O aluno do sétimo período de Relações Internacionais do UNICURITIBA, Gabriel Thomas Dotta, participou de um programa estudantil oferecido pelo governo sul-coreano. Hoje, ele relata a experiência no Blog Internacionalize-se.
GKS 2017: Impressões sobre a Coreia
do Sul depois de um mês de estudos e vivência no país
Em junho do corrente ano, fui
acariciado com uma das melhores notícias que já recebi: havia sido aceito no Global Korea Scholarship for Undergraduate Students from Africa and
Latin America. O GKS é um programa do governo sul-coreano que tem por
objetivo auxiliar na promoção do desenvolvimento dos países-parceiros da Coreia
por meio da educação. Para tanto, o governo seleciona estudantes de graduação
do mundo em desenvolvimento e os leva à Coreia, onde passam um período
estudando questões consideradas afeitas ao desenvolvimento de seus países de
origem.
Em 2017, foram selecionados oitenta
estudantes, quarenta da África e quarenta da América Latina. Para nossa região,
os campos prioritários foram as ciências materiais e a ciência política e
estudos internacionais, sendo dedicadas vinte vagas para cada. Assim, para o
eixo em que participei, foram selecionados vinte graduandos de áreas
relacionadas à ciência política de todos os países latinoamericanos, tendo em
conta o rendimento acadêmico, a elaboração de projeto de pesquisa e o perfil
dos estudantes.
O governo coreano arcou com todos os
custos relevantes ao programa: passagens aéreas de ida e volta, alimentação,
hospedagem e outros. Na ciência política, dos vinte estudantes selecionados dez
foram brasileiros, os outros sendo da Nicarágua, República Dominicana,
Honduras, Argentina, Peru, México e Colômbia. A composição de nossa turma foi
surpreendente, uma vez que a seleção não tinha cotas nacionais, apenas de
avaliação comum. Por isso, foi interessante ver o grande peso da América
Central.
Passamos cinco semanas na Coreia,
tendo aula de segunda à sexta das 9:00h às 18:00h. Os conteúdos abordados tratavam
de administração pública, cooperação internacional e logística, com foco na
experiência coreana. Além das aulas, tivemos que desenvolver pesquisas, que ao
final do programa foram apresentadas e avaliadas em uma feira científica. Ao
menos uma vez por semana era realizada também alguma visita técnica: a órgãos
públicos, organizações internacionais sediadas no país, empresas nacionais de
peso, como a Samsung, e também a sítios históricos.
Residimos e estudamos na
Universidade Nacional de Incheon, localizada em Songdo, em Incheon, cidade
portuária vizinha da capital Seul. Songdo é um território que até recentemente era
mar, tendo sido transformado em terra sobre a qual se edificou uma cena urbana.
É chamada de “cidade do futuro”, planejada desde o zero há menos de uma década,
repleta de tecnologias. Ali estão sediadas organizações como o escritório
regional do Banco Mundial e a UNESCAP, comissão sub-regional com funções iguais
às de nossa CEPAL; e também as principais indústrias do país, que ali são
sujeitas a um regime tarifário diferenciado, visando promover a ocupação do
território.
Durante a estadia, tive a sorte de estabelecer
fortes amizades com coreanos, como os que residiam no dormitório da faculdade. Com
isso tive a oportunidade de vivenciar vários aspectos da sociedade e me engajar
em temas não abordados dentro da sala de aula. Enquanto internacionalista, as
questões que mais me chamaram a atenção foram a Coreia do Norte e os Estados
Unidos dentro do imaginário social sul-coreano.
Fui
com a ideia de que os sul-coreanos viviam em um estado
permanente de insegurança por conta da Coreia do Norte, e que por isso nutriam
sentimentos negativos contra o país. Na verdade, a despeito da ressonância mediática
no Ocidente, nenhum dos coreanos com quem conversei acreditava na possibilidade
de um ataque ou guerra, acreditando se tratarem de ameaças retóricas, sem
qualquer influência em seu cotidiano.
Ademais,
os sul-coreanos tendem a partir de uma distinção muito clara entre povo e governo norte-coreano, que permite uma visão de irmandade. Um
discurso que ouvia com frequência era o de que “a Coreia é uma há cinco mil anos; foi dividida há pouco mais de cinquenta e em
razão de disputas políticas entre estrangeiros”. A reunificação das Coreias é
considerada uma realidade inevitável para a maioria das pessoas; ao ponto de eu
ter ouvido, uma vez, que é até bom que o Norte desenvolva armamentos nucleares,
já que assim, quando reunificada, a Coreia nasceria como potência nuclear.
Com
relação aos Estados Unidos, fui com o estereótipo de que os sul-coreanos teriam
uma visão quase natural em favor do país. A verdade é que é bastante comum uma
visão bastante crítica, sobretudo em se tratando das relações com o Norte, em
que o papel estadunidense é muitas vezes visto como contrário aos interesses do
Sul. Quando estive lá, a discussão da vez era o THAAD, sistema antimíssil em
instalação pelos EUA na fronteira. Era frequente a leitura de que o THAAD não
visava proteger à Coreia, mas sim ao Ocidente, e de que sua instalação mais
promoveria que dissiparia tensões.
Embora
a segurança não seja tópico comum, ela reflete em uma das questões sociais do
país: o serviço militar, ponto de reclamação constante dos jovens. Na Coreia,
todos os homens devem passar pelo serviço militar, sem exceções. O serviço
obrigatório dura dois anos e, mesmo após seu término, os homens são constantemente
convocados para treinamentos. Naturalmente, essa obrigatoriedade tem efeitos
sobre a sociedade coreana como um todo, sobretudo na construção de seus
estritos papéis de gênero.
Algumas outras questões sociais me chamaram a
atenção, como o sistema educacional. O adolescente coreano tem a rotina comum
de iniciar seus estudos assim que acorda e finalizá-los apenas antes de ir
dormir. A educação pré-universitária é pública e de alta qualidade, mas por ser
omnipresente é considerada insuficiente para muitas famílias, que sonham que
seus filhos ingressem nas melhores instituições do país.
Por
isso, os estudantes frequentam os hagwon,
escolas privadas especializadas em uma disciplina. A rotina comum é ir à escola
pública, depois ir a uma escola de matemática, uma de inglês e uma de coreano; e
então ir para casa estudar. O vestibular é unificado, como nosso ENEM, e é um
grande evento: no dia, aeronaves não podem circular em espaços aéreos que
possam perturbar os estudantes durante a prova. Todo esse sistema é considerado
bastante abusivo, existindo forte mobilização em seu contrário.
Além
de intensa, a educação pré-universitária é bastante mecânica. Uma história que
me surpreendeu foi a de um amigo que contou que, nas provas de literatura, um
modelo comum de questão é o em que há um enxerto de um livro com lacunas em que
os alunos devem preencher a exata palavra utilizada pelo autor: os estudantes
precisavam decorar capítulos inteiros dos livros. Felizmente, a atual geração
reconhece a inadequação pedagógica desse sistema, ao qual os jovens comumente
atribuem a culpa por seu mau desempenho nas universidades, onde o sistema de
avaliação tem carga reflexiva.
A
obsessão pela educação no país cria também um desequilíbrio: uma massa de
mão-de-obra hiper-qualificada para qual não há trabalho, sendo a emigração a
saída mais comum. Os empregos de baixa especialização são ocupados por
estrangeiros e, principalmente, idosos: a terceira idade coreana é a faixa mais
pobre da população, não tendo acompanhado o boom
do país, que ocorre a partir da década de 1980.
Outra
questão social notável diz respeito ao álcool, elemento central na cultura
coreana, de forma que é rotina comum beber todas as noites, mesmo durante a
semana e dentro da faculdade. A mais comum é o soju, destilado de arroz ou batata doce. A “prática de beber” é
marcada por uma ritualística que induz a sua autoreprodução: se alguém mais
velho, e isso inclui idades muito próximas (a idade tem um papel inestimável
nas relações sociais coreanas), lhe oferece uma bebida, é desrespeitoso
rejeitar. No trabalho, se espera de um bom empregado, homem ou mulher, que saia
beber com seu patrão sempre que convidado. Naturalmente, o alcoolismo é um
problema muito comum.
Falando
em cultura, não há como deixar de mencionar a cultura “em sentido estrito”. A
Coreia possui uma indústria cultural muito robusta e o entretenimento ocupa uma
parcela considerável da economia. K-pop, k-drama, k-movie, k-beauty: a cultural
comercial consumida pela maior parte da população é a produzida dentro do país.
Isso reflete diretamente no padrão estético coreano, bastante particular tanto
em relação ao ocidental quanto ao japonês e chinês, sociedades próximas.
Me
surpreendeu também o fato de que, diferente do que esperava, não é tão comum
encontrar estrangeiros na Coreia. Por isso, existe toda espécie de reação ao se
deparar com um estrangeiro, às vezes bastante negativas. Na maior parte das
vezes, porém, é apenas curiosidade. Uma vez, no metrô, uma senhora sentou ao
meu lado e começou a passar a mão na minha perna, fazendo perguntas muito
espantada. Pelo que pude entender com meu coreano meia-boca, estava inquieta
com o calor que eu devia estar passando por ter pelos na perna, fato incomum
entre os homens coreanos.
Finalmente,
preciso comentar a comida. São várias as questões que tornam a gastronomia
coreana particular: pratos muito apimentados, frios (uma refeição comum é o nengmyeon, macarrão em água com gelo e
melancia ou pasta de pimenta), e, em casos extremos, vivos (como o sannakji, polvo). O maior estranhamento,
porém, foi a inexistência de separação em comidas de café-da-manhã, almoço e
janta. Um “café-da-manhã” comum no refeitório da faculdade era o combo de uma
cumbuca de arroz, uma de sopa, uma de saladas e um prato com alguma proteína
apimentada. O almoço de um dia era o “café” do dia seguinte, a janta do dia
anterior e assim por diante.
O
programa de que participei contribuiu muito para a minha formação pessoal e acadêmica.
Cada país tem uma cultura própria que se imprime em um universo e sistema de
pensamento absolutamente particulares. Ainda assim, por uma série de fatores, o
Ocidente partilha de determinadas premissas que tornam as diversas culturas algo
assimiláveis entre si. A vivência em um país como a Coreia, por sua vez, mostra
contornos da realidade que raramente encontraríamos nos países com que estamos
acostumados.
Estudar
em uma turma de internacionalistas de diferentes fundos latinoamericanos foi
igualmente inestimável. Nos tornamos muito próximos quase que naturalmente, em
razão de semelhanças que nos tornavam estranhos na sociedade coreana. Ao mesmo
tempo em que muitas vezes nossos pensamentos eram similares, evidenciando o
histórico comum de nossa região, em outras eram irreconciliáveis. Uma aula que muito
me marcou foi sobre democracia,
quando discutíamos nossas percepções; tema sobre o qual nossos colegas da
América Central têm histórias (e presentes) muito diferentes da nossa.
Academicamente,
além de impulsionar a desconstrução de paradigmas tomados como dados pelas
ciências ocidentais, o programa me apresentou a uma série de temáticas e
abordagens que, acredito, já são visíveis em meus esforços de pesquisa.
Para
finalizar, há duas dicas que dou a qualquer aluno que tenha se interessado pela
experiência. A primeira é que acompanhe as embaixadas dos países no Facebook. Foi
ali que tomei ciência do processo seletivo para o programa. E a Coreia não é
caso raro: muitos países possuem programas de bolsas desse tipo. A segunda é
que se empenhe nas avaliações da faculdade. Sabemos que o método de avaliação
na graduação é um tanto injusto, padrão que não é exclusivo da instituição ou
mesmo do país. Infelizmente, porém, o GPA,
média de todas as notas da faculdade, é o primeiro, talvez o mais importante,
critério de seleção para bolsas desse tipo na maior parte dos países.