O "Discurso do Estado da União" de Donald J. Trump, proferido ontem, dia 30 de janeiro, fala mais sobre o Governo estadunidense que sobre seu Presidente, e deixa tudo muito claro: trata-se de uma plataforma política pautada num misto de políticas nacionalistas e neoliberais.
Por Gustavo Glodes Blum *
Nos últimos dias, alguns círculos denunciavam a falta de relevância de ouvir o Discurso do Estado da União de Donald J. Trump, proferido ontem (30) em uma reunião conjunta do Congresso estadunidense. Segundo essa linha de pensamento, não é necessário ouvir um presidente que tanto fala no Twitter aquilo que bem pensa num discurso que, nas últimas décadas, tem servido aos Chefes de Estado dos EUA para "falarem à nação". Através de seus tuítes, Trump já indicaria tudo o que pensa, sendo desnecessário "saber o quê o Presidente pensa" sobre seu país, sua situação doméstica e mundial, e suas propostas de ação.
O Disrcuso do Estado da União
Ainda assim, o discurso de ontem foi um momento muito importante para tentar dar sentido a essa que tem sido uma das mais polêmicas da história dos EUA. Isso em razão daquilo que o Discurso do Estado da União representa para o país: iniciado pelo governo de George Washington, primeiro presidente estadunidense, foi feito de forma escrita entre 1801 e 1913. Naquele ano, Woodrow Wilson (um ilustre conhecido da área das Relações Internacionais) iniciou a tradição de ler pessoalmente o discurso, numa prática que têm continuado desde então.
O Discurso, porém, é muito mais que apenas uma tradição. O pronunciamento do presidente estadunidense junto ao Congresso, reunindo a Câmara dos Deputados e o Senado daquele país, tem dois principais objetivos. Ao mesmo tempo em que mira no público, que atualmente assiste não apenas pela TV, mas também pela internet ao redor do mundo, foca na reunião destes dois relevantíssimos órgãos de funcionamento do governo norteamericano.
Enquanto busca apresentar a sua versão a respeito de fatos que ocorreram durante o período anterior, o Chefe de Estado tenta convencer a população e o Congresso de sua visão a respeito do país e do mundo. Assim, busca construir uma lógica que justifique as propostas que quer colocar em jogo e que pretende fazer valer no período legislativo que se inicia. Embora possa ser observado o avanço de "ordens executivas", emitidas diretamente pelo Poder Executivo em uma situação similar àquela das Medidas Provisórias Brasileiras, o Presidente dos Estados Unidos ainda depende fortemente do Congresso para poder emitir legislação que coloque em funcionamento suas propostas governamentais.
Assim, o Estado da União representa não apenas um discurso oficial do Presidente, mas a apresentação, de certa forma, daquilo que virá num futuro próximo, e um anúncio das batalhas legislativas que se colocam na esfera política dos Estados Unidos da América para o ano.
Nenhuma novidade no front, mas fazendo toda a diferença
O discurso do Estado da União de Donald J. Trump não apresentou, realmente, nenhuma diferença com relação às já conhecidas opiniões do "líder do mundo livre" que atualmente senta na cadeira principal do Salão Oval. Ainda assim, o discurso fez toda a diferença com relação àquilo com que estamos nos acostumando a observar na política americana.
No último ano, fomos literalmente bombardeados com polêmica após polêmica do governo de Donald Trump - que só não são superados pelas polêmicas de sua contraparte tupiniquim, Michel Miguel Temer. Semana após semana, a "presidência mais longa da história dos Estados Unidos", como definiu o comediante/apresentador/comentador político Stephen Colbert, tem se envolvido nos mais diversos escândalos de várias naturezas.
Ainda assim, me parece que ainda que não seja uma estratégia consistente por parte da Casa Branca, este tipo de atitude política continua sendo interessante para diversos setores da política americana. Assim como no "capitalismo de desastre" do governo de George W. Bush (descrito por Naomi Klein em seu "A doutrina do choque"), o "governo da polêmica" de Donald Trump serve muito bem a uma parte muito relevante do Partido Republicano estadunidense.
Enquanto todas as atenções se voltam aos tuítes de Trump ou suas declarações que mobilizam toda a mídia internacional, os Republicanos - que controlam atualmente a Câmara dos Deputados, o Senado e a Suprema Corte americana - virtualmente governam os Estados Unidos de maneira unilateral. Apenas recentemente os Democratas, partido opositor, conseguiram algum tipo de vantagem política, ao bloquear o acesso a recursos do governo federal, suspendendo seu funcionamento. Porém, essa vitória ainda parece pequena diante de um ano de "tratoragem" de legislação anti-Obama, liderada pelo Presidente da Câmara, Paul Ryan.
Essa é a grande diferença do discurso de ontem. Ao invés de declarações esparsas e lutas virtuais com dissidentes, o discurso de ontem se apresentou enquanto uma plataforma de governo consistente. Enquanto em alguns aspectos (como na Política Externa) repetiu-se o que já se sabia, outras questões apresentadas por Trump indicam a forma como seu governo encarará, propositiva ou executivamente, questões relevantes como a economia, a política, a questão da imigração e a área policial-militar do seu país.
Nacionalista e neoliberal: Trump adepto da Reagonomics?
O discurso de ontem foi um típico showdown republicano, no qual o Presidente, enquanto legítimo representante de seu partido, apresentou um tom altamente nacionalista e neoliberal.
Embora apenas ao fim do discurso tenha sido possível os gritos típicos dos apoiadores de Trump ("USA! USA!", vindos sobretudo de seus filhos, nas galerias do Salão), o discurso como um todo adotou um tom nacionalista muito representativo. Este discurso, inclusive, se pautou em alguns "direitos de resposta" que o Presidente considerou que tinha em relação a questões polêmicas relevantes na vida política americana dos últimos anos.
Estas respostas envolveram, por exemplo, um ataque direto ao jogador de futebol americano Colin Kaepernick. Ainda no início do discurso, após citar as inúmeras tragédias naturais ou humanas do último ano nos EUA (envolvendo furacões e tiroteios em massa), Trump afirmou que "americanos de verdade", que ele pretende representar, "levantam-se orgulhosos para ouvir seu hino nacional".
Ele busca, assim, atacar diretamente Kaepernick, que a partir de 2016 começou a utilizar o momento do hino nacional para um protesto silencioso contra a desigualdade racial do país. É sintomático, também, que o único negro convidado para o discurso do Presidente enquanto representante da comunidade para o discurso seja um empregado de uma família branca, num dos vários jogos simbólicos durante o discurso.
Esses jogos foram, de certa forma, uma tentativa de demonstração de força de Trump com relação à oposição Democrata no Senado e na Câmara. Ao adotar esse discurso nacionalista, e aliando ele a um discurso muito próximo daquele do Partido Republicano, Trump busca capitalizar tanto no momento do discurso como no futuro. Ele poderá, por exemplo, acusar a falta de apoio simbólico dos Democratas ao não se levantarem em aplauso quando ditava algumas questões relevantes para o governo. Ao mesmo tempo, ao aliar a ideia de nacionalismo com a adoção de uma política mais dura com relação ao crime, às drogas e à imigração, Trump também poderá indicar que os Democratas "não são americanos verdadeiros", "traidores da pátria", como já tem acusado a mídia americana.
Tratou-se, também, de um discurso altamente alinhado com alguns pressupostos conservadores da direita americana, ainda que Democrata. Ao lembrar que o lema dos EUA era "Em Deus acreditamos" ("In God we trust"), indicou o seu alinhamento a setores religiosos muito fortalecidos nos últimos anos de crise econômica no país.
Ao apontar que o aspecto relevante dos EUA é a Cristandade (tanto ao indicar que essa crença é mais relevante que aquela no governo, ou ao apresentar um desertor nortecoreano que "após conhecer cristãos resolveu que queria ser realmente livre"), assim como ao relembrar seu reconhecimento de Jerusalém como capital do Estado de Israel, pressão sobretudo de setores evangélicos norteamericanos, Trump indicou que a relação entre cristandade e nacionalidade dos EUA é uma condição importante para considerar-se um "verdadeiro americano". Ataca assim, então, comunidades imigrantes não-cristãs (sobretudo muçulmanas), ao mesmo tempo em que protegeu a "liberdade religiosa" no sentido da permissão às organizações religiosas de agirem como acharem melhor, e não da aceitação de diversas religiões no mesmo espaço público.
Por outro lado, é visível a forma como o Trump se aproxima cada vez mais de uma "linha dura" do Partido Republicano, caracterizada sobretudo por sua visão neoliberal do mundo. Assim, o atual presidente lembra algumas das ações de dois presidentes republicanos recentes, Ronald Reagan e George W. Bush, que aplicaram em várias situações ações de exceção ou processos de desregulamentação do mercado "pela segurança do povo americano".
Trump indicou, por exemplo, que "num país em que cada pessoa é um trabalhador", a educação deveria ser direcionada á formação profissional, técnica, e as reformas estruturais (como aquelas da prisão e da imigração) devem ter como foco criar "pessoas que aproveitem as oportunidades" e "demonstrem bom caráter", estando "qualificadas" para estarem nos EUA (no caso dos imigrantes) ou serem "reintroduzidas na sociedade" (como no caso dos detentos).
Numa nova "Guerra às Drogas", declarada dessa vez contra os chamados "opióides" - substâncias que agem no sistema nervoso das pessoas e que agem de maneira parecida ao ópio, como relaxantes musculares e ansiolíticos. Essa guerra, porém, ligou também ao "sistema imigratório quebrado" e que "tem várias lacunas jurídicas" e permite "a entrada de gangues e traficantes" por meio das fronteiras. Trump conseguiu, assim, demonstrar sua visão sobre a imigração: é visível que o Presidente - e seu governo - enxergam na imigração a fonte da criminalidade em "comunidades vulneráveis" de imigrantes. Trouxe, inclusive, pais que perderam suas filhas para gangues formadas por imigrantes - para justificar, também o seu famoso muro que diz que construirá na fronteira com o México.
Instrumentalização do governo para alcance de objetivos: Política Externa e as instituições americanas
Também foi relevante a apresentação de alguns aspectos da Política Externa de Donald Trump em sua presidência. Assim como em outros aspectos, não houve muita novidade, embora a colocação dessas questões em conjunto tenha conseguido dar uma ideia de "plataforma" às suas práticas internacionais. Além de garantir que não fechará a base naval de Guantánamo em Cuba, usada para a detenção extrajudicial de "terroristas", Trump anunciou que a caça a terroristas se organizará também contra regimes que apoiam o terrorismo, listando os já listados "inimigos da liberdade" segundo sucessivos governos americanos: Irã, Cuba, Venezuela e a Coreia do Norte.
Porém, talvez um dos aspectos "novos", por assim se dizer, do discurso de Trump foi o seu pedido ao Congresso que reveja os programas do governo americano de ajuda internacional. Segundo o presidente, esse tipo de ajuda "não pode ir para inimigos dos EUA", tendo que necessariamente "atender aos interesses americanas e ir apenas para os amigos da América".
Alinhando-se à já citada "linha dura" do Partido Republicano, provavelmente veremos, no futuro próximo, outras ações como aquelas que já ocorreram. A retirada do país da Unesco e a pressão para que países se alinhem à política dos EUA na Organização das Nações Unidas (ONU) simplesmente pelo fato de que eles são os maiores financiadores da organização devem ser seguidas por outras ações da mesma natureza.
Essa instrumentalização, porém, parece não estar relacionada apenas com a política externa. Em um determinado momento, o presidente indicou que um de seus objetivos era "tomar conta do judiciário", também, indicando o maior número de Ministro da Suprema Corte e, mais estrategicamente, juízes de segunda instância ("circuit judges") alinhados com as propostas do governo Republicano. Instrumentalizar, portanto, todo o governo, montando um plano de "governo de longo prazo".
E é a consolidação política, judiciária e econômica desse governo de longo prazo que podemos esperar das próximas ações do governo Trump, instrumental em incluir essa lógica dentro do governo estadunidense e abrir as portas para um possível novo governo republicano com Trump ou, possivelmente, Pence à frente nas eleições de 2020.
* Gustavo Glodes Blum é Professor de Geografia Política e Política Internacional Contemporânea do curso de Relações Internacionais do UNICURITIBA, e líder do grupo de pesquisa "Redes e Poder no Sistema Internacional".
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