pf.gov.br/servicos-pf/passaporte/passaporte-para-estrangeiro/passaporte-para-estrangeiro


https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/11/1936866-lei-de-migracao-entra-em-vigor-mas-regulamentacao-e-alvo-de-criticas.shtml


http://www.justica.gov.br/news/nova-lei-de-migracao-esta-em-vigor-para-facilitar-regularizacao-de-estrangeiros-no-brasil


https://www.dw.com/pt-br/o-que-muda-com-a-nova-lei-de-migração/a-41468597


https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/nova-lei-de-migracao-tem-carater-modernizante-mas-enfrenta-burocracia/


https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/05/17/Governo-sofre-pressão-contra-Lei-de-Migração.-O-que-pode-mudar


https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/11/23/O-que-o-decreto-de-Temer-muda-na-lei-de-migração-aprovada-em-maio




**A seção "Direito Internacional em Foco" é produzida por alunos do 3° período do Curso de Relações Internacionais do UNICURITIBA, com a orientação da Profa. Msc. Michele Hastreiter. As opiniões manifestadas no texto pertencem aos autores e não a professora ou à instituição.


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