sábado, 12 de outubro de 2013

Educação em direitos humanos como instrumento de conscientização para a realidade prisional brasileira


Por Julianna Villa Verde

Em dezembro de 2008, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República publicou um estudo sobre as percepções da população brasileira a respeito dos Direitos Humanos. Quando questionados se os direitos fundamentais dos presos e bandidos deveriam ser respeitados, 26% dos entrevistados afirmaram que não, enquanto 41% dos entrevistados afirmou que os presos deveriam ter parte dos seus direitos abolidos, pelo fato de terem transgredido a lei[1]. Outro resultado curioso da pesquisa é o nível de concordância em relação a algumas frases recorrentes no vocabulário popular. Por exemplo, apenas 36% dos entrevistados discordaram totalmente com a frase "bandido bom é bandido morto", expressão que fere um dos principais direitos humanos apontados pelo mesmo grupo de entrevistados como invioláveis, o direito à vida.
Os resultados divulgados representam a realidade alarmante das condições em que se encontra a democracia brasileira, que segundo César Benjamin, se baseou, desde o seu reestabelecimento, apenas no início de um padrão de organização e administração do poder governamental, “completamente dissociada de fins e valores, bem como das condições de existência que a população enfrenta na vida real”[2].
O fato de que a pesquisa teve resultados bastante contraditórios no que concerne a preocupação da população brasileira pela observação dos direitos humanos demonstra a fragilidade desses conceitos na construção da cidadania dos brasileiros, enfraquecida pela falta de atenção do sistema educacional na observância desses conceitos e princípios, fato esse que se mostra como apenas um dos defeitos desse sistema, negligenciado pelo governo desde os tempos do Império[3].
Efetivamente, a prática da educação em direitos humanos no Brasil foi tardiamente levada em conta como instrumento de consolidação da luta em favor do desenvolvimento social e da diminuição da desigualdade. Por causa de uma forte heterogeneidade social, econômica e cultural entre os estados brasileiros, e por uma grande concordância histórica entre as políticas de Estado e os interesses das elites na formulação do sistema educacional do país, a sociedade brasileira ainda se mostra profundamente conservadora e pouco emancipada intelectualmente.
O mesmo processo de formulação de políticas sociais subordinadas aos interesses oligárquicos fez com que o princípio de cidadania ficasse pouco claro ao entendimento dos brasileiros. Segundo Comparato, cidadão é aquele que “participa ativamente na configuração do futuro de sua sociedade, através do debate e da participação na tomada de decisões políticas”. Em outras palavras, se resume em uma responsabilidade de cada ser humano na qualidade de vida comunitária, gerando, o que Paulo Freire chama de “ética universal do ser humano”, ou seja, um conjunto de princípios inerente à condição humana, que deve ser reivindicado por todos.
A cidadania, valor que deveria ser disseminado pelo sistema educacional, também é esquecido pelos meios de comunicação populares, grandes responsáveis pela construção do pensamento de uma sociedade sobre as diferentes facetas da realidade em que vive. Em vez de colaborar para uma justa distribuição da informação de maneira a contribuir para a emancipação intelectual e pensamento crítico da população, a mídia brasileira apenas corrobora com o padrão de violência institucional propagado pelo Estado, que serve para detectar como maléfico tudo o que nos afasta de uma “sociedade desenvolvida”.
A marginalização das camadas mais baixas da sociedade, antes de alimentada pela mídia popular, encontra sua legitimação na própria ação da polícia, numa prática histórica de violência institucional que visa criar a figura do vilão pobre e bandido, culpado pelo caos e violência da vida quotidiana dos grandes centros urbanos. Como afirma Serrano, “A tortura silenciosa, que é feita contra a maioria da população há décadas, tem guarida na sociedade, que tem sido permissiva com sua prática por falta de esclarecimento cumulada com justa indignação com o aumento da violência criminosa no ambiente social”[4].
Essa violência institucional começa na abordagem policial violenta e abusiva de transeuntes, e não está presente somente nos espaços do sistema carcerário mas também nas delegacias, nas casas das vítimas e nas ruas. Essa violência é claramente dirigida às camadas mais pobres da sociedade, historicamente marginalizadas, criando o que chama Almeida de "uma guerra social do Estado contra a pobreza"[5].
De tempos em tempos, lemos ou ouvimos falar a respeito das situação caótica a qual estão sujeitos os indivíduos detidos nas instituições penais brasileiras. Um caso que recebeu relativa atenção da mídia foi o caso das prisões em municípios do Espírito Santo, interditadas pelo Superior Tribunal de Justiça em março de 2010, quando descobriu-se que mantinham seus presos em contêineres de metal, sem sistema de esgoto, em que a temperatura chegava a 45º no verão. A superlotação também era um problema comum dos presídios capixabas interditados. Em Cariacica, foi encontrado um total de 500 homens “literalmente amontoados” no mesmo ambiente. Ainda constatou-se que, em alguns presídios, as refeições dos detidos eram servidas com alimentos estragados, e as visitas semanais eram feitas através de uma grade de arame farpado[6].
O caso representa uma das centenas de imagens da precariedade do sistema prisional brasileiro, que começou a se deteriorar a partir dos anos 60[7]. Em julho de 2013, a Organização das Nações Unidas promoveu um relatório afirmando que nas prisões brasileiras, há 360 mil camas para 550 mil presos[8]. A falta de estrutura afeta todos os aspectos da rotina dos detentos no Brasil. Segundo pesquisa do Ministério Público datada de julho de 2013, no estado do Amazonas, por exemplo, a oferta de objetos de higiene como roupas de cama e toalhas de banho inexistem em 44,4% das penitenciárias, assim como de uniformes (52,7%), artigos de higiene pessoal (50%) e alimentação orientada por nutricionistas (66,6%). O padrão de escassez é semelhante no que tange os estados do Norte e Sudeste brasileiro em que número insuficiente de camas, ausência de farmácias e de unidades materno-infantis, falta de estrutura de saneamento básico, luz e areação são problemas corriqueiros.
Como se ainda não bastasse, os detentos ainda vivem sujeitos ao tratamento violento e arbitrário dos agentes penitenciários. Práticas de tortura, ameaças de morte e privação de sono são instrumentos comuns da coação policial dentro das penitenciárias, fazendo com que a violência não seja praticada apenas dentro da hierarquia estabelecida pelas facções criminosas detidas no mesmo ambiente, mas que seja um fator intrínseco da vida quotidiana da comunidade penitenciária como um todo[9].
A legislação em relação ao direito dos presos, como o Código Penal, a Lei de Execução Penal do Brasil e a Resolução n. 14 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, é bastante clara em afirmar que todos os que se encontram detidos em instituições penitenciárias devem preservar “todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade”, incluindo o direito à sua dignidade e integridade física e moral. Porém, a realidade mostra que a condição de detento é um agravante do caráter marginalizado que o Estado atribui à camada social que preenche a maior parte das celas no Brasil de hoje. “Os presos foram rejeitados pelo Estado quando este deixou de oferecer desde o princípio da sua formação suas obrigações com saúde, educação e segurança”, afirma o especialista em segurança pública, Major Fábio Rodrigues de Oliveira[10].
O papel da educação é latente na reversão desse quadro de preconceitos e noções ambíguas que a sociedade brasileira possui sobre os direitos dos excluídos. Investir na educação em direitos humanos é um caminho inevitável se quisermos nos tornar plenamente seguros da garantia pelo Estado de nossos direitos fundamentais e, para isso, devemos nos reconhecer responsáveis pelos problemas que atingem a sociedade como um todo.
Como defende Serrano, “não se consegue efetivamente universalizar direitos humanos sem uma sociedade mais justa socialmente e, por consequência, mais educada, porque, em última instância, quem defende os direitos humanos é sempre a própria sociedade”[11].

Julianna Villa Verde é graduanda do curso de Relações Internacionais do Unicuritiba. Este artigo é fruto de pesquisa desenvolvida no âmbito do Grupo de Iniciação Científica "Educação para a Paz: Ética, Cidadania e Direitos Humanos", sob orientação do Prof. Thiago Assunção.



[1] VENTURI,Gustavo. Direitos Humanos: Percepções da opinião pública. Brasilia: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 2010. Disponível em: < http://portal.mj.gov.br/sedh/biblioteca/livro_percepcoes/percepcoes.pdf>. Acesso em 01 de outubro de 2013.
[2] BENJAMIN, César. A Opção Brasileira. Rio de Janeiro: Contraponto, 1998.
[3] COMPARATO, Fábio Konder. Educação, Estado e Poder. São Paulo: Brasiliense 1987. 
[4] SERRANO, Pedro Estevam. Sobre os direitos humanos, a tortura silenciosa e o ‘homo sacer’. Última Instância, 11 de dezembro de 2012. Disponível em: <http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/colunas/2012/Sobre+os+direitos+humanos+a+tortura+silenciosa+e+o+homo+sacer.shtml>. Acesso em 27 de agosto de 2013.
[5] ALMEIDA, Angela Mendes de. O papel da opinião pública na violência institucional. 
[6] RONCETE, Kadija Luzia Pimenta. A aplicação do Direito Penal do Inimigo ao caso das prisões-contêineres capixabas e a crítica da teoria geral do Garantismo. Jus Navigandi. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/20630/a-aplicacao-do-direito-penal-do-inimigo-ao-caso-das-prisoes-conteineres-capixabas-e-a-critica-da-teoria-geral-do-garantismo>. Acesso em 27 de agosto de 2013.
[7] BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos: violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1990.
[8] KLEBER, Leandro. Peritos da ONU criticam prisões brasileiras. 29 de março de 2013. Disponível em: <http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_secao=1&id_noticia=209568>. Acesso em 27 de agosto de 2013.
[9] COELHO, Edmundo Campos. A Oficina do Diabo. Rio de Janeiro: Record, 2005.
[10] Major Fábio, Jornal Paraíba Agora, 18 de julho de 2013. Disponível em: <http://www.pbagora.com.br/conteudo.php?id=20130718103259&cat=politica&keys=-major-fabio-origem-caos-sistema-penitenciario-ausencia-poder-publico>. Acesso em 30 de julho de 2013.
[11] SERRANO, 2008.

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