quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Opinião: A politização pública e privada da internet: um silencioso movimento tectônico




Gustavo Glodes Blum *

Desde o assassinato do general iraniano Qassem Soleimani no início do mês por parte de um ataque estadunidense em solo iraquiano, alguns usuários de redes sociais ocidentais no país têm percebido um comportamento não-usual das mesmas. De acordo com diversos relatos, posts relacionados à imagem de Soleimani, sobretudo em apoio ao general morto e às ações internacionais da força de elite Quds, que ele liderava, têm sido apagados de contas privadas e públicas do Instagram e do Facebook. O site CodaStroy (inglês), relata detalhadamente esse processo, que levanta várias questões.

Ao mesmo tempo, a Rússia anunciou no final de 2019 que tinha tido sucesso num teste de desconexão com a internet mundial. O teste, que ocorreu quase um ano após o anúncio oficial do Kremlin da tentativa, foi liderado pelo Ministério de Desenvolvimento Digital, Comunicações e Mídia de Massa da Federação Russa, órgão federal responsável por “propor e implementar políticas governamentais e regulação jurídica” em áreas como a tecnologia da informação, telecomunicações, imprensa escrita, rádio e outras. 

Segundo reportagens locais, o vice-ministro afirmou, após os testes, que “tanto as autoridades quanto os operadores [de internet] estão prontos para efetivamente responder a possíveis riscos e ameaças e garantir o funcionamento da Internet e da rede de comunicação unificada na Rússia”. É interessante notar que, enquanto um Ministério do governo russo, e embora os resultados dos testes sejam apresentados ainda neste início de ano ao presidente do país, Vladimir Putin, eles estão sob responsabilidade o Primeiro-Ministro, Dmitry Medvedev.

Ainda no ano passado, também, o Twitter, uma das principais redes sociais utilizadas no Ocidente e países de outras regiões como América Latina e Ásia, anunciou detalhes sobre sua nova política de propaganda política. Embora o anúncio tenha sido feito em meados de outubro de 2019, apenas em novembro a rede apresentou os detalhes, que envolvem a restrição de circulação de propaganda “sobre qualquer candidato, partido, governante, pesquisa eleitoral ou medida legislativa ou judiciária feita por qualquer usuário do sistema”, segundo o jornal Estado de Minas. A reportagem ainda indica que a arrecadação com anúncios políticos na eleição de 2018 dos EUA foi de US$ 3 milhões, o que representa “menos de 1% dos US$ 824 milhões declarados como receita do terceiro trimestre” da empresa.

O quê estes casos representam para as Relações Internacionais? Muita coisa, como demonstra o recente tweet do presidente estadunidense Donald John Trump em farsi, a língua oficial do Irã, no qual insta os líderes do país a não agir contra os protestos locais contra a derrubada de uma avião ucraniano em meio às tensões com os Estados Unidos. 

Vinte anos atrás, a internet era apresentada como “o novo espaço de interação social”, o espaço virtual que, inclusive, foi elencada por Thomas Friedmann como a principal força por trás da “planificação do mundo” – demonstrando que a teoria da Terra Plana tem sua adesão em outras variações também entre as elites intelectuais do mundo. A facilidade de comunicação, o fato de botar em contato pessoas de diferentes países e as oportunidades econômicas que se abriam eram elencados como representantes máximos da “nova era”, “despolitizada” e “livre” que a Internet representava no imaginário social.

Neste espaço de tempo, muita coisa mudou, mas principalmente a utilização política da internet em diversos assuntos, sobretudo naqueles relacionados à política e à segurança dos países ao redor do mundo. Ao menos desde o Ato Patriótico – legislação antiterror promulgada pelos Estados Unidos que lhes concedia acesso a todas as comunicações que passassem pelo território americano – estamos observando, como sempre aponta o grande pesquisador David Lyon, que “a nuvem não é fofa”.
 
Composta por uma série de redes técnicas, está submetida também às legislações territoriais de cada país, como demonstra não apenas a Grande Muralha Virtual da China, também chamada de “Projeto Escudo Dourado”, mas também os esforços do Google em desenvolver tecnologia em energia renovável – e assim, no futuro, potencialmente colocar os seus servidores em águas internacionais e impedir que governos nacionais possam regular sua atuação ou os dados que registra e armazena.

A grande inovação e o desafio que enfrentaremos nessa não-tão-nova disposição de poder no cenário internacional é conseguir lidar com a atuação não apenas de entes governamentais, mas também de entes privados nessas novas disputas geopolíticas. Afinal, o Instagram respondeu que apagou os posts sobre Soleimani, em resposta às novas sanções aplicadas pelo governo estadunidense ao Irã. Ao mesmo tempo, a extensão territorial das jurisdições estatais pode encontrar alongamentos nas redes sociais, criando uma nova situação que lembra a tese conspiratório das “guerras híbridas”, criando o que foi chamado por Guilherme Sandoval Góes de “judicialização da geopolítica”, um movimento muito importante de ser observado nas Relações Internacionais.

É difícil afirmar o quê nos espera – e exercícios de futurologia sempre são condenados ao fracasso, como bem demonstram Samuel Huntington e Francis Fukuyama. Porém, acredito que acompanhar essas movimentos a partir de uma perspectiva mais ampla pode nos permitir observar mudanças que não são relatadas cotidianamente no noticiário internacional, mas causam silenciosamente mudanças “tectônicas” na estrutura e prática do Sistema Internacional que habitamos.


* Gustavo Glodes Blum é internacionalista e professor de Geografia Política, Política Internacional Contemporânea e Segurança Internacional do curso de Relações Internacionais do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Atualmente, é doutorando em Geografia das Relações Internacionais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

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