quarta-feira, 20 de outubro de 2021

“Sportswashing”: a nova falácia ocidental


    Depois de ano e meio de negociação, o Newcastle United, clube de futebol do norte inglês, foi finalmente comprado por mais de dois bilhões de reais por um fundo de investimento da Arábia Saudita. A transação reanimou os debates sobre os modelos de clube na Europa, as diferenças de investimento e a origem do dinheiro injetado em campo. 
    Este tipo de negócio não é incomum na Premier League, o “inglesão”. Na verdade, a tendência é de que cada vez mais os times tenham dono e se distanciem dos modelos de clubes associativos, comuns no Brasil, na Argentina e na Espanha. 
    Na Grã-Bretanha, a maioria dos grandes times já têm mecenas. Embora a comunidade judaica inglesa seja bastante identificada com o Tottenham, no norte londrino, o atual campeão europeu Chelsea é de propriedade do russo- israelense Roman Abramovich desde 2003. A família Glazer, de judeus lituanos refugiados nos EUA, é dona de 90% do gigante Manchester United e da franquia de futebol americano Tampa Bay Bucaneers.
    No lado azul de Manchester, do novo rico City, é comandado pelo Sheik Mansour Bin Zayed, o vice-primeiro ministro dos Emirados Árabes Unidos. Do Golfo Pérsico também se administra o Paris Saint-Germain, de Messi, Neymar e Mbappé. O ex-tenista Nasser Al-Khelaïfi - braço direito do xeique Tamim bin Hamad Al-Thani, Emir do país que sediará o Mundial FIFA de 2022 – é o presidente do consórcio catari que detém as ações do badalado time francês. Inclusive, quando Neymar se transferiu de Barcelona para Paris, o blaugrano catalão rompeu seu patrocínio com a Qatar Airways. 
    Se alguns times ainda não têm donos offshore, o dinheiro não raramente vem de fora. O Atlético de Madri, de modelo associativo, recebeu um grande aporte financeiro do estado azeri em 2014. Em destaque no fardamento rojiblanco, naquele ano campeão espanhol depois de uma década de hegemonia de Real Madri e Barça, havia os dizeres “Azerbaijão, terra do fogo”, em referência às fartas reservas de gás natural no Cáucaso. 
    Ruanda, um dos países mais pobres do mundo, estampa a manga do uniforme do londrino Arsenal desde 2018: “Visite Ruanda”, convida a camisa dos gunners. Paul Kagame, presidente africano, é um torcedor declarado do Arsenal e governa Ruanda desde 1994.
    Com a frequência de negócios bilionários entre clubes europeus e governos do Sul global, um neologismo estrangeiro começou a ocupar os noticiários esportivos e de política internacional. Da justaposição de sports (esportes) e washing (lavagem), sportswashing foi adicionado no dicionário dos torcedores. O termo ganhou ainda mais espaço no discurso de militantes de direitos humanos, que acusam países pouco transparentes de tentar limpar suas imagens através do esporte mais popular do mundo. 
    De fato, o grosso do dinheiro que permite que as ligas europeias sejam as mais fortes do planeta têm vindo de fora. E isto realmente incomoda os que prezam pela pureza e pela competitividade justa no futebol. No entanto, as acusações de sportswashing sempre são em cima de países subdesenvolvidos investindo em potências mundiais, mesmo que no esporte. 
    Quando o fluxo é o contrário, com investimentos europeus em governos pobres, não há denúncia de que França e Inglaterra estejam querendo “limpar suas barras” com as ex-colônias, por exemplo. Muito menos quando a maioria dos craques que brilham nos gramados da Champions League sejam sul- americanos, africanos e asiáticos. 
    O que os países centrais da Europa têm enfrentado no futebol é a prova e o reflexo de suas próprias práticas expansionistas. É como se estivessem perdendo um grande catalizador de softpower: se é comum ver uma camisa do Arsenal no Oriente Médio, como expressão da cultura britânica pelo mundo, ficará cada vez mais usual o uso de turbantes no Estádio de Wembley. 
    Na lógica do primeiro escalão da bola, é necessário que africanos muçulmanos como Sadio Mané e Mohamed Salah suem pelo Liverpool e tenham seus passes negociados entre clubes europeus, mas inadmissível que um árabe faça o trabalho intelectual e financeiro do time e lucre em cima disto, pois seria a consumação do sportswashing
    Não resta dúvida de que a compra do Newcaslte tem muito mais de jogada geopolítica do príncipe herdeiro saudita, Mohammad bin Salman, do que de investimento exclusivamente econômico. Estes artifícios e negócios têm sido feitos pelas grandes potências através do esporte há séculos, mas só agora, com a partida virando, é que se cria um conceito para condenar quem joga o jogo de igual pra igual. 

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