domingo, 6 de julho de 2014

ISIS:o Califado e a Desagregação Completa do Estado Iraquiano




Propaganda do grupo ISIS divulgando a "libertação" da cidade de Mossul das mãos do governo iraquiano

*Por Andrew Patrick Traumann

O califado é uma instituição criada em 632 d C na ocasião da morte do Profeta Maomé. A palavra Khalifa em árabe significa sucessor e portanto o califado foi criado para liderar a comunidade muçulmana na ausência de Maomé. O falecimento de Maomé vai marcar também o primeiro cisma no islamismo,a divisão entre sunitas e xiitas. Os primeiros queriam que o califa fosse escolhido por aclamação entre os membros da comunidade enquanto os segundos os Shi’at Ali (partidários de Ali) queriam que o califado fosse um sistema dinástico,e que Ali,primo e genro de Maomé fosse o novo califa. A ruptura política mais tarde evoluiria para uma série de diferenças teológicas entre os dois grandes ramos do islamismo. Os sunitas consideram apenas os quatro primeiros califas como rashidun ou corretamente guiados espiritualmente falando. O fato é que com a expansão do Império Islâmico os califas se tornaram cada vez mais líderes  políticos e menos espirituais. Esse papel passou a ser exercido por clérigos que exerciam sua autoridade religiosa apenas a nível local. De todo modo o califado enquanto instituição existiu até 1924 quando foi abolido por Kemal Ata Turk, pai da Turquia moderna.

Por isso chocou a comunidade internacional o anúncio da criação de um califado no nordeste da Síria e Iraque oriental,liderado por Abu Bakr Al-Baghdadi que como califa exigiu que todos os muçulmanos do mundo (cerca de 1,3 bilhão de pessoas espalhadas pelos cinco continentes) jurassem lealdade a sua autoridade.As chances de Baghdadi ter sua liderança reconhecida são inexistentes,mas o fato de que um grupo chega ao ponto de conclamar a criação de um território independente e teoricamente ilimitado (já que o califa é o líder de todos os muçulmanos),desprezando as fronteiras nacionais sírias e iraquianas,retrata muito bem até que ponto o Estado iraquiano hoje encontra-se falido,fruto de uma desastrada estratégia norte-americana de desmantelar todo a estrutura burocrático-militar que existia  no Iraque pré-invasão. A maioria xiita liderada pelo primeiro-ministro Nouri-Al-Maliki foi á forra após décadas de opressão sob o regime de Saddam Hussein,mergulhando o país numa guerra civil que saiu completamente de seu controle e que hoje compromete a própria existência do país.Sunitas perderam seus empregos e suas manifestações,mesmo pacíficas,foram violentamente reprimidas pelas forças do governo.

É nesse contexto que surge o Estado Islâmico do Iraque e Levante (ou ISIS,na sigla em inglês),que hoje domina o nordeste da Síria e quase todas as regiões sunitas do Iraque,uma dissidência ainda mais radical da Al Qaeda,inicialmente patrocinados por Obama (numa repetição do erro de Reagan com o Talebã) que tem tomado a frente na luta contra o regime de Bashar Al Assad. Assim como a Al Qaeda,o ISIS recolheu fundos de países do Golfo que fazem as doações para manter os radicais combatendo longe de seus territórios nacionais.
Após a retirada das tropas norte-americanas o ISIS voltou a agir dentro do Iraque. Meses atrás,o grupo tomou a cidade de Fallujah e na semana passada conquistou Mossul,a segunda maior cidade iraquiana e encontram-se agora a caminho da capital.

O país cada vez mais mergulha no caos, pois até membros sunitas do Exército Nacional tem desertado e passado para o lado do ISIS. No extremo norte do país,o Curdistão já foi criado extra-oficialmente,pois lá já  não há a presença do Estado Iraquiano e inclusive a região já começou a exportar petróleo de forma independente.A ficção de um Iraque democrático e laico,criado não pela vontade de seu povo,mas via bombardeios norte-americanos,está totalmente descartada.
Bagdá conta com a ajuda do Irã que fornece drones e armas ao governo iraquiano. Nesse processo de desagregação o Iraque tende a se tornar um país de dimensões reduzidas,aliado do Irã,Síria de Assad (aliada da Rússia) e Hezzbollah,ou seja o extremo oposto da promessa de democracia e liberdade dos falcões republicanos quando da invasão em 2003.

Oficialmente Washington finalmente cortou a ajuda aos rebeldes sírios,pressionam Maliki para que aceite um governo de coalizão com sunitas e curdos e consideram,quem diria,uma ação conjunta com o Irã para deter o ISIS. Não há boas opções á mesa. Fechar os olhos para a situação como se fosse "problema do Iraque" já não convence,uma vez que o conflito já transbordou as fronteiras nacionais criadas pelo Acordo Sykes-Picot e pode mudar profundamente a geopolítica da região.

*Andrew Patrick Traumann é professor de História das Relações Internacionais do UNICURITIBA e Doutor em História,Cultura e Poder pela UFPR.

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