quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Opinião: O Direito Internacional vs. Donald Trump





OPINIÃO: O DIREITO INTERNACIONAL VS. DONALD TRUMP 

Michele Alessandra Hastreiter**

            Donald Trump tomou posse como o 45º presidente dos Estados Unidos no dia 20 de janeiro de 2017. Em seus primeiros dias de governo, mostrou que está disposto a cumprir suas mais polêmicas promessas de campanha e tem tomado decisões e publicado decretos que versam, sobretudo, sobre questões de política externa. Adotando um discurso nacionalista e evocando um resgate à soberania nacional, Donald Trump parte de uma presunção verdadeira (a de que os Estados são livres para decidirem como querem conduzir sua política externa) para uma conclusão muito distante de estar correta (a de que esta liberdade soberana é isenta de qualquer limite). Muitos de seus posicionamentos e decisões, em seu curto período de governo, tocam em aspectos sensíveis ao Direito Internacional Contemporâneo, desafiando um sistema erigido no Pós Segunda Guerra Mundial.
            Apesar da inexistência de um governo mundial, os acontecimentos da Segunda Guerra tornaram evidente a necessidade de normatizar o convívio internacional dos Estados nas mais diferentes searas, fazendo com que a sociedade internacional se tornasse cada vez menos uma sociedade anárquica. A expansão do Direito Internacional após a Segunda metade do Século XX foi tão expressiva quanto o aumento da integração global do período – propiciado pela redução dos custos de transporte e dos avanços tecnológicos na seara da comunicação. A sociedade internacional viu-se não só apenas cada vez mais integrada, mas também cada vez mais regulada por instituições de diferentes espécies e graus de efetividade. Vários são os exemplos.
            Muito embora existam registros de Tratados comerciais desde a Antiguidade e já no Século XIX houvesse acordos de comércio, investimentos e de propriedade intelectual bem desenvolvidos, o Direito Internacional Econômico moderno avançou fortemente com base nas instituições criadas na Conferência de Bretton Woods, em 1947, com o objetivo de reestruturar a economia no pós Guerra; o Direito Internacional dos Direitos Humanos, por sua vez, surge de modo incipiente no século XIX, mas desponta de modo estruturado e coerente visando evitar que se repitam os horrores do holocausto com a Carta da Organização das Nações Unidas (1945) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (de 1948); o Direito Internacional do Refugiados tem na Convenção de Genebra de 1951, criada para proteger os refugiados da Segunda Guerra, seu principal marco regulador; o Direito Internacional Penal tem como precursor o julgamento dos oficiais nazistas no Tribunal de Nuremberg (ocorrido entre 1945 e 1946); o Direito da Integração e o processo de formação de blocos econômicos integrados tem seu início na Comunidade Europeia do Carvão de do Aço – o embrião da União Europeia fundado em 1950 justamente com o escopo de evitar um novo conflito de proporções globais.     
            Ao mesmo tempo, é também a partir da Segunda Guerra Mundial que grande parte das normas do Direito Internacional passam da obscuridade do Direito Consuetudinário para ganharem mais clareza e robustez na medida em que são positivadas em Tratados Internacionais (tome-se como exemplo, neste sentido, as Convenções de Viena sobre Relações Diplomáticas e Consulares ou, ainda, a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, todas da década de 1960). É também a partir da Segunda Guerra que despontam órgãos judiciais e arbitrais para dirimir controvérsias de Direito Internacional nas suas mais diversas searas.
            Apesar do Direito Internacional não ter se construído de modo imune às críticas, pode-se dizer que o Direito Internacional contemporâneo – com suas forças e suas fraquezas – é uma conquista do Pós-Segunda Guerra Mundial.  Ainda que a efetividade de algumas de suas normas ou mesmo a adequação de outras as necessidades de países com diferentes níveis de desenvolvimento possa ser questionada, não há dúvidas de que o Direito Internacional contribuiu para a estabilização global e para a propagação de valores cosmopolitas em oposição ao nacionalismo (que sobretudo na Segunda Guerra mostrou-se altamente destrutivo).
            Isto é, até Donald Trump.
            Em doze dias de governo, Donald Trump adotou uma série de medidas que - travestidas de decisões livres e soberanas dos Estados Unidos - afetam compromissos assumidos pelos próprios estadunidenses, também de modo livre e soberano, em Tratados Internacionais. Comentarei especificamente duas destas decisões: o veto à entrada de muçulmanos de sete países e a construção do muro entre México e Estados Unidos.

O veto à entrada de muçulmanos da Síria, Irã, Iraque, Sudão, Somália, Líbia e Iêmen

            É bem verdade que até mesmo os documentos internacionais de Direitos Humanos têm resistências em estabelecer a migração como um direito. O artigo XII da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, por exemplo, estabelece a liberdade de circulação internacional dos indivíduos como uma regra jurídica, ao afirmar que “Toda pessoa tem direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar”. Tal princípio estabelece que os indivíduos não devem estar confinados a uma localidade específica, tendo o direito de circular. A Declaração nada prevê, no entanto, acerca da possibilidade do indivíduo se estabelecer em outro país, diferente do de sua nacionalidade. Esta é uma reivindicação de grupos favoráveis às migrações e seria um avanço importante no processo de ampliação dos Direitos Humanos, mas que ainda não se concretizou.
            Assim, os Estados são, de fato, livres para determinar, de acordo com sua legislação nacional, quem pode entrar e permanecer em seu país. Até mesmo a concessão de um visto de entrada ou permanência constitui-se em mera expectativa de direito, sendo possível que um estrangeiro portador de visto tenha seu ingresso negado pela polícia de fronteira.
            Isto não significa, porém, que a política migratória de um país esteja livre de qualquer limitação do Direito Internacional. A decisão de Donald Trump de banir a entrada de estrangeiros de sete países diferentes de maioria muçulmana – sem que tal medida possa ser identificada como uma contramedida – desafia o Direito Internacional dos Direitos Humanos na medida em que se constitui em uma prática discriminatória, baseada em aspectos religiosos e raciais, e, portanto, incompatível com as obrigações de Direitos Humanos dos Estados Unidos estabelecida em diversos instrumentos internacionais.
            O país é signatário, por exemplo, da Declaração de Bogotá de 1948 (a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem), obrigatória a todos os membros da OEA (Organização dos Estados Americanos). Nela, consta o direito a igualdade perante a lei, que afirma: “Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm os direitos e deveres consagrados nesta declaração, sem distinção de raça, língua, crença, ou qualquer outra”.
            Ao banir a entrada de nacionais de países de maioria muçulmana, independentemente de qualquer outra análise ou critério objetivo, Trump cria uma discriminação indevida e, portanto, contrária ao compromisso de assegurar a igualdade entre os seres humanos, assumido internacionalmente pelos Estados Unidos. No mesmo sentido, a medida também viola o Artigo 26 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, adotado em 1966 pela Assembleia das Nações Unidas, o qual estabelece que “Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito, sem discriminação alguma, a igual proteção da Lei. A este respeito, a lei deverá proibir qualquer forma de discriminação e garantir a todas as pessoas proteção igual e eficaz contra qualquer discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação”.
            Na medida em que hostiliza muçulmanos, suprimindo seus diretos com o fundamento na discriminação religiosa, a medida também viola o Artigo 18 do referido pacto, que afirma que: “Ninguém poderá ser submetido a medidas coercitivas que possam restringir sua liberdade de ter ou de adotar uma religião ou crença de sua escolha”.             Quando Trump determinou que inclusive portadores do Greencard  (visto de permanência norte-americano) deveriam ser impedidos de ingressar no país – medida esta posteriormente revista judicialmente nos Estados Unidos – sua decisão certamente pegou desprevenidas uma série de pessoas em viagem, proibidas de retornar a sua residência habitual e ao seu convívio familiar. Neste sentido, a prática viola o artigo 23 do mesmo Pacto, que estabelece que: “A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e terá o direito de ser protegida pela sociedade e pelo Estado”.
            As posições e discursos de Trump, podem, ainda, ser considerados violadores do artigo 20 do mesmo Pacto, que diz Será proibida por lei qualquer apologia do ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade ou a violência”.
            Por fim, se - no que diz respeito aos migrantes – não há de fato uma obrigação de Direito Internacional em recebê-los, o mesmo não pode ser dito no que toca aos refugiados, que também foram atingidos pelo veto de Trump.             A Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951 e o seu Protocolo complementar de 1967 (ambos assinados pelos Estados Unidos)  determina que são refugiados as pessoas que se encontram fora do seu país por causa de fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, opinião política ou participação em grupos sociais, e que não possa (ou não queira) voltar para casa. Estas convenções estabelecem como uma obrigação da comunidade internacional  proteger e conceder asilo seguro aos refugiados.
            Desta forma, o ingresso de solicitantes de refúgio não pode ser negado sem que haja um processo justo determinando o não-enquadramento do indivíduo na condição de refugiado. O banimento automático de Trump, especialmente no que diz respeito aos sírios – país de onde um contingente crescente de refugiados tem partido em busca de abrigo – viola, portanto, obrigações dos Estados Unidos perante a comunidade internacional. A medida poderá ser questionada na ONU e na OEA, além de estar sujeita ao crivo do judiciário interno norte-americano, que deve aplicar as normas de Direito Internacional aceitas pelos Estados Unidos como parte do seu Direito doméstico.


A construção do muro separando Estados Unidos e México

            Outra polêmica promessa de campanha cumprida por Donald Trump em sua primeira semana de governo foi a expedição de um decreto determinando a construção de um muro entre Estados Unidos e México. Novamente, neste caso, Trump confunde direitos soberanos com violações ao Direito Internacional.
            É lícito e permitido que os Estados protejam suas fronteiras territoriais, adotando para isto as medidas que acharem necessárias. A construção de barreiras físicas – embora uma prática anacrônica em um mundo que se diz cosmopolita e “sem fronteiras” -  não é exatamente uma inovação de Trump, e existem no mundo vários marcos físicos que dividem países e muros construídos com o objetivo de frear movimentos migratórios. Algumas cidades da fronteira entre os Estados Unidos e o México (como a região entre San Diego e Tijuana, por exemplo) já são, de fato, separadas por muros. Assim, não há, em princípio, vedação no Direito Internacional para que a construção se concretize.
            No entanto, México e Estados Unidos são parceiros comerciais, signatários, junto com o Canadá, do NAFTA (North American Free Trade Agreement). Este acordo impede Donald Trump de cumprir a promessa que fez aos seus eleitores de que, além de construir o muro, faria o México pagar por ele por meio da elevação de alíquotas comerciais entre os dois países.
            O NAFTA surgiu na década de 1990 como um acordo comercial, mas, na verdade,  boa parte de sua motivação estava em impulsionar a confiança de investidores americanos e canadenses para aplicar recursos na economia mexicana, de tal forma que a geração de novos postos de trabalho neste país pudesse reduzir o contingente de imigrantes ilegais. Com o livre fluxo de mercadorias, empresas poderiam produzir no México e vender ao Canadá e aos Estados Unidos com ganhos de escala – e com isto, gerariam empregos aos mexicanos. Existem muitas críticas à forma como o NAFTA foi gerido – em especial, pela precarização dos direitos dos trabalhadores mexicanos que ocasionou – mas não há dúvidas de que o Acordo foi uma medida que visava reduzir o fluxo migratório entre os países de uma maneira muito diferente do que a proposta por Donald Trump, que pretende não só erguer o muro, mas elevar alíquotas e promover o retorno de empresas estadunidenses ao país, agravando o desemprego no México. Tal medida, além um ultraje à solidariedade internacional, poderá ser um “tiro pela culatra” no afã de Trump para reduzir o contingente migratório: com o agravamento das condições sociais que uma crise econômica que pode ser desencadeada no México como consequência de tais medidas, a pressão migratória tende a aumentar e a vontade de sair em busca de oportunidades de vida melhores além das fronteiras também, com ou sem um muro.
            É de se destacar, porém, que o NAFTA protege interesses de diversas indústrias e investidores norte-americanos, canadenses e mexicanos, dispondo inclusive de mecanismos de solução de controvérsias bastante eficazes. Além da pressão política e econômica que estes atores privados são capazes de exercer, caso as medidas de Donald Trump afetem investidores estrangeiros no NAFTA, é possível que os Estados Unidos vejam-se alvos de disputas promovidas por empresas no ICSID (International Center of Settlement of Investment Disputes), órgão anexo ao Banco Mundial que concede acesso à atores privados para solicitarem reparações por violações de Direito Internacional perpetradas por governos.  
            É de se ressaltar que Trump já afirmou que deseja rever o NAFTA – o que poderá fazê-lo apenas com a concordância dos demais países signatários. Do contrário, deverá retirar-se do Acordo. Ocorre que, como já foi dito, o NAFTA favorece interesses econômicos relevantes de grandes empresas norte-americanas, de tal forma que tal decisão deverá enfrentar obstáculos internos poderosos.
            Ainda que o faça, porém, Trump não estará livre para simplesmente aumentar as alíquotas dos produtos mexicanos para “fazê-los pagar pelo muro”. Isto porque os dois países também são membros da Organização Mundial do Comércio (OMC), organização internacional que não permite a elevação arbitrária e discriminatória de tarifas. A OMC também dispõe de um órgão de solução de controvérsias que permitiria ao México questionar a medida. Ainda que os mecanismos de execução da OMC não sejam tão bem desenvolvidos quanto os do ICSID, os Estados Unidos têm interesses econômicos relevantes na manutenção do sistema multilateral de comércio funcionando. O seu desrespeito às normas da organização poderia levar a um colapso do sistema como um todo – o que certamente não seria bem visto por setores importantes à economia doméstica estadunidense.
            Em suma: do ponto de vista jurídico, os Estados Unidos podem construir o muro – embora tal medida possa, do ponto de vista político e econômico, prejudicar suas relações bilaterais com o México e afetar interesses domésticos relevantes nos dois países. No entanto, ainda que o muro seja efetivamente construído, é preciso lembrar que se trata de um ato unilateral dos Estados Unidos, com o qual deverão arcar, sozinhos. Isto significa construir o muro com o dinheiro dos contribuintes estadunidenses, não existindo nenhum mecanismo lícito pelo qual os EUA poderiam exigir qualquer pagamento do México. Ainda, se tentar forçar um pagamento mexicano por meio de qualquer tipo de ingerência às transações comerciais entre os dois países, Trump estará cometendo um ilícito internacional e os Estados Unidos poderão ser responsabilizados em diferentes organismos de solução de controvérsias do Direito Internacional Econômico.

            O que estes dois exemplos (o veto à imigrantes muçulmanos e a construção do muro) evidenciam é que Donald Trump não pode conduzir a política externa dos Estados Unidos utilizando-se das bravatas anti-migratórias que o elegeram. Há limites impostos pelo Direito Internacional para suas atuações, e os Estados Unidos poderão responder por isto nacional e internacionalmente.
            É claro que os meios de sanção do Direito Internacional ainda não são tão avançados quanto os do Direito Interno, e – especialmente quando se tratam de grandes potências econômicas e militares como os Estados Unidos – dependem de uma vontade política forte da comunidade internacional. Se persistir com seus decretos-sandices, Donald Trump estará desafiando a comunidade internacional: ou as instituições internacionais fornecem uma resposta à altura, ou assistiremos – paulatinamente – a falência do sistema de governança global erigido Pós Segunda Guerra Mundial principalmente para evitar estes arroubos totalitários. Esperamos que não seja este o caso. Uma anarquia internacional nos tempos modernos pode ser algo bastante perigoso.   

**Michele Alessandra Hastreiter é Mestre em Direito  e Professora de Direito Internacional Público e Privado no UNICURITIBA. As opiniões trazidas no texto pertentem à autora, e não ao Blog Internacionalize-se ou à UNICURITIBA.

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