Participantes do movimento pela independência
participam de uma manifestação em frente à BBC Scotland. A empresa pública de
comunicação foi acusada de parcialidade na discussão, apresentando apenas as
más consequências da separação
Por Gustavo Glodes Blum*
Na próxima quinta-feira, eleitores de toda a Escócia votarão
naquilo que já se desenha como um grande marco na estrutura e na constituição
do (até agora) Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte. Mesmo que o voto
não seja obrigatório no Reino Unido, diversas análises preveem uma participação
massiva da população daquele que pode ser o mais novo país independente no
mundo. O jornal britânico The Guardian
faz um acompanhamento muito interessante a respeito do assunto,1 e
as atenções do mundo todo estão voltadas para o norte da Ilha durante essa
semana. A grande questão é que o referendo de independência da Escócia tem
menos a ver com definição de territorialidades e fronteiras que com
legitimidade de governo e autodeterminação, levantando questões fundamentais do
atual sistema internacional e sobre a política internacional pós-moderna.
A discussão a respeito da situação política da Escócia é
muito representativa, também devido à sua “temporalidade”. Desde que o rei
Jaime VI da Escócia se tornou, também, Jaime I da Inglaterra em 1603,
iniciou-se um processo que, durante os séculos XVII e XX, levou à unificação
estrutural e constituição do próprio Estado britânico: ao assumir a coroa dos
dois países, Jaime VI e I unificou a linha sucessória política em uma mesma
pessoa, recordando-nos do caráter mais absolutista dos Stuart em sua regência
(dentro do possível no contexto britânico). Porém, ainda que reunidos sob um
mesmo rei, os dois países continuaram convivendo com estruturas políticas
separadas, parlamentos próprios e sistemas jurídico-legais distintos.
Apenas em 1702, um século após, os dois países seriam
reunidos naquele que seria, então, o Reino Unido da Grã-Bretanha, através de
uma lei sob a regência da rainha Ana da Grã-Bretanha. Este novo Reino reuniria,
sob o comando do parlamento de Westminster, em Londres, os dois países sob uma
mesma estrutura estatal. E 1800, haveria uma nova união de estados quando o
Reino da Irlanda, até então uma entidade política separada, foi anexado ao
Reino da Grã-Bretanha. Por fim, em 1922,
com a Independência do Éire, a quem chamamos de Irlanda, foram configuradas as
atuais fronteiras políticas do Reino Unido. Mesmo assim, este não foi o fim das
movimentações políticas internas ao Reino Unido.
Os movimentos separatistas, tanto da Irlanda do Norte (Ulster), como da Escócia foram muito
fortes ao longo de todo o século XX. As outras duas nações que compõem o Estado
britânico, Gales e Inglaterra, já desde há muito estavam “harmonizados”, e o
movimento nacionalista galês se baseou, sobretudo, na recuperação de uma
identidade regional, mais que em emancipação política ou secessão, como
defendiam escoceses e norte-irlandeses. No Ulster e na Escócia, os conflitos
com Londres foram muito mais violentos, simbólica e fisicamente, e diziam
respeito à capacidade de autodeterminação destas nações dentro do Reino Unido,
no caso da Escócia, ou a unificação com o Éire, no caso da Irlanda do Norte.
Assim, a constituição histórica do Estado britânico se
apresenta como uma ação que não passou pelo crivo da sua população, ainda que
tivesse forte apoio. Planejado e executado na época do imperialismo e adaptado
no Entre Guerras, o Reino Unido é uma criação unitária, que ocorreu apesar das
vozes contrárias, uma vez que a leitura sobre o que era um Estado na época era
diferente. É isso que irá basear o questionamento da autoridade de Londres com
relação à Escócia e ao Ulster já no século XIX, mas com mais força após a
Segunda Guerra Mundial.
Ao longo do século XX, o movimento de independência viu-se,
por um lado, apoiado em razão do florescimento cultural da década de 1960, que
causou uma revitalização dos movimentos musicais e artísticos na Escócia a
partir daquele período. Por outro lado, com a descoberta de reservas de
petróleo no Mar do Norte a partir de 1970, Londres determinou um controle
político cada vez maior na região.
Um grande conflito entre os escoceses e o governo britânico
que também ocorreu nessa época foi o processo de desindustrialização ocorrido na gestão da Conservadora Margaret
Thatcher, quando as minas de carvão do norte da Inglaterra e da Escócia, assim
como as diversas unidades industriais que atuavam nas grandes e médias cidades
escocesas desde o século XIX começaram a singrar outros mares dentro da
perspectiva da desterritorialização da economia capitalista a partir da
Terceira Revolução Industrial.
Os trabalhadores escoceses, grandes apoiadores do partido
trabalhista devido às características econômicas da região, se viram duramente
atingido pelo neoliberalismo de Thatcher e seu sucessor, John Major. E, mesmo
com a chegada dos “Garotos de Glasgow” no poder na década de 1990, criticaram
duramente os governos dos também escoceses Tony Blair e Gordon Brown que, na
sua política do Novo Trabalhismo, e
inspirados na Terceira Via de Anthony Giddens, deram forte apoio à
terciarização da economia britânica, fortalecendo o apoio ao setor de serviços
e às finanças, concentradas na City
de Londres.
É nessa lógica político-partidária que se pode compreender,
atualmente, a força do Scottish National Party
(SNP), o Partido Nacional Escocês, que conseguiu, na década de 1990, realizar a
devolução: a instauração de um
parlamento que fizesse a regulamentação de assuntos internos à Escócia,
garantindo um governo representativo dos habitantes da região. Até então, os
escoceses elegiam apenas cerca de 60 parlamentares em Westminster, dos 650
assentos disponíveis para todos os distritos do Reino Unido. Na prática, isso
representava uma falta de representatividade dos eleitores, que, dentro da
lógica unitária da constituição do Estado britânico, deviam, necessariamente,
atender aos comandos de Londres.
Dentro deste espectro, somam-se dois aspectos relevantes:
mesmo com um Parlamento escocês instaurado em 1997, alguns aspectos relevantes
da governança interna ao país estão concentrados nas mãos do parlamento
britânico. Por outro lado, a vitória de David Cameron, líder do mesmo partido
de Thatcher e Major, nas eleições de 2010 trouxe de volta a velha oposição
entre trabalhismo e conservadorismo. Porém, o trabalhismo perdeu muito da sua
força na Escócia em razão do apoio à financeirização da economia na década de
1990, assim como em razão do apoio às guerras perpetradas pelos Estados Unidos
no Afeganistão e no Iraque – Blair foi um dos principais apoiadores, e Brown um
daqueles que mais sustentou as ações militares.
Assim, ocorreu uma polarização
política. Sem representatividade no Parlamento de Londres, aqueles que
querem um governo eleito diretamente pelos constituintes escoceses tenderam à
proposta pela Independência. Já aqueles que desejam continuar com a União, são
acusados pelos independentistas de não defenderem uma autodeterminação da nação
através de um ente político que atenda diretamente às necessidades da
população. Os debates televisionados entre os dois líderes, o atual Chefe do
Parlamente Escocês Alex Salmond e o antigo Chanceler britânico, o também
escocês Alistair Darling, têm tido alta visibilidade, e a discussão tomou conta
do país inteiro.
Voltando ao início da discussão, este tema é fonte de
debates não apenas na Escócia, mas no mundo inteiro. O movimento de
independência da Catalunha, por exemplo, está se mobilizando com mais força
desde que uma pesquisa na semana passada indicou que os independentistas teriam
ganhado vantagem na corrida.2 Da mesma forma, alguns outros
movimentos, buscam, no plebiscito escocês, uma garantia de que, caso realizem
processos democráticos, consigam se tornar independentes.
Porém, estamos vivendo num mundo conturbado. Uma das grandes
questões colocadas àqueles que desejam a independência é: “e depois?”. Não se
sabe como ficará a situação do próprio Reino Unido – afinal, não faria sentido
falar em Reino Unido se não houver mais de uma Coroa. Também se questiona o
futuro do Ulster, já que a independência escocesa abriria uma brecha jurídica
para um plebiscito semelhante na Irlanda do Norte. Há, inclusive, a discussão
de implantação de uma constituição para o Reino Unido, que até hoje não tem um
direito constitucional positivado, ou a transformação do país em uma federação.3
Mesmo no Brasil, discute-se a possibilidade de criação de uma nova forma
de gestão política no Estado, através da instalação de uma Assembleia
Constituinte para a Reforma Política.4
Enquanto isso, vislumbramos no Oriente Médio o surgimento de
um pós-Estado-Nação, para se utilizar
o termo cunhado por meu colega, Prof. Andrew Patrick Traumann, o Estado
Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS, em sua sigla em inglês). Ao mesmo tempo
em que desrespeitam fronteiras nacionais em razão do seu afã em reconstruir um
Califado, forma político-estatal que não tem a ver com a noção de Estado-Nação,
usando massivamente instrumentos de comunicação da contemporaneidade, tais como
o Twitter e o YouTube para alcançar seus objetivos. Mesmo assim, são movidos por
uma nostalgia a uma Era de Ouro passada, que remete a nacionalismos muito
ligados ao arraigo territorial e a “imperialismos”. 5
Resta, portanto, um questionamento fundamental a respeito da
representatividade dentro do seio daquele que é o ente principal do sistema
internacional: o Estado-Nação. Ao se tratar a questão da representatividade, há
a necessidade de se questionar o sistema representativo que vivemos, criado e
instalado durante o século XX, para que atenda às demandas da democracia do
século XXI. Mesmo na eventualidade de um voto contra a independência, os
impactos do processo de independência da Escócia terá longos efeitos, tanto
para o Reino (até agora) Unido, como para o mundo como um todo.
* Gustavo Glodes Blum é Professor
de Geografia Política do curso de Relações Internacionais do Centro
Universitário Curitiba – UNICURITIBA.
1 Através da coordenação de
Andrew Sparrow, o Guardian mantém o
“Scottish Independence Blog”, com as principais movimentações políticas,
econômicas e sociais da campanha: http://www.theguardian.com/politics/scottish-independence-blog.
2 “Cataluña celebra a su día
mirando a Escocia”, Reuters, 10 de setembro de 2014. Disponível em http://lta.reuters.com/article/topNews/idLTAKBN0H51RO20140910.
3 Para o membro do Parlamento Galês
David Melding, mesmo caso haja um voto a respeito da permanência da Escócia no
Reino Unido, haverá uma forte discussão a respeito da gestão de um Estado
multinacional. Disponível em “Yes or no, the Scottish
independence referendum will have a lasting impact on the coherence of the
multi-national state”, 10 de setembro de 2014, em http://www.democraticaudit.com/?p=1405.
4 O Movimento “Plebiscito
Constituinte” desenvolveu, nas últimas semanas, um plebiscito popular a
respeito da questão. Suas plataformas estão disponíveis em http://www.plebiscitoconstituinte.org.br/. Uma análise a respeito de seus efeitos, de autoria dos Professores
Egon Bockmann Moreira (UFPR) e Heloisa Fernandes Câmara (UNICURITIBA) está
disponível em http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/conteudo.phtml?tl=1&id=1498612&tit=Poder-constituinte-e-reforma-constitucional%3A-ate-onde-se-pode-ir%3F-.
5 O próprio Professor Andrew P.
Traumann traça uma análise interessante a respeito do ISIS neste blog, em http://internacionalizese.blogspot.com.br/2014/07/isiso-califado-e-desagregacao-completa.html.
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