Abdias Nascimento, Okê Oxossi (Buffalo, 1970). Acrílico sobre tela, 61 x 91 cm. |
Por Luiza Montanheri1 e Ian Tarik dos Santos2
Sem dúvida, as relações internacionais foram edificadas nas costas de
escravizados — possuindo como fio condutor os povos africanos e indígenas —,
produto das grandes navegações entre os séculos XV e XVI, originando o
capitalismo histórico tal qual o conhecemos atualmente (informação verbal)3. A partir deste fato, as hegemonias patriarcais que se edificaram sobre negros e indígenas
são as mesmas que representam os brancos, isto é, não fosse o colonialismo
imperial fomentar uma superioridade racial da branquidade, o sistema vigente no
qual existimos não teria se moldado da forma como o conhecemos — foi puramente
pelo viés racial como premissa, o ódio como instrumento e a violência como
ferramenta que o bem “mundo modernizado e modernizante” se deu. Nas palavras
de Quijano (2000, p. 192)4:
"A ideia de raça é, com toda certeza, o mais eficaz instrumento de dominação social
inventado nos últimos 500 anos. Produzida no mero começo da formação da
América e do capitalismo, no trânsito do século XV ao XVI, nos séculos seguintes
foi imposta sobre toda a população do planeta como parte da dominação colonial de
Europa. [...] Desse modo, raça, uma maneira e um resultado da dominação colonial
moderna, permeou todos os âmbitos do poder mundial capitalista. [...] a
colonialidade tornou-se a pedra fundamental do padrão de poder mundial capitalista,
colonial/moderno e eurocentrado. Tal colonialidade do poder revelou-se mais
profunda e duradoura que o próprio colonialismo no qual se engendrou e que ajudou a ser mundialmente imposto."
À vista disso, uma grande parcela de negros ainda se vê pela ótica europeizada de mundo não por esta não ser a realidade em que vivemos — instalada por e para
brancos —, mas porque não foram permitidos ou mesmo fora retirada/negada a
possibilidade de se enxergarem com os próprios olhos. Ou seja, “[...] o negro
pertence ao mundo que não lhe permite a consciência de si verdadeira, mas apenas
lhe permite ver-se a si mesmo através da revelação do outro mundo. Esse fenômeno
é denominado [...] de dupla consciência.” (DU BOIS, 2011 apud ALENCAR, 2019, p.
183). Assim, a antítese ao poder hegemônico, representado pela Europa e
igualmente pelos Estados Unidos da América (EUA), se encontra na possibilidade de
assistir pelo lado de cá como a decolonialidade dos seres e saberes ressignifica a
forma de se encarar o conceito de poder envolto por violência (ÔRÍ, 1989). E para
além, precisamos ponderar que a colonização dos diversos povos de África e América está
paralelamente ligada à cultura — já que a identidade de um povo se apresenta
mediante aos costumes, tradições, língua, religiosidade, entre outros aspectos —
que, igualmente permeada pela coerção física e encoberta pelos conceitos de
assimilação cultural5 e aculturação6 — este último podendo ser encarado como um
processo inexistente —, transpassaram a imagem desse outro sob a visão de quem
os delimitam como condenados a desaparecerem (informação verbal)7 não somente expressos no racismo contra negros, mas de natureza semelhante para com
indígenas durante o contato e contemporaneamente.
"Na história do Brasil, os povos indígenas foram os primeiros a serem escravizados –
a força de trabalho empregada na montagem dos engenhos de açúcar no Brasil, por
exemplo, foi predominantemente nativa – antes da escravização dos africanos
capturados e deportados de seu continente original que começaram a ser traficados em meados do século XVI (Cf. MARQUESE, 2005). Se os Ameríndios foram os
primeiros a serem escravizados, os trabalhos que mostram as consequências (e a
continuação) dessa escravidão ainda recebem pouca atenção; mas, como diz
Kabengele Munanga, muitas das dificuldades que os indígenas encontram hoje estão
diretamente relacionadas com a escravidão do passado. Isto é, a escravidão não ficou
no passado: como nunca foi coibida, foi negada, e até hoje a escravidão indígena nas fronteiras agrícolas é uma prática constante [...]." (MILANEZ et al., 2019, p. 2166).
Da mesma forma, concomitante à raça e a cultura, o gênero salienta um
debate tocante aos indivíduos beneficiários deste poder, já que há a blindagem de
imagens dicotômicas que, de um lado, expressa a virilidade e dominância do homem
— exemplificados em Doty (1996) com o “American exceptionalism” e a “American
manhood”, dois mecanismos da potestade imperial revestidos de ação humanitária,
numa alusão à masculinidade do homem —, ao passo que, do outro, simboliza a
mulher como frágil e submissa. Porém, acima de qualquer impacto que causam as
relações de gênero e a discriminação pela orientação sexual, somos constantemente moldados pelas relações raciais, bem como expresso em Gonzalez (2011, p. 13):
"[...] para a discussão da discriminação pela orientação sexual, não aconteceu o
mesmo com outros tipos de discriminação, tão grave como a sofrida pela mulher: a de caráter racial. [...] Exatamente porque tanto o racismo como o feminismo
partem das diferenças biológicas para estabelecerem-se como ideologias de
dominação. Cabe, então, a pergunta: como se explica este “esquecimento” por parte do feminismo? A resposta, na nossa opinião, está no que alguns cientistas sociais
caracterizam como racismo por omissão e cujas raízes, dizemos nós, se
encontram em uma visão de mundo eurocêntrica e neo-colonialista da
realidade."
Em suma, não é possível fomentar um combate senão por iniciá-lo pelo óbvio que
constitui o elemento básico da luta comum de homens e mulheres — correlacionado
a “[...] um quadro de tripla consciência, no qual as dimensões da raça e gênero se
interseccionam dentro da trajetória de indivíduos que interagem com o mundo ao seu
redor.” (ALENCAR, 2019, p. 183) —, viabilizando que “a conscientização da
opressão ocorre, antes de qualquer coisa, pelo racial.” (GONZALEZ, 2011, p. 18).
Uma vez dado os aspectos impostos pelo eurocentrismo, apoiado no racismo
como arma ideológica — posto que inexistia a possibilidade de extermínio dos povos
marginalizados —, molda-se a ciência racialista8 na Europa e, no Brasil, “a ideologia do branqueamento” (GONZALEZ, 2011, p. 15). Neste caso, o Primeiro Congresso
Universal das Raças realizado na cidade de Londres, em 1911, após a Conferência
de Haia, de 1907, tinha em um primeiro momento a premissa “[...] de um esforço
internacional em prol da pacificação das diversas nações do mundo” (SOUZA;
SANTOS, 2012, p. 747), todavia, “na prática, o que estava em questão eram os
conflitos raciais em diversas partes do mundo e a própria sobrevivência do sistema
colonialista” (ibid., p. 747). Em arremate, o Direito entra como um instrumento
articulador, elaborado a fim de se perpetuar como mecanismo de comando em um
formato colonial jurídico, onde se reflete simbolicamente no quadro de Modesto
Brocos y Gómes (1895) — A Redenção de Cam — e institucionalmente dentro do
Estado brasileiro, porquanto
"O sistema jurídico reproduzido no Brasil não só estava intimamente ligado ao
empreendimento colonial e às categorias de pensamento que decorriam dele, como
desempenhou um papel central na sua consolidação. [...] o sujeito de direito é a
afirmação de uma pretendida uniformidade, forjada pela exclusão material, subjetiva e epistêmica dos povos subalternizados. A régua de proteção que determina o padrão
a partir da qual bens como a liberdade passam a ser pensados deriva da afirmação da
supremacia branca, masculina, cisheteronormativa, classista, cristã e inacessível a
todos os corpos, bem como do resultado dos processos de assimilação e aculturação violentos empreendidos pelo colonialismo. (PIRES, 2019, p. 71)."
Outrossim, interligado aos fatos, MacMillan (2004) pontua que a Liga das
Nações, criada em 1919, em seu Art. 22, possuía o logro de “missão sagrada de
civilização” — percebe-se ali, o constante desdenhamento de povos negros, frisando
constantemente a suposta incapacidade destes em se autogovernarem, numa
veemente afirmação de que não possuíam qualquer tipo de autodeterminação
política no sentido europeu —, ou seja, as potências hegemônicas do Norte,
baseadas no racismo e expansionismo da Europa e EUA, no início do século XX,
fizeram com que a Liga oferecesse todas as condições necessárias para que seus
membros prevalecessem em detrimento de povos africanos. Logo, a ideia de
proibição sobre a venda de armamentos para tais foi um dos quesitos essenciais
para a garantia da superioridade branca, além da Conferência de Berlim
tal-qualmente ter sido um marco na história do Velho Continente, dado que a partilha
de África era o elemento central para a instalação europeia e palco primordial para a
marginalização, expropriação, exploração, epistemicídio, saqueamento e roubo de
recursos naturais e históricos, entre outros processos mais que validaram o controle
civilizatório.
Portanto, partimos então para uma visão elaborada que surge a partir da ótica da
decolonialidade e descolonialidade não só do poder, mas dos seres e saberes que
emergem em diversas partes do mundo, fazendo da América Latina o seu epicentro.
Em primeiro lugar, devemos rememorar que no Brasil houve inúmeras tentativas e
êxito em apagar a história dos povos africanos — exposto anteriormente com o
Direito sendo o elemento jurídico essencial para a fundamentação das ideologias de
branqueamento pautadas no punitivismo cristão juntamente com a falta de memória
acerca da nossa própria história — tal como ainda possuímos em relação à
escravidão e à Ditadura Militar de 1964 (informação verbal)9. Desse modo, o Teatro
Experimental do Negro (TEN) que atuou entre 1946-1961, desenvolvido por Abdias
do Nascimento, surgido pela necessidade de retratar e trazer o povo preto como
protagonistas sem o estereótipo de papéis subalternos racistas, questionou a
hierarquia de poder branco através da arte, sempre vinculados a uma inclinação
política para além dos palcos como ação decolonial que percebia o negro na
qualidade de sujeito pensante e potente, não apenas com a finalidade de evidenciar discussões de cunho racial para o domínio da branquidade, mas solidificar a
estrutura do legado cultural e humano do africano no Brasil (NASCIMENTO, 1978)
como forma de resgate sócio-historico para a construção de uma memória viva, indo
contra qualquer sintoma retroutopico10. Bem como, o Haitianismo é utilizado como ferramenta de contra-ataque à burguesia brasileira, em que é visto
como confronto para a branquitude reforçante de políticas públicas que afetam tanto
a imigração de pessoas pretas, do contexto externo, quanto no âmbito doméstico —
onde criaram uma nova ótica ao universalizar a padronização da imagem do
imigrante ao fazer voltar a força policial apenas para um grupo social determinado. Desse modo, entende-se que
"[O] Brasil tem uma dívida histórica com todos os povos da diáspora
africana: primeiro pela migração forçada por meio do tráfico
atlântico; segundo pela submissão ao regime escravista, e depois pelos entraves à imigração voluntária após o fim do infame
comércio de pessoas. (SILVA, 2021, p. 19)."
Logo, devemos analisar que toda essa conjuntura pesa, diretamente, tanto
dentro das relações internacionais enquanto disciplina como em todo o mundo que
se externaliza. Percebe-se aqui que com as ideologias eurocentradas e a
implementação de atos que perpetuam a associação de negros à locais de
subalternização — sendo o Estado o principal fundamentador de estrategias de
braqueamento por via de políticas públicas — para um suposto melhoramento na
imagem brasileira dentro das relações internacionais atrelada à Lei Áurea, de 1988,
tambem reconhecia povos imigrantes de África como non grata11, decorrente diretamente da cultura — por possuir um viés ideológico que, consequentemente,
abre portas para o genocídio negro, atrelou-se a falta de comprometimento para com
estes após a abolição da escravatura — com a articulação de políticas nacionais de
imigração para comunidades brancas do continente europeu, pois “[...] o governo
brasileiro passou a engajar-se no agenciamento, mediante propagandas e
promessas de terra, e no fomento à imigração de trabalhadores europeus para as
zonas que pretensamente careciam de mão-de-obra.” (MORAES, 2014 apud SILVA,
2021, p. 12). Ainda, as politicas migratórias historicamente conseguiram/conseguem “[mostrar] como o Direito e as Instituições brasileiras estiveram a serviço da
racialização do sujeito e do genocídio do povo negro. Expressa, assim, forte
colonialidade do poder.” (SILVA, 2021, p. 24). Por isso, as produções pós-coloniais
que abordam as decolonialidades, descolonialidades e, principalmente, propostas de
letramento racial não somente pelo meio acadêmico de produção intelectual, pode-se
interpretar também como método científico de produção epistemológica — destinada
ao livre acesso do negro acerca da construção de um olhar sobre si enquanto sujeito,
e sobre o coletivo enquanto comunidade — na busca por igualdade civil, social e
política. Em paralelo, a religiosidade de matriz africana e a incorporação da utilização
simbólica dos orixás dentro do âmbito político tal qual se utilizava Abdias do
Nascimento em seus discursos sobre a libertação do povo negro brasileiro, contrasta
com a religiosidade euro-cristã que se faz presente desde os primórdios da
edificação das Relações Internacionais. Afinal, a incorporação ancestral das
entidades presentes nas religiões afro-brasileiras se apresenta numa demonstração
da existência do "eu" que se aloca no presente, identificando o mais alto nível de
desalienação daqueles que ainda sofrem com o extermínio de sua existência.
Notas de rodapé
1 Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) (montanheriluiza@gmail.com)
2 Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) (iantarik18@gmail.com)
3Informação verbal fornecida pela professora Karine de Souza Silva à disciplina de Organizações
Internacionais, ofertada ao curso de Relações Internacionais, UFSC, em fev. 2021.
4 “La idea de raza es, con toda seguridad, el más eficaz instrumento de dominación social inventado
en los últimos 500 años. Producida en el mero comienzo de la formación de América y del capitalismo, en el tránsito del siglo XV al XVI, en las centurias siguientes fue impuesta sobre toda la
población del planeta como parte de la dominación colonial de Europa [...] De ese modo, raza, una
manera y un resultado de la dominación colonial moderna, pervadió todos los ámbitos del poder
mundial capitalista. En otros términos, la colonialidad se constituyó en la piedra fundacional del
patrón de poder mundial capitalista, colonial/moderno y eurocentrado. Tal colonialidad del poder ha
probado ser más profunda y duradera que el colonialismo en cuyo seno fue engendrado y al que
ayudó a ser mundialmente impuesto.”
5 Processo de absorção entre grupos ou indivíduos em que ambos, em constante contato,
assimilam/adquirem características culturais uns dos outros.
6 Processo pelo qual há o apagamento de uma cultura em detrimento de outra, na qual uma delas se
considera “mais dominante; forte; superior”.
7Informação verbal fornecida pela professora Edviges Marta Ioris à disciplina de Relações
Interétnicas, ofertada ao curso de Ciências Sociais, UFSC, em jul. 2021.
8 Concepção de que a espécie humana se divide naturalmente em raças que correspondem a
categorias biológicas distintas.
9Informação verbal fornecida pela professora Clarissa Franzoi Dri à disciplina de Política Externa
Brasileira, ofertada ao curso de Relações Internacionais, UFSC, em dez. 2021.
10 Saudosismo com o passado; ode a um passado que não existe.
11 "[...] expressão aplicada a um diplomata ou representante estrangeiro que não é aceito pelo
governo do Estado acreditador e que, por conta disso, não recebe o agrément (consentimento)."
(BENZAQUEN, c2022).
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