A seção "Noções de Direito Internacional" é coordenada pela Professora Michele Hastreiter e contém artigos escritos pelos alunos da Especialização em Relações Internacionais e Diplomacia do UNICURITIBA.
TRATADOS DE DIREITOS HUMANOS E SEU VALOR
HIERÁRQUICO
MANUELLA TOMBINI ZENONI
Bacharel em Direito e
pós-graduanda em Relações Internacionais e Diplomacia no Centro Universitário
Curitiba – UNICURITIBA.
Bacharel em Direito pela
Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP e pós-graduando em Relações
Internacionais e Diplomacia no Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA.
Bacharel em Direito pelo Centro Universitário
Franciscano do Paraná – UNIFAE e pós-graduando em Relações Internacionais e
Diplomacia no Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA.
“Todos os seres humanos nascem livres e
iguais em dignidade e direitos”[1]. Assim está disposto na primeira
parte do Artigo I da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DE DIREITOS HUMANOS de 1948, tida
como marco do desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos e
da propagação de tratados internacionais sobre o tema[2].
Mas
o que são direitos humanos e por que motivam a elaboração de tratados?
A expressão direitos do homem remete a uma categoria
de direitos que diferem dos demais por terem origem na própria condição humana:
nascem conosco, e podem ser invocados a despeito de contraprestação; e, uma vez
assegurados pelas normas internacionais, classificam-se como direitos humanos[3].
Por outro lado, somente após inúmeras violações é que o conceito de direitos humanos
foi consagrado pela sociedade internacional, o que se deu principalmente por
meio de tratados, especialmente pela e após a mencionada Declaração Universal
de Direitos Humanos.
O preâmbulo da DUDH
revela a intenção, de um lado, de reagir às atrocidades cometidas durante a
Segunda Guerra Mundial e ao manifesto desprezo aos direitos humanos e, de
outro, de garantir que estes alcançassem a todos, ultrapassando barreiras
econômicas, geográficas e culturais e, a partir daquele momento, fossem objeto
de proteção pelas nações signatárias – eis uma das razões pelas quais os
direitos humanos protagonizam o texto de vários tratados.
Os tratados
internacionais consistem em acordos firmados principalmente entre Estados, os
quais, ao ratificarem o documento, ficam obrigados àquelas normas auto impostas,
sob pena de serem aplicadas sanções que igualmente forem por eles estipuladas. Assim,
os tratados de direitos humanos visam garantir que estes sejam protegidos e
respeitados pelos signatários e, não raro, preveem que eventuais violações a
tais direitos sejam submetidas a julgamento por Cortes Internacionais.
Tamanha é a
importância dos direitos humanos para o Direito Internacional que defende-se que
seriam normas cogentes (jus cogens);
ou seja, obrigariam
a todos. Em contrapartida, outros doutrinadores sustentam que a única norma
cogente em Direito Internacional seria a soberania dos Estados. Não há, porém,
controvérsia quanto ao fato de que, uma vez signatário do tratado de direitos humanos,
o Estado a eles se obriga – contudo, a forma de internalização de tais normas
restringe-se ao sistema jurídico de cada país.
No caso do Brasil,
entende-se que nosso sistema jurídico é dualista,
pois o direito interno e o direito internacional seriam ordens jurídicas
distintas, e, por isso, a internalização das normas deste necessitam de um
procedimento em duas etapas.
A primeira é a
ratificação do tratado, por meio da qual o Estado se compromete no plano
internacional perante os demais signatários, podendo, a partir de tal momento,
ser responsabilizado externamente em caso de seu descumprimento. Nesta etapa, o
Congresso Nacional é que detém a competência de, por meio de decreto
legislativo, autorizar o Chefe do Poder Executivo a ratificá-lo. Embora o
Presidente da República não esteja obrigado pelo Parlamento, essa aprovação
legislativa constitui requisito de validade e autorização. Por sua vez, embora
essa autorização incumba ao Congresso, é só o Presidente da República que pode
proceder à ratificação do tratado.[4]
A segunda etapa é a
internalização propriamente dita. A partir desse momento é que o tratado
internacional se incorpora ao nosso ordenamento jurídico, podendo ser exigível
no plano interno e constituir fontes de direitos e obrigações também em solo
brasileiro. A internalização se dá por meio da promulgação do tratado em
decreto executivo, a ser publicado no Diário Oficial da União.
Feitas tais considerações, é de se perguntar qual seria o
valor hierárquico de um tratado na ordem jurídica interna. Por serem normas originárias
do direito internacional, teriam prevalência sobre as normas locais? Ou teriam
mesma hierarquia e teriam que se subordinar, igualmente, à Constituição Federal?
Para tratados em geral, a resposta é mais simples. Uma
vez incorporados ao ordenamento brasileiro, possuem valor de lei. Conforme
anota o professor Marcelo Dias Varella, não importa se será lei complementar,
ordinária ou delegada: o tratado terá o valor formal da norma suficiente para
regular o tema.[5]
A solução reservada aos tratados que versem sobre
direitos humanos é um pouco mais complexa. Após a promulgação da Emenda
Constitucional nº 45/2004, a nova redação do artigo 5º, § 3º da Constituição
afirma que “os
tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem
aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos
dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes
às emendas constitucionais”.
Entende a doutrina que
os demais tratados e convenções de direitos humanos que não sejam aprovados
nestes termos têm, ao menos, um status supralegal. Isto é, não gozam de caráter
constitucional, mas ao menos possuem valor normativo superior às leis em
sentido estrito.
A hierarquia superior
estatuída pelo art. 5º, § 3º, tem ao menos um motivo de ordem procedimental e
outro de ordem material.
Com efeito, o trâmite
em dois turnos e com o quórum diferenciado é o mesmo estabelecido pela Carta
Maior para a aprovação de uma emenda à Constituição. Assim, se a norma de
direito internacional consegue o mesmo aval, pelo Poder Legislativo, que uma
norma interna precisaria para alterar a própria lei maior, não há razão para
que não tenha o mesmo status formal de uma emenda constitucional.
Em sentido material,
porque na Constituição Federal, pela sua hierarquia e caráter de pilar sobre o
qual se assentam todas as outras normas brasileiras, é que devem estar
disciplinados os direitos humanos. Se assim não o fosse, essa matéria de
inegável importância poderia sempre ameaçada de supressão ou alteração por um
ato legislativo comum. Se o tratado dispõe sobre direitos humanos, portanto, é
mais do que recomendável que ele esteja protegido na ordem interna pelo mesmo
status de EC, porquanto a matéria por ele disciplinada, sozinha, já tem valor constitucional.
A
título exemplificativo, com o condão de demonstrar o impacto que os tratados de
tal natureza acarretam, perante o ordenamento jurídico dos Estados que se
sujeitam a assinar e ratificar tratados desta natureza tão peculiar, é possível
citar a Declaração Europeia de Direitos Humanos de 1953.
Este
tratado multilateral foi responsável por dar vazão aos Direitos Humanos no
continente europeu, ajudando a moldar um conceito uno de Direitos Fundamentais,
que se seguiram após a sua entrada em vigor, bem como a dar eficácia para a
Corte Europeia de Direitos Humanos de Estrasburgo, e, assim, julgar e coibir
atos estatais lesivos e contrários a tais figuras, sem tolher à soberania e
autonomia de cada Estado-membro. Cabe destacar, tal documento surgiu no
conturbado período da Guerra Fria, e, inicialmente, congregou apenas os países
do bloco ocidental, criando uma unidade jurídica no tocante à proteção das
garantias jurídicas básicas. Posteriormente, ao final do conflito e consequente
estabilização das Relações Internacionais, os países do bloco Oriental aderiram
individualmente à Declaração, e assim unificaram o sistema de proteção de
garantias mínimas, perante a ordem previamente estabelecida. Sem embargo, as
novas Constituições destes Estados positivaram os Direitos Fundamentais, em
conformidade com o texto deste importante documento, e em consonância aos
demais países signatários.
O
continente americano não fugiu desse precedente. Na década de 1960, em plena
ebulição da Guerra Fria, os países alinhados com o bloco capitalista seguiram o
mesmo caminho, e editaram a sua declaração continental de Direitos Humanos,
chamada de Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. Evidentemente,
naquele período histórico, devido aos regimes ditatoriais instalados na maioria
dos países do continente americano, a eficácia da proteção daqueles direitos
foi dirimida. Posteriormente, com o abrandamento da Guerra Fria, e sua
posterior conclusão, resultando na derrubada de tais regimes totalitários, tal
tratado multilateral passou a ser ratificado pela grande maioria dos países do
continente americano, e os ordenamentos jurídicos passaram a ser alterados para
comportar uma ordem coesa de Direitos Humanos, positivados na forma de Direitos
Fundamentais nas Constituições e nas reformas jurídicas que se seguiram.
Destaca-se, a Corte Interamericana de Direitos Humanos possui as mesmas
finalidades que a sua contraparte europeia, quais sejam: fiscalizar e julgar
atos estatais lesivos às tais garantias, respeitando, ainda, a soberania de
cada membro.
Os
conflitos militares pretéritos e a globalização são dois fenômenos que
resultaram no desenvolvimento de uma nova ordem jurídica, de caráter universal,
que possui um pressuposto comum entre todos os ordenamentos jurídicos
provenientes de Estados soberanos: a proteção do ser humano. É evidente,
portanto, que o processo de hierarquização entre os tratados coloque aqueles
que versam sobre Direitos Humanos em um patamar de destaque, em relação aos
demais, até por uma noção de maior segurança jurídica para a sua concreta
efetivação e densidade normativa.
Ademais,
o conhecido Efeito Cliquet, o qual,
em apertada síntese, veda o retrocesso em matéria de Direitos Humanos, ou, em
outras palavras, aquilo que foi instituído, jamais será retirado, de modo que os
Direitos Humanos são apenas conquistados e não perdidos, é o propulsor para a
criação de tratados que versam sobre tais figuras, impondo um grande
desenvolvimento de documentos tal natureza. Assim, é natural que tal matéria
seja cada vez mais regulamentada de forma bilateral ou multilateral. Outrossim,
é compreensível que tais tratados preponderem diante dos demais, e sejam
elencados em um patamar específico pela ordem jurídica interna dos países, em
detrimento de outros tratados de natureza diversa, ou, demais normas jurídicas
internas.
Levando
em consideração o sistema normativo de hierarquização de normas legado por Hans
Kelsen, percebe-se que o mesmo acaba por ser reproduzido no desenvolvimento de
uma hierarquia entre tratados. Isto decorre da necessidade de alçar os Direitos
Humanos em um patamar idêntico, ou até mesmo superior ao texto constitucional,
para garantir que as diretrizes emanadas da ratificação de tais tratados sejam
devidamente cumpridas internamente. Não obstante, o seu eventual descumprimento
acarreta em sanções por parte de Cortes Superiores, que possuem natureza
supranacional e um fim único de zelar por tais figuras, cujos próprios Estados
concordaram em respeitar e promover.
Por
derradeiro, à sobreposição de tais tratados, além de necessária, é um ato
decorrente do desenvolvimento de um sistema supranacional de proteção de
Direitos Humanos, contrário ao Positivismo Jurídico, responsável por relegar o
ser humano ao segundo plano, chancelando diversas atrocidades em prol da
harmonia e tecnicidade da norma, como bem aduzido por Radbruch sem seu
conhecido texto “Cinco Minutos de Filosofia”[6],
em que conclama à desobediência da norma em respeito à figura humana. Em
contrapartida, atualmente, a valorização do ser humano se materializa de forma
exuberante, de modo que os seus direitos estão colocados acima de qualquer
legislação, seja ela infraconstitucional ou até mesmo constitucional.
Norteando, portanto, qualquer ação de Estado, e embasando qualquer atuação
supranacional para garantir o seu respeito.
[1]
http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf
[2]
PIOVESAN, Flávia. Tratados
internacionais de proteção dos direitos humanos: jurisprudência do STF.
http://www. defensoria.sp.gov.br/dpesp/Repositorio/31/Documentos/Artigos/00000034-001_FlaviaPioveasn.
pdf. Acesso em 02/11/2016, v. 12. Pg. 01-02.
[3]
MAZZUOLI, Valerio de
Oliveira. Curso de direitos humanos. São
Paulo: Método, 2015, 2ª edição. Capítulo I.
[4]
Cf. MAZZUOLI, Valério de
Oliveira. Curso de direito internacional
público. 5ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2011. p. 347.
[5] VARELLA, Marcelo Dias. Direito internacional público. São Paulo:
Saraiva, 2009. p. 67.
[6] RADBRUCH, Gustav. Fünf Minuten
Rechtsphilosophie. in: Rhein-Neckar-Zeitung vom 12.9.1945, zitiert nach dem
Neuabdruck in: ders., Rechtsphilosophie, 8. Aufl., hrsgg. von Erik Wolf und
Hans-
Peter
Schneider, Stuttgart 1973, S. 327 ff. Disponível em
<http://www.servat.unibe.ch/rphil/t/Radbruch_Fuenf_Minuten.pdf>. Acesso em: 05/11/2016.
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