Por
Carlos-Magno Esteves Vasconcellos
Publicada recentemente no Brasil, pelo jornalista Otávio Cabral, a biografia de José Dirceu é uma obra que merece ser lida por todos os brasileiros e, em particular, pelos intelectuais, trabalhadores e militantes políticos comprometidos com uma transformação radical da vida socioeconômica de nosso país. No livro, o autor se propõe a redesenhar toda a trajetória política daquele que foi – depois de Lula – o mais importante líder político do Partido dos Trabalhadores (PT), desde sua criação, em 1980, até o ano de 2005, quando eclodiu o ‘escândalo do mensalão’. Para além desse propósito, o autor pretende também, de maneira absolutamente equivocada, que o estudo da trajetória política de José Dirceu possa resumir de alguma maneira “a história da esquerda latino-americana na segunda metade do século XX”. Quanto a este segundo propósito o livro não cumpre papel relevante, pois a história da “esquerda” latino-americana – mesmo que restrita à segunda metade do século XX – é muito mais rica que as experiências vivenciadas por Dirceu e o PT; porém, no que diz respeito à aventura política de Dirceu e do PT na gestão política e econômica de nosso país, a obra de Cabral é preciosa.
Redigida
através de uma narrativa simples, direta, e cronologicamente organizada, a
biografia de Dirceu organizada por Cabral tem início na adolescência do
mineirinho de Passa Quatro, filho de seu Castorino e dona Olga. Desde tenra
idade, Dirceu já manifestava alguns dos traços de personalidade que iriam
acompanha-lo pelo resto da vida: ambição, ousadia, arrogância e liderança.
Impulsionado por essa forte personalidade o jovem Dirceu abandonou Passa Quatro
no ano de 1961, aos 14 anos de idade, rumo à cidade de São Paulo. Em 1966, já
cursando Direito na PUC, tornara-se presidente do Centro Acadêmico 22 de Agosto
e, em outubro de 1967, elegia-se a presidente da União Estadual dos Estudantes (Estado
de São Paulo). Em 1968, liderou a ocupação da Faculdade de Filosofia da USP, de
onde comandou a rebelião dos estudantes de São Paulo contra a Ditadura que se
instalara no Brasil em 1964. Em sete míseros anos Dirceu saia do mais absoluto
anonimato no interior de Minas Gerais para a condição de renomado líder
estudantil em um dos mais pulsantes núcleos intelectuais do Brasil. Uma
ascensão meteórica!
Em
seu engajamento político inicial, Dirceu se tornaria um dos pilares da
resistência democrática contra o opressivo regime político implantado no Brasil
pela burguesia nacional em aliança com as elites burguesas do capitalismo
internacional. Nesta condição, viveu exilado em Cuba entre outubro de 1969 e
fevereiro de 1971, onde recebeu treinamento e qualificação especial para a luta
armada no Brasil, e de onde retornaria ao país para participar de um frustrado movimento
de guerrilha urbana e rural (Molipo).
Em
1975 (após novo estágio preparatório de cerca de 3 anos em Cuba),
metamorfoseado e com a identidade de Carlos Henrique Gouveia de Melo, José
Dirceu voltaria ao Brasil para “reorganizar o movimento guerrilheiro contra a
ditadura brasileira”. Em 1979, beneficiado pela Lei da Anistia, Dirceu deixa a
clandestinidade e volta a se articular politicamente com grupos “de esquerda”.
Em 1980, ao lado de Luiz Inácio da Silva, Vladimir Palmeira, Frei Betto, Olívio
Dutra e outros companheiros, participaria da fundação do Partido dos
Trabalhadores (PT). Estranhamente, e quase num passe de mágica, no novo Partido
o político José Dirceu vai se afastar dos companheiros mais radicais do PT
(inclusive dos ex-guerrilheiros) e se alinhar ao grupo de esquerdistas
moderados, através da tendência Articulação, que ele mesmo cria. Aqui se inicia
uma nova etapa da trajetória política de José Dirceu: a militância e a
liderança política num contexto de legalidade institucional.
Em
1986, Dirceu foi eleito para seu primeiro mandato na Assembleia Legislativa
paulista (Deputado Estadual); em 1989, assumiu a coordenação da primeira campanha
presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva; e, em 1990, foi eleito para seu
primeiro mandato na Câmara Federal, durante o qual participaria intensamente da
cruzada ética que culminaria no impeachment
de Fernando Collor de Mello. Em 1994, no comando da campanha presidencial de
Lula pela segunda vez, Dirceu e o PT sofreriam a segunda derrota consecutiva
para aquele pleito: foram derrotados em 1989, por Collor de Mello, e em 1994,
por Fernando Henrique Cardoso. Na campanha de 1994, entretanto, confrontado com
a carência de recursos do Partido, Dirceu romperia com os padrões éticos tradicionais
do PT e aceitaria doações de empreiteiras contratadas pelo governo federal para
financiar a campanha presidencial de Lula. Tal conduta política geraria uma
crise existencial no PT que, somente em agosto de 1995, no congresso nacional
do Partido seria resolvida, graças ao apoio de Lula e o sufocamento das
críticas a José Dirceu. Este episódio, assim como o perfil moderado-reformista,
imposto ao PT pela tendência majoritária Articulação, liderada por Dirceu desde
o início da existência institucional do Partido, seriam decisivos na
conformação política do PT e prenúncio de seu futuro na gestão do governo
brasileiro.
Em
1997, preparando-se para sua terceira campanha à presidência da república
contra o candidato da situação – Fernando Henrique Cardoso (FHC), Lula
confessou a Chico Alencar (candidato derrotado do PT ao governo do Rio de
Janeiro): “Cansei de rodar minha bolsinha esfarrapada por aí. Para ganhar
eleição, vou precisar de aliança e de grana. Dei todo poder para o Zé Dirceu
arrumar isso. Falei: Zé, articula e faz.
Pode até contratar o Duda Mendonça. Não quero saber como você fez, só quero
que a gente ganhe a Presidência”. (p. 149) Ainda em 1997, Paulo de Tarso Venceslau (partícipe
do sequestro do embaixador norte-americano que seria usado como poder de
barganha para a libertação de Dirceu em 1969 e membro fundador do PT) denunciou,
sem sucesso, um esquema de fraude e corrupção liderado por Lula e Dirceu no
interior do Estado de São Paulo para financiar a campanha de Lula à presidência
da república.
Em
2002, após mais uma derrota no pleito presidencial de 1998 diante de FHC, Lula
e o PT se preparavam para mais uma eleição ao Planalto sob a liderança absoluta
de seu fiel escudeiro José Dirceu. Naquele ano, confirmaram o caráter
moderado-reformista do PT com a divulgação da famigerada Carta ao Povo Brasileiro, através da qual o Partido se comprometia
a não provocar rupturas com o modelo econômico vigente. A nova campanha do PT
às eleições presidenciais seria pautada no slogan Lulinha, Paz e Amor e na luta contra a corrupção, muito embora o
Partido se encontrasse envolto por especulações de desvio de dinheiro público e
criminalidade por conta dos recentes assassinatos dos prefeitos petistas de
Campinas e Santo André, Toninho e Celso Daniel. Ainda em 2002, graças à morte
de Celso Daniel, uma nova estrela começaria a brilhar no PT: o prefeito petista
de Ribeirão Preto, Antônio Palocci Filho, novo coordenador do programa de
governo do PT.
Como
homem forte da articulação política da candidatura Lula à presidência da república,
Dirceu passou a se concentrar na formação de alianças de apoio ao candidato
petista. Para assessorá-lo, cercou-se de amigos e correligionários de sua
inteira confiança: Delúbio Soares, Sílvio Pereira e Waldomiro Diniz. Em busca das alianças que viabilizassem a
eleição de Lula, José Dirceu costurou importantes apoios com partidos e
lideranças políticas minimamente estranhos: o PMDB de José Sarney, o PFL de
Antônio Carlos Magalhães, o PTB de Roberto Jefferson e o PL de Valdemar Costa
Neto.
Mas,
o que teria tornado exequível tais alianças? Na opinião de Otávio Cabral a
resposta deve ser buscada em uma nova amizade de Dirceu: o mineiríssimo Marcos
Valério que lhe foi apresentado pelo bom amigo João Paulo Cunha. Valério
parecia o homem certo, no lugar certo, na hora certa. Era uma espécie de mago
das finanças, que fazia aparecer dinheiro onde antes nada existia. E o
dinheiro, como é sabido desde tempos imemoráveis, sempre foi um produto de
excelente qualidade para dar liga à alianças políticas, especialmente às mais
esdrúxulas.
Eleito
Presidente da República em 2002, Lula entregaria a chefia da Casa Civil e a
articulação política do governo federal nas mãos de José Dirceu. Sua principal
missão: gerir o condomínio do poder onde o PT coabitaria com seus aliados. Missão
impossível, viabilizada pelo mago Valério.
A
segunda metade do livro de Cabral relata a epopeia de Dirceu à frente da Casa
Civil. É sem dúvida um dos períodos mais negros da história do Brasil que
culmina no horroroso julgamento do mensalão. É um livro indispensável à todos
que desejam conhecer o Brasil de hoje. Um país inequivocamente burguês e
decadente, malgrado a verborragia de seus governantes.
Para
terminar, cabe ressaltar algumas importantes deficiências da obra de Cabral.
Primeiro, o autor traz muitas revelações sem as devidas fontes. A força das
revelações, entretanto, reside no conjunto da obra, onde tudo se encaixa
linearmente. Segundo, o autor não revela em nenhum momento as idéias de Dirceu
concernentes aos seus propósitos com a defesa da democracia. Terceiro, o autor-jornalista
minimiza ou até mesmo negligencia a participação de jornalistas e da grande mídia privada no sistema de gestão política organizado por Dirceu (terá sido por
motivações corporativistas?)
No
balanço de acertos e tropeços, recomendo a leitura da obra.
Carlos-Magno Esteves Vasconcellos é doutor
em Economia pela Escola Superior de Economia de Varsóvia, Polônia e Professor
Titular das cadeiras de Economia Política Internacional e Empresas
Transnacionais do Curso de Relações Internacionais do UniCuritiba.
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