Por Julianna Villa Verde
Em dezembro de 2008, a Secretaria
de Direitos Humanos da Presidência da República publicou um estudo sobre as
percepções da população brasileira a respeito dos Direitos Humanos. Quando
questionados se os direitos fundamentais dos presos e bandidos deveriam ser
respeitados, 26% dos entrevistados afirmaram que não, enquanto 41% dos
entrevistados afirmou que os presos deveriam ter parte dos seus direitos
abolidos, pelo fato de terem transgredido a lei[1]. Outro
resultado curioso da pesquisa é o nível de concordância em relação a algumas
frases recorrentes no vocabulário popular. Por exemplo, apenas 36% dos
entrevistados discordaram totalmente com a frase "bandido bom é bandido
morto", expressão que fere um dos principais direitos humanos apontados
pelo mesmo grupo de entrevistados como invioláveis, o direito à vida.
Os resultados divulgados
representam a realidade alarmante das condições em que se encontra a democracia
brasileira, que segundo César Benjamin, se baseou, desde o seu
reestabelecimento, apenas no início de um padrão de organização e administração
do poder governamental, “completamente dissociada de fins e valores, bem como das
condições de existência que a população enfrenta na vida real”[2].
O fato de que a pesquisa teve
resultados bastante contraditórios no que concerne a preocupação da população
brasileira pela observação dos direitos humanos demonstra a fragilidade desses
conceitos na construção da cidadania dos brasileiros, enfraquecida pela falta
de atenção do sistema educacional na observância desses conceitos e princípios,
fato esse que se mostra como apenas um dos defeitos desse sistema,
negligenciado pelo governo desde os tempos do Império[3].
Efetivamente, a prática da
educação em direitos humanos no Brasil foi tardiamente levada em conta como
instrumento de consolidação da luta em favor do desenvolvimento social e da
diminuição da desigualdade. Por causa de uma forte heterogeneidade social,
econômica e cultural entre os estados brasileiros, e por uma grande
concordância histórica entre as políticas de Estado e os interesses das elites
na formulação do sistema educacional do país, a sociedade brasileira ainda se
mostra profundamente conservadora e pouco emancipada intelectualmente.
O mesmo processo
de formulação de políticas sociais subordinadas aos interesses oligárquicos fez
com que o princípio de cidadania ficasse pouco claro ao entendimento dos
brasileiros. Segundo Comparato, cidadão é aquele que “participa ativamente na
configuração do futuro de sua sociedade, através do debate e da participação na
tomada de decisões políticas”. Em outras palavras, se resume em uma
responsabilidade de cada ser humano na qualidade de vida comunitária, gerando,
o que Paulo Freire chama de “ética universal do ser humano”, ou seja, um
conjunto de princípios inerente à condição humana, que deve ser reivindicado
por todos.
A cidadania, valor que deveria
ser disseminado pelo sistema educacional, também é esquecido pelos meios de
comunicação populares, grandes responsáveis pela construção do pensamento de
uma sociedade sobre as diferentes facetas da realidade em que vive. Em vez de
colaborar para uma justa distribuição da informação de maneira a contribuir
para a emancipação intelectual e pensamento crítico da população, a mídia
brasileira apenas corrobora com o padrão de violência institucional propagado
pelo Estado, que serve para detectar como maléfico tudo o que nos afasta de uma
“sociedade desenvolvida”.
A marginalização das camadas mais
baixas da sociedade, antes de alimentada pela mídia popular, encontra sua
legitimação na própria ação da polícia, numa prática histórica de violência
institucional que visa criar a figura do vilão pobre e bandido, culpado pelo
caos e violência da vida quotidiana dos grandes centros urbanos. Como
afirma Serrano, “A tortura silenciosa, que é feita contra a maioria da
população há décadas, tem guarida na sociedade, que tem sido permissiva com sua
prática por falta de esclarecimento cumulada com justa indignação com o aumento
da violência criminosa no ambiente social”[4].
Essa
violência institucional começa na abordagem policial violenta e abusiva de
transeuntes, e não está presente somente nos espaços do sistema carcerário mas
também nas delegacias, nas casas das vítimas e nas ruas. Essa violência é
claramente dirigida às camadas mais pobres da sociedade, historicamente
marginalizadas, criando o que chama Almeida de "uma guerra social do
Estado contra a pobreza"[5].
De tempos em tempos, lemos ou
ouvimos falar a respeito das situação caótica a qual estão sujeitos os indivíduos
detidos nas instituições penais brasileiras. Um caso que recebeu relativa
atenção da mídia foi o caso das prisões em municípios do Espírito Santo,
interditadas pelo Superior Tribunal de Justiça em março de 2010, quando
descobriu-se que mantinham seus presos em contêineres de metal, sem sistema de
esgoto, em que a temperatura chegava a 45º no verão. A superlotação também era
um problema comum dos presídios capixabas interditados. Em Cariacica, foi
encontrado um total de 500 homens “literalmente amontoados” no mesmo ambiente.
Ainda constatou-se que, em alguns presídios, as refeições dos detidos eram
servidas com alimentos estragados, e as visitas semanais eram feitas através de
uma grade de arame farpado[6].
O caso representa uma das
centenas de imagens da precariedade do sistema prisional brasileiro, que
começou a se deteriorar a partir dos anos 60[7]. Em
julho de 2013, a Organização das Nações Unidas promoveu um relatório afirmando
que nas prisões brasileiras, há 360 mil camas para 550 mil presos[8].
A falta de estrutura afeta todos os aspectos da rotina dos detentos no Brasil.
Segundo pesquisa do Ministério Público datada de julho de 2013, no estado do
Amazonas, por exemplo, a oferta de objetos de higiene como roupas de cama e
toalhas de banho inexistem em 44,4% das penitenciárias, assim como de uniformes
(52,7%), artigos de higiene pessoal (50%) e alimentação orientada por
nutricionistas (66,6%). O padrão de escassez é semelhante no que tange os
estados do Norte e Sudeste brasileiro em que número insuficiente de camas,
ausência de farmácias e de unidades materno-infantis, falta de estrutura de saneamento
básico, luz e areação são problemas corriqueiros.
Como se ainda não
bastasse, os detentos ainda vivem sujeitos ao tratamento violento e arbitrário
dos agentes penitenciários. Práticas de tortura, ameaças de morte e privação de
sono são instrumentos comuns da coação policial dentro das penitenciárias,
fazendo com que a violência não seja praticada apenas dentro da hierarquia
estabelecida pelas facções criminosas detidas no mesmo ambiente, mas que seja
um fator intrínseco da vida quotidiana da comunidade penitenciária como um todo[9].
A legislação em relação ao
direito dos presos, como o Código Penal, a Lei de Execução Penal
do Brasil e a Resolução n. 14 do Conselho Nacional de Política Criminal e
Penitenciária, é bastante clara em afirmar que todos
os que se encontram detidos em instituições penitenciárias devem preservar “todos os direitos não
atingidos pela perda da liberdade”, incluindo o direito à sua dignidade e integridade
física e moral. Porém, a realidade mostra que a condição de detento é um
agravante do caráter marginalizado que o Estado atribui à camada social que
preenche a maior parte das celas no Brasil de hoje. “Os
presos foram rejeitados pelo Estado quando este deixou de oferecer desde o
princípio da sua formação suas obrigações com saúde, educação e segurança”,
afirma o especialista em segurança pública, Major Fábio Rodrigues de Oliveira[10].
O papel da educação é latente na
reversão desse quadro de preconceitos e noções ambíguas que a sociedade
brasileira possui sobre os direitos dos excluídos. Investir na educação em
direitos humanos é um caminho inevitável se quisermos nos tornar plenamente
seguros da garantia pelo Estado de nossos direitos fundamentais e, para isso,
devemos nos reconhecer responsáveis pelos problemas que atingem a sociedade
como um todo.
Como defende Serrano, “não se
consegue efetivamente universalizar direitos humanos sem uma sociedade mais
justa socialmente e, por consequência, mais educada, porque, em última
instância, quem defende os direitos humanos é sempre a própria sociedade”[11].
Julianna Villa Verde é graduanda do curso de Relações Internacionais do Unicuritiba. Este artigo é fruto de pesquisa desenvolvida no âmbito do Grupo de Iniciação Científica "Educação para a Paz: Ética, Cidadania e Direitos Humanos", sob orientação do Prof. Thiago Assunção.
[1]
VENTURI,Gustavo. Direitos Humanos: Percepções da opinião pública. Brasilia:
Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 2010. Disponível
em: < http://portal.mj.gov.br/sedh/biblioteca/livro_percepcoes/percepcoes.pdf>.
Acesso em 01 de outubro de 2013.
[2] BENJAMIN, César. A Opção Brasileira.
Rio de Janeiro: Contraponto, 1998.
[3] COMPARATO, Fábio Konder. Educação, Estado e Poder. São Paulo:
Brasiliense 1987.
[4] SERRANO, Pedro Estevam. Sobre os
direitos humanos, a tortura silenciosa e o ‘homo sacer’. Última Instância, 11
de dezembro de 2012. Disponível em: <http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/colunas/2012/Sobre+os+direitos+humanos+a+tortura+silenciosa+e+o+homo+sacer.shtml>. Acesso em 27 de agosto de 2013.
[6] RONCETE, Kadija Luzia Pimenta. A aplicação do Direito Penal do Inimigo ao
caso das prisões-contêineres capixabas e a crítica da teoria geral do
Garantismo. Jus Navigandi. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/20630/a-aplicacao-do-direito-penal-do-inimigo-ao-caso-das-prisoes-conteineres-capixabas-e-a-critica-da-teoria-geral-do-garantismo>. Acesso em 27 de agosto de 2013.
[7]
BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos: violência, justiça, segurança pública e
direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1990.
[8] KLEBER, Leandro. Peritos da ONU
criticam prisões brasileiras. 29 de março de 2013. Disponível em: <http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_secao=1&id_noticia=209568>. Acesso em 27 de agosto de 2013.
[10] Major Fábio, Jornal Paraíba Agora, 18
de julho de 2013. Disponível em: <http://www.pbagora.com.br/conteudo.php?id=20130718103259&cat=politica&keys=-major-fabio-origem-caos-sistema-penitenciario-ausencia-poder-publico>. Acesso em 30 de julho de 2013.
[11] SERRANO, 2008.
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