OPINIÃO: O DIREITO INTERNACIONAL VS. DONALD TRUMP
Michele Alessandra Hastreiter**
Donald Trump tomou posse como o 45º presidente
dos Estados Unidos no dia 20 de janeiro de 2017. Em seus primeiros dias de
governo, mostrou que está disposto a cumprir suas mais polêmicas promessas de
campanha e tem tomado decisões e publicado decretos que versam, sobretudo,
sobre questões de política externa. Adotando um discurso nacionalista e
evocando um resgate à soberania nacional, Donald Trump parte de uma presunção
verdadeira (a de que os Estados são livres para decidirem como querem conduzir
sua política externa) para uma conclusão muito distante de estar correta (a de
que esta liberdade soberana é isenta de qualquer limite). Muitos de seus
posicionamentos e decisões, em seu curto período de governo, tocam em aspectos
sensíveis ao Direito Internacional Contemporâneo, desafiando um sistema erigido
no Pós Segunda Guerra Mundial.
Apesar da inexistência de um governo
mundial, os acontecimentos da Segunda Guerra tornaram evidente a necessidade de
normatizar o convívio internacional dos Estados nas mais diferentes searas,
fazendo com que a sociedade internacional se tornasse cada vez menos uma
sociedade anárquica. A expansão do Direito Internacional após a Segunda metade
do Século XX foi tão expressiva quanto o aumento da integração global do
período – propiciado pela redução dos custos de transporte e dos avanços
tecnológicos na seara da comunicação. A sociedade internacional viu-se não só
apenas cada vez mais integrada, mas também cada vez mais regulada por
instituições de diferentes espécies e graus de efetividade. Vários são os
exemplos.
Muito embora existam registros de
Tratados comerciais desde a Antiguidade e já no Século XIX houvesse acordos de
comércio, investimentos e de propriedade intelectual bem desenvolvidos, o
Direito Internacional Econômico moderno avançou fortemente com base nas instituições
criadas na Conferência de Bretton Woods, em 1947, com o objetivo de
reestruturar a economia no pós Guerra; o Direito Internacional dos Direitos
Humanos, por sua vez, surge de modo incipiente no século XIX, mas desponta de
modo estruturado e coerente visando evitar que se repitam os horrores do
holocausto com a Carta da Organização das Nações Unidas (1945) e a Declaração
Universal dos Direitos Humanos (de 1948); o Direito Internacional do Refugiados
tem na Convenção de Genebra de 1951, criada para proteger os refugiados da
Segunda Guerra, seu principal marco regulador; o Direito Internacional Penal
tem como precursor o julgamento dos oficiais nazistas no Tribunal de Nuremberg
(ocorrido entre 1945 e 1946); o Direito da Integração e o processo de formação
de blocos econômicos integrados tem seu início na Comunidade Europeia do Carvão
de do Aço – o embrião da União Europeia fundado em 1950 justamente com o escopo
de evitar um novo conflito de proporções globais.
Ao mesmo tempo, é também a partir da
Segunda Guerra Mundial que grande parte das normas do Direito Internacional
passam da obscuridade do Direito Consuetudinário para ganharem mais clareza e
robustez na medida em que são positivadas em Tratados Internacionais (tome-se
como exemplo, neste sentido, as Convenções de Viena sobre Relações Diplomáticas
e Consulares ou, ainda, a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, todas
da década de 1960). É também a partir da Segunda Guerra que despontam órgãos
judiciais e arbitrais para dirimir controvérsias de Direito Internacional nas
suas mais diversas searas.
Apesar do Direito Internacional não
ter se construído de modo imune às críticas, pode-se dizer que o Direito
Internacional contemporâneo – com suas forças e suas fraquezas – é uma
conquista do Pós-Segunda Guerra Mundial. Ainda que a efetividade de algumas de suas
normas ou mesmo a adequação de outras as necessidades de países com diferentes
níveis de desenvolvimento possa ser questionada, não há dúvidas de que o
Direito Internacional contribuiu para a estabilização global e para a
propagação de valores cosmopolitas em oposição ao nacionalismo (que sobretudo
na Segunda Guerra mostrou-se altamente destrutivo).
Isto é, até Donald Trump.
Em doze dias de governo, Donald
Trump adotou uma série de medidas que - travestidas de decisões livres e
soberanas dos Estados Unidos - afetam compromissos assumidos pelos próprios
estadunidenses, também de modo livre e soberano, em Tratados Internacionais. Comentarei
especificamente duas destas decisões: o veto à entrada de muçulmanos de sete
países e a construção do muro entre México e Estados Unidos.
O veto à entrada de muçulmanos da Síria, Irã,
Iraque, Sudão, Somália, Líbia e Iêmen
É bem verdade que até mesmo os
documentos internacionais de Direitos Humanos têm resistências em estabelecer a
migração como um direito. O artigo XII da Declaração Universal dos Direitos do
Homem, de 1948, por exemplo, estabelece a liberdade de circulação internacional
dos indivíduos como uma regra jurídica, ao afirmar que “Toda pessoa tem direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio,
e a este regressar”. Tal princípio estabelece que os indivíduos não devem
estar confinados a uma localidade específica, tendo o direito de circular. A
Declaração nada prevê, no entanto, acerca da possibilidade do indivíduo se
estabelecer em outro país, diferente do de sua nacionalidade. Esta é uma reivindicação
de grupos favoráveis às migrações e seria um avanço importante no processo de
ampliação dos Direitos Humanos, mas que ainda não se concretizou.
Assim, os Estados são, de fato,
livres para determinar, de acordo com sua legislação nacional, quem pode entrar
e permanecer em seu país. Até mesmo a concessão de um visto de entrada ou
permanência constitui-se em mera expectativa de direito, sendo possível que um
estrangeiro portador de visto tenha seu ingresso negado pela polícia de
fronteira.
Isto não significa, porém, que a política
migratória de um país esteja livre de qualquer limitação do Direito
Internacional. A decisão de Donald Trump de banir a entrada de estrangeiros de
sete países diferentes de maioria muçulmana – sem que tal medida possa ser
identificada como uma contramedida – desafia o Direito Internacional dos
Direitos Humanos na medida em que se constitui em uma prática discriminatória,
baseada em aspectos religiosos e raciais, e, portanto, incompatível com as
obrigações de Direitos Humanos dos Estados Unidos estabelecida em diversos
instrumentos internacionais.
O país é signatário, por exemplo, da
Declaração de Bogotá de 1948 (a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do
Homem), obrigatória a todos os membros da OEA (Organização dos Estados
Americanos). Nela, consta o direito a igualdade perante a lei, que afirma: “Todas as pessoas são iguais perante a lei e
têm os direitos e deveres consagrados nesta declaração, sem distinção de raça,
língua, crença, ou qualquer outra”.
Ao banir a entrada de nacionais de
países de maioria muçulmana, independentemente de qualquer outra análise ou
critério objetivo, Trump cria uma discriminação indevida e, portanto, contrária
ao compromisso de assegurar a igualdade entre os seres humanos, assumido
internacionalmente pelos Estados Unidos. No mesmo sentido, a medida também
viola o Artigo 26 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos,
adotado em 1966 pela Assembleia das Nações Unidas, o qual estabelece que “Todas as pessoas são iguais perante a lei e
têm direito, sem discriminação alguma, a igual proteção da Lei. A este
respeito, a lei deverá proibir qualquer forma de discriminação e garantir a
todas as pessoas proteção igual e eficaz contra qualquer discriminação por
motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra
natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer
outra situação”.
Na medida em que hostiliza
muçulmanos, suprimindo seus diretos com o fundamento na discriminação religiosa,
a medida também viola o Artigo 18 do referido pacto, que afirma que: “Ninguém poderá ser submetido a medidas
coercitivas que possam restringir sua liberdade de ter ou de adotar uma
religião ou crença de sua escolha”. Quando
Trump determinou que inclusive portadores do Greencard (visto de
permanência norte-americano) deveriam ser impedidos de ingressar no país –
medida esta posteriormente revista judicialmente nos Estados Unidos – sua decisão
certamente pegou desprevenidas uma série de pessoas em viagem, proibidas de
retornar a sua residência habitual e ao seu convívio familiar. Neste sentido, a
prática viola o artigo 23 do mesmo Pacto, que estabelece que: “A família é o elemento natural e
fundamental da sociedade e terá o direito de ser protegida pela sociedade e
pelo Estado”.
As posições e discursos de Trump,
podem, ainda, ser considerados violadores do artigo 20 do mesmo Pacto, que diz “Será proibida por lei qualquer apologia do
ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à
hostilidade ou a violência”.
Por fim, se - no que diz respeito
aos migrantes – não há de fato uma obrigação de Direito Internacional em recebê-los,
o mesmo não pode ser dito no que toca aos refugiados, que também foram
atingidos pelo veto de Trump. A
Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951 e o seu
Protocolo complementar de 1967 (ambos assinados pelos Estados Unidos) determina que são refugiados as pessoas que se
encontram fora do seu país por causa de fundado temor de perseguição por
motivos de raça, religião, nacionalidade, opinião política ou participação em
grupos sociais, e que não possa (ou não queira) voltar para casa. Estas
convenções estabelecem como uma obrigação da comunidade internacional proteger e conceder asilo seguro aos
refugiados.
Desta forma, o ingresso de
solicitantes de refúgio não pode ser negado sem que haja um processo justo determinando
o não-enquadramento do indivíduo na condição de refugiado. O banimento
automático de Trump, especialmente no que diz respeito aos sírios – país de
onde um contingente crescente de refugiados tem partido em busca de abrigo –
viola, portanto, obrigações dos Estados Unidos perante a comunidade
internacional. A medida poderá ser questionada na ONU e na OEA, além de estar
sujeita ao crivo do judiciário interno norte-americano, que deve aplicar as
normas de Direito Internacional aceitas pelos Estados Unidos como parte do seu
Direito doméstico.
A construção do muro separando Estados Unidos e
México
Outra polêmica promessa de campanha
cumprida por Donald Trump em sua primeira semana de governo foi a expedição de
um decreto determinando a construção de um muro entre Estados Unidos e México.
Novamente, neste caso, Trump confunde direitos soberanos com violações ao
Direito Internacional.
É lícito e permitido que os Estados
protejam suas fronteiras territoriais, adotando para isto as medidas que
acharem necessárias. A construção de barreiras físicas – embora uma prática
anacrônica em um mundo que se diz cosmopolita e “sem fronteiras” - não é exatamente uma inovação de Trump, e
existem no mundo vários marcos físicos que dividem países e muros construídos
com o objetivo de frear movimentos migratórios. Algumas cidades da fronteira
entre os Estados Unidos e o México (como a região entre San Diego e Tijuana,
por exemplo) já são, de fato, separadas por muros. Assim, não há, em princípio,
vedação no Direito Internacional para que a construção se concretize.
No entanto, México e Estados Unidos
são parceiros comerciais, signatários, junto com o Canadá, do NAFTA (North American Free Trade Agreement). Este
acordo impede Donald Trump de cumprir a promessa que fez aos seus eleitores de
que, além de construir o muro, faria o México pagar por ele por meio da elevação
de alíquotas comerciais entre os dois países.
O NAFTA surgiu na década de 1990
como um acordo comercial, mas, na verdade, boa parte de sua motivação estava em
impulsionar a confiança de investidores americanos e canadenses para aplicar
recursos na economia mexicana, de tal forma que a geração de novos postos de
trabalho neste país pudesse reduzir o contingente de imigrantes ilegais. Com o
livre fluxo de mercadorias, empresas poderiam produzir no México e vender ao
Canadá e aos Estados Unidos com ganhos de escala – e com isto, gerariam
empregos aos mexicanos. Existem muitas críticas à forma como o NAFTA foi gerido
– em especial, pela precarização dos direitos dos trabalhadores mexicanos que
ocasionou – mas não há dúvidas de que o Acordo foi uma medida que visava
reduzir o fluxo migratório entre os países de uma maneira muito diferente do
que a proposta por Donald Trump, que pretende não só erguer o muro, mas elevar
alíquotas e promover o retorno de empresas estadunidenses ao país, agravando o
desemprego no México. Tal medida, além um ultraje à solidariedade
internacional, poderá ser um “tiro pela culatra” no afã de Trump para reduzir o
contingente migratório: com o agravamento das condições sociais que uma crise
econômica que pode ser desencadeada no México como consequência de tais medidas,
a pressão migratória tende a aumentar e a vontade de sair em busca de
oportunidades de vida melhores além das fronteiras também, com ou sem um muro.
É de se destacar, porém, que o NAFTA
protege interesses de diversas indústrias e investidores norte-americanos,
canadenses e mexicanos, dispondo inclusive de mecanismos de solução de
controvérsias bastante eficazes. Além da pressão política e econômica que estes
atores privados são capazes de exercer, caso as medidas de Donald Trump afetem
investidores estrangeiros no NAFTA, é possível que os Estados Unidos vejam-se
alvos de disputas promovidas por empresas no ICSID (International Center of Settlement of Investment Disputes), órgão
anexo ao Banco Mundial que concede acesso à atores privados para solicitarem
reparações por violações de Direito Internacional perpetradas por governos.
É de se ressaltar que Trump já
afirmou que deseja rever o NAFTA – o que poderá fazê-lo apenas com a concordância
dos demais países signatários. Do contrário, deverá retirar-se do Acordo.
Ocorre que, como já foi dito, o NAFTA favorece interesses econômicos relevantes
de grandes empresas norte-americanas, de tal forma que tal decisão deverá
enfrentar obstáculos internos poderosos.
Ainda que o faça, porém, Trump não
estará livre para simplesmente aumentar as alíquotas dos produtos mexicanos
para “fazê-los pagar pelo muro”. Isto porque os dois países também são membros
da Organização Mundial do Comércio (OMC), organização internacional que não
permite a elevação arbitrária e discriminatória de tarifas. A OMC também dispõe
de um órgão de solução de controvérsias que permitiria ao México questionar a
medida. Ainda que os mecanismos de execução da OMC não sejam tão bem
desenvolvidos quanto os do ICSID, os Estados Unidos têm interesses econômicos
relevantes na manutenção do sistema multilateral de comércio funcionando. O seu
desrespeito às normas da organização poderia levar a um colapso do sistema como
um todo – o que certamente não seria bem visto por setores importantes à
economia doméstica estadunidense.
Em suma: do ponto de vista jurídico,
os Estados Unidos podem construir o muro – embora tal medida possa, do ponto de
vista político e econômico, prejudicar suas relações bilaterais com o México e
afetar interesses domésticos relevantes nos dois países. No entanto, ainda que
o muro seja efetivamente construído, é preciso lembrar que se trata de um ato
unilateral dos Estados Unidos, com o qual deverão arcar, sozinhos. Isto
significa construir o muro com o dinheiro dos contribuintes estadunidenses, não
existindo nenhum mecanismo lícito pelo qual os EUA poderiam exigir qualquer pagamento
do México. Ainda, se tentar forçar um pagamento mexicano por meio de qualquer
tipo de ingerência às transações comerciais entre os dois países, Trump estará
cometendo um ilícito internacional e os Estados Unidos poderão ser responsabilizados
em diferentes organismos de solução de controvérsias do Direito Internacional
Econômico.
O que estes dois exemplos (o veto à
imigrantes muçulmanos e a construção do muro) evidenciam é que Donald Trump não
pode conduzir a política externa dos Estados Unidos utilizando-se das bravatas
anti-migratórias que o elegeram. Há limites impostos pelo Direito Internacional
para suas atuações, e os Estados Unidos poderão responder por isto nacional e internacionalmente.
É claro que os meios de sanção do
Direito Internacional ainda não são tão avançados quanto os do Direito Interno,
e – especialmente quando se tratam de grandes potências econômicas e militares
como os Estados Unidos – dependem de uma vontade política forte da comunidade
internacional. Se persistir com seus decretos-sandices, Donald Trump estará
desafiando a comunidade internacional: ou as instituições internacionais
fornecem uma resposta à altura, ou assistiremos – paulatinamente – a falência
do sistema de governança global erigido Pós Segunda Guerra Mundial
principalmente para evitar estes arroubos totalitários. Esperamos que não seja
este o caso. Uma anarquia internacional nos tempos modernos pode ser algo
bastante perigoso.
**Michele Alessandra Hastreiter é Mestre em Direito e Professora de Direito Internacional Público e Privado no UNICURITIBA. As opiniões trazidas no texto pertentem à autora, e não ao Blog Internacionalize-se ou à UNICURITIBA.
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