Seu João possui um barco
pesqueiro. Não é um barco muito grande, mas suficiente para atender os
propósitos de seu proprietário: empreitadas diárias mar a dentro a fim de
prover os meios de subsistência da família. Os peixes que seu João traz
diariamente do alto mar são invariavelmente vendidos no mercado da cidadezinha
onde mora. Com o dinheiro obtido, seu João sustenta uma família de seis
pessoas: ele, a mulher e quatro filhos.
Um belo dia, um simpático e
jovem forasteiro impecavelmente vestido vem lhe procurar no mercado onde
comercializa suas preciosas iguarias marinhas. O rapaz tem fala mansa e
envolvente. Cada palavra que pronuncia parece uma peça de puzzle que, à medida
que ganha forma, aumenta a curiosidade de seu João. Lá pelas tantas, depois de
muita conversa, o forasteiro lhe explica o motivo que o traz àquele lugar:
gostaria de oferecer a seu João a possibilidade de ampliar seus negócios
através da compra de um barco novo e maior, assim como equipamentos de pesca
mais sofisticados. E tudo isso sem custo nenhum para seu João.A proposta é surreal. Seu João não acredita no que está ouvindo e pede ao jovem que repita a proposta: “Você está me oferecendo um novo barco, maior que meu barco atual, e instrumentos de trabalho muito melhores que os meus, sem custo?”.
“Isso mesmo”, responde o jovem com serenidade e convicção. “Tudo o que precisamos é encontrar pessoas que aceitem de bom grado se tornarem seus sócios na expectativa de que a sua prosperidade permita-os auferir algum lucro!”, completa.
Seu João está atordoado: “E onde estão essas pessoas? Onde vamos encontra-las?
Aqui nesta cidade apenas os bancos emprestam dinheiro e cobram juros extorsivos!”.
“Não se preocupe”, diz o jovem com segurança. “Na cidade onde moro há muitas famílias podres de ricas e que não sabem o que fazer com suas fortunas. Adoram emprestar dinheiro para homens empreendedores como o senhor. Conheço muitas pessoas assim e tenho certeza que estarão dispostas a colocar importantes somas de dinheiro em um projeto promissor como o seu!”, assegura-lhe.
“Não se preocupe”, diz o jovem com segurança. “Na cidade onde moro há muitas famílias podres de ricas e que não sabem o que fazer com suas fortunas. Adoram emprestar dinheiro para homens empreendedores como o senhor. Conheço muitas pessoas assim e tenho certeza que estarão dispostas a colocar importantes somas de dinheiro em um projeto promissor como o seu!”, assegura-lhe.
Alguns meses mais tarde, tendo sido concluídos os trâmites legais, a modesta
atividade pesqueira de seu João foi transformada em uma empresa com capital
acionário e negociável no mercado financeiro. Seu João não tinha a menor idéia
do que isso significava mas, agora, tinha um barco novo e maior que o antigo,
tinha também equipamentos de pesca mais sofisticados, e tudo isso não lhe
custara nada! Outra coisa que seu João nem imaginava é que o dinheiro que
recebeu, para a compra do barco novo e dos novos equipamentos, era uma pequena
fração do valor que o jovem forasteiro havia arrecadado com a venda das ações
de sua nova empresa. Muito possivelmente, seu João teria, de agora em diante, uma
vida melhor; as pessoas que compraram ações de sua empresa talvez recebam algum
rendimento pelas ações que possuem; mas o jovem forasteiro, que antes da
operação que acabara de consumar não possuía nada mais que ousadia e astúcia,
agora se transformara certamente em um milionário.
Negócios como esse são rotina no mercado financeiro internacional. Alguns muito
mais espúrios, verdadeiras falcatruas que produzem fortunas. O segredo do
negócio? Só os lobos sabem, ou melhor, sabiam. Porque com O Lobo de
Wall Street, Martin Scorsese revela-nos o segredo dos lobos. Não de lobos
comuns, mas de lobos financeiros, uma espécie de predador em rápida
proliferação nas sociedades contemporâneas e, particularmente, nos Estados
Unidos, a meca do capitalismo financeiro. O filme de Scorsese retrata um pouco
da história de vida do especulador – quer dizer, lobo norteamericano Jordan
Belfort – e tem como propósito principal expor a delinquência e a violência que
tomaram conta do mercado financeiro entre o fim do século passado e o início do
século XXI, mas se propõe também alertar as pessoas que ainda usufruem um
estado de sanidade mental sobre o perigo a que o capitalismo financeiro expõe a
humanidade (conferir entrevista de Scorsese em: http://www.sinpermiso.info/textos/index.php?id=6602).
Acontece, porém, que ao abordar o funcionamento do mercado financeiro
norteamericano, Scorsese está automaticamente lidando com o que há de mais
sofisticado na economia mundial contemporânea, isto é, com a vanguarda
econômica e cultural da sociedade internacional. Isso mesmo, afinal de contas o
capitalismo financeiro nada mais é que uma nova etapa do desenvolvimento do
capitalismo mundial. Por isso, o padrão de comportamento dos lobos
nova-iorquinos não deve ser entendido como fenômeno isolado ou circunscrito à
Wall Street, mas sim como padrão de comportamento social que o capital impõe ao
mundo inteiro, independentemente da esfera de reprodução da vida humana:
economia, política[i], educação, arte, relacionamentos
pessoais, esporte[ii], etc...
Ganhar dinheiro é o mantra sagrado da sociedade do capital. É a essência mesmo
do capital, transformar dinheiro em mais-dinheiro. Mas, hoje, de um modo
diferente, subjugando a este propósito todos os valores sociais. É por isso que
o filme de Scorsese faz desfilar diante do público cenas de luxúria, ganância,
mentira, corrupção, prevaricação, devassidão, adultério, ostentação,
voluptuosidade, futilidade. Tudo é aceito e até mesmo socialmente justificado
quando o propósito é ganhar dinheiro. O capital instrumentalizou o homem para
servi-lo e, ao mesmo tempo, para negar-se a si próprio. O Lobo de Wall
Street não é apenas um filme sobre Jordan Belfort ou sobre o mercado
financeiro norteamericano. Ele é mais do que isso: é uma caricatura da
sociedade capitalista do início do século XXI; é um olhar para dentro do mundo
que habitamos.
*Prof. Carlos-Magno Esteves Vasconcellos é doutor em Economia pela Escola Superior de Economia de Varsóvia (SGPiS) - Polônia, professor titular dos cursos de graduação em Relações Internacionais e Direito e da pós-graduação em Diplomacia e Relações Internacionais do UniCuritiba.
[i] Ao sair da sala de cinema
podia fazer uma transposição imediata e direta de tudo o que vi no filme para o
mundo real da política brasileira. O personagem interpretado por Leonardo di
Caprio nunca me parecera tão familiar.
[ii] Em recente entrevista à
revista norteamericana The Nation, o “ex-atleta
negro John Carlos, que se tornou famoso em todo o mundo por ter feito a
saudação dos Black Panthers (Panteras Negras) – o braço esticado para o alto,
com o punho fechado – ao receber a medalha de bronze pelos 200 metros rasos,
durante os Jogos Olímpicos do México, em 1968” teria declarado a respeito do
Comitê Olímpico Internacional (COI): “eles só veem o ‘verde’ [dólares]. O
‘verde’ tomou conta do tecido moral dos Jogos Olímpicos”. (cf. Arbex Jr., Seguir a Estrada Menos Percorrida, Caros
Amigos, ano XVII, nº 203, fev 2014, p. 9)
Eu saí da sala de cinema com a sensação de que alguém trataria deste assunto, e aqui estamos (risos). Interessante análise, professor.
ResponderExcluirComentários precisos professor Dr. Carlos Magno.
ResponderExcluir