terça-feira, 9 de novembro de 2010

Mercosul aos 20 anos: a evolução dos papéis do bloco e a inserção internacional do Brasil

George Sturaro

Em 2011, o Tratado de Assunção de 1991, acordo criador do Mercosul, completará 20 anos. Tal ocasião convida à reflexão a respeito do bloco, dos seus avanços e retrocessos, dos seus efeitos concretos, das suas perspectivas e do papel que ele desempenha nas estratégias de inserção internacional dos Estados-membros. Seguindo por esta última linha, pretendo aqui desenvolver reflexão a respeito da evolução dos papéis que o bloco desempenha nos marcos da inserção internacional do Brasil.

Numa revisão da literatura sobre o Mercosul, é possível identificar ao menos quatro papéis atribuídos ao bloco pelos estudiosos. São eles: (i) o econômico, (ii) o negociador, (iii) o securitário e (iv) o geopolítico. Esses papéis são exercidos em diferentes dimensões das relações internacionais, em diferentes escalas geográficas e, com maior ou menor destaque, em diferentes períodos. Todos eles têm grande relevância para a inserção do Brasil no cenário internacional contemporâneo.
1. O papel econômico: promoção do desenvolvimento
A grande atenção conferida ao papel econômico do Mercosul na literatura deve-se a que o bloco foi originalmente concebido para servir de instrumento do desenvolvimento econômico dos Estados-membros, pelo livre-comércio, inicialmente, e pela integração dos mercados, numa etapa posterior.  Esse instrumento, a despeito dos reveses que sofreu a sua efetiva implementação, foi responsável por resultados econômicos expressivos durante a maior parte da década de 1990, dos quais o Brasil foi um dos grandes beneficiados. O comércio intra-bloco quadruplicou no período 1991-1998, duplicou no 1994-1998 e, ao fim do período, contabilizou cerca de 23% do comércio exterior dos países-membros (PAMPLONA e FONSECA, 2009, p. 12). Em valor, o comércio intra-bloco cresceu duas vezes mais que o extra-bloco (HOFFMANN et al., 2008, p. 106).
A parte que coube ao Brasil nessas transações é expressiva e teve grande peso na conta comercial do país. Em 1998, 17,4% do total das exportações brasileiras tiveram por destino os países do Mercosul, contra 4,2% em 1991 (KUME e PIANI, 2005, p. 375). O bom desempenho do Mercosul e, por extensão, do Brasil terminou em 1998, quando iniciou a crise financeira no mundo em desenvolvimento. A crise chegou ao Brasil em 1999 e corroeu a âncora cambial do Plano Real do governo Fernando Henrique Cardoso. Nos anos seguintes (2000-2002), ela afetou, de um modo particularmente grave, a Argentina. O efeito imediato foi a redução do comércio intra-bloco e a introversão das economias dos Estados-membros, que implementaram medidas de proteção a setores estratégicos, a exemplo do automobilístico.
No período subsequente, o desempenho do Mercosul e a participação do Brasil no comércio intra-bloco, embora tenham ultrapassado o recorde histórico, não se recuperaram em termos percentuais (HOFFMANN et al., op. cit., p. 106; 112-113).
2. O papel negociador: incremento do poder de barganha nas negociações internacionais
O papel negociador teve origem com a Cúpula de Ouro Preto do Conselho Mercado Comum de 1994 e com o Protocolo homônimo, assinado na mesma ocasião. A Cúpula, que criou a TEC (Tarifa Externa Comum), converteu o bloco em união aduaneira. Neste estágio, a integração veio a exigir a harmonização das políticas econômicas dos Estados-membros para o resto do mundo e, assim, tornou obrigatório que eles assumissem posições unívocas nos fóruns internacionais e nas negociações bi-regionais.
Por sua vez, o Protocolo dotou o Mercosul de personalidade jurídica internacional, pré-requisito para que o bloco pudesse negociar e assinar acordos. Em 1998, a criação do Foro de Consulta e Coordenação Política (FCCP), cujo propósito é favorecer a construção de consensos entre os Estados-membros em matéria de política externa, acrescentou mais força política e legitimidade ao papel negociador do bloco (HOFFMANN et al., ibid., p. 108).  Fortalecido institucional e politicamente por essas inovações, o Mercosul passou a representar os seus membros nas negociações internacionais, os quais, até então, tinham de fazê-lo sozinhos, sem contar com o poder que advém do peso do conjunto (HIRST, 2001, p. 5).
Esse atributo instrumental do bloco conveio aos interesses da elite política brasileira, sempre em busca de meios e recursos que lhe confiram maior margem de manobra nas negociações com as potências do mundo desenvolvido (VIGEVANI et al., 2008, p. 8). O poder de barganha do Mercosul jogou papel importante no período Cardoso, quando o Brasil travou negociações difíceis com os EUA, para definir o formato que a ALCA deveria assumir, e com a EU, para a criação de zona de livre comércio entre os dois blocos.
3. O papel securitário: consolidação das democracias e estabilização política regional
Embora pouco estudado, o papel securitário do Mercosul é um dos pilares centrais do bloco. Em meados dos anos 1980, quando decidiram pela integração, os governos da Argentina e do Brasil, presididos respectivamente por Raúl Alfonsín e José Sarney, não perseguiam objetivos exclusivamente econômicos. A integração que se pôs em marcha naquele momento visava, antes de tudo à superação da rivalidade histórica, à construção da confiança recíproca, à estabilidade política regional e à consolidação das reformas democráticas em ambos os países (OLIVEIRA e ONUKI, 2000, p. 110-113).
A integração das economias contribuiria com esse esforço ao fortalecer as bases materiais das novas democracias, ampliando-lhes as oportunidades de comércio e investimento (GÓMEZ, 1991, p. 227). Após esse período inicial, ao longo da década de 1990, o papel securitário do Mercosul foi atualizado, agora em defesa da democracia nos Estados-membros. A Declaração Presidencial de Las Lenãs de 1992 estipulou que a plena vigência das instituições democráticas é condição indispensável para a existência e o desenvolvimento do Mercosul.
O Protocolo de Ushuaia sobre Compromisso Democrático no Mercosul, Bolívia e Chile, de 1998, reafirmou o que foi estipulado pela Declaração de Las Lenãs e consagrou, entre outras medidas, a expulsão do bloco de membro que não respeitar a ‘cláusula democrática’. Em duas ocasiões, 1999 e 2001, sob liderança do Brasil governado por Cardoso, esses instrumentos foram acionados para assegurar a ordem democrática no Paraguai (SANTISO, 2002, p. 406-409).
4. O papel geopolítico: plataforma de projeção da ‘potência regional’
O papel ‘geopolítico’ do Mercosul, diferentemente dos demais, não foi objeto nem motivação dos primeiros acordos entre os Estados-membros. Ele sobressai apenas recentemente, à medida que o bloco vai se fortalecendo econômica e politicamente, e diz respeito às ambições regionais do Brasil. Parte da elite política e diplomática brasileira, de orientação desenvolvimentista e autonomista, vê no Mercosul um instrumento da afirmação do país como ‘potência regional’. Segundo essa elite, a ampliação paulatina do bloco viria a trazer os demais países sul-americanos para a esfera de influência política do Brasil e abriria caminho para a criação de uma grande zona de livre-comércio, da qual muito se beneficiaria a economia do país (SARAIVA e BRICEÑO, 2009, p. 156).
Ao mesmo tempo, um Mercosul forte e coeso funcionaria como articulador de cooperação Sul-Sul entre blocos regionais e outros agrupamentos de países em desenvolvimento (SARAIVA, 2007, p. 51-52). A partir de 2000, quando é lançado o projeto de integração sul-americana com a CASA, futura UNASUL, o Mercosul começa a aparecer no discurso diplomático brasileiro como a plataforma que levará à realização daquele projeto maior (SANTOS, 2005, p. 17-19). O grande impulso ao ‘Mercosul geopolítico’ é dado pelo governo Lula da Silva.
Vinte anos após a assinatura do Tratado de Assunção, verificamos que, num balanço geral, os papéis que o Mercosul desempenha na inserção internacional do Brasil evoluíram positivamente. O papel econômico, a despeito dos percalços provocados por crises financeiras, é significativo: desde a sua criação, o Mercosul tem sido um dos principais destinos das exportações do Brasil e um dos seus principais fornecedores.
O papel negociador passou no teste de resistência contra a ALCA no formato norte-americano, a qual, caso fosse aceita, teria tido consequências deletérias para a economia nacional. O papel securitário, acionado durante as crises institucionais no Paraguai, assegurou a estabilidade política regional, sem a qual o Mercosul é inviável. Por fim, o papel geopolítico vem articulando a configuração de um espaço econômico e político sul-americano, no interior do qual o Brasil será a potência principal. O Mercosul, próximo dos seus vinte anos, é um dos mais importantes instrumentos de inserção internacional à disposição do Brasil.

George Wilson dos Santos Sturaro é graduado em Relações Internacionais pelo UNICURITIBA e mestrando em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
  • GÓMEZ, José. María (1991). “Democracia Política, Integração Regional e Contexto Global na América Latina (Repensando Alguns “Nós Problemáticos”).” Contexto Internacional, vol. 13. n. 2, p. 227-245.
  • HIRST, Monica (2001). “Atributos e Dilemas Políticos do Mercosul.” Cadernos do Forum Euro-Latino-Americano, fevereiro, p. 1-16.
  • HOFFMANN, Andrea Ribeiro; COUTINHO, Marcelo; KFURI, Regina (2008). “Indicadores e Análise Multidimensional do Processo de Integração do Cone Sul.” Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 51, n. 2, p. 98-116.
  • KUME, Honório; PIANI, Guido (2005). “Mercosul: O dilema entre união aduaneira e área de livre-comércio.” Revista de Economia Política, vol. 25, n. 4, p. 370-390.
  • OLIVEIRA, Amâncio Jorge de; ONUKI, Janina (2000). “Brasil, Mercosul e a segurança regional.” Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 43, n. 2, p. 108-129.
  • PAMPLONA, João Batista; FONSECA, Julia Fernanda Alves da (2009). “Avanços e Recuos do Mercosul: Um Balanço Recente dos seus Objetivos e Resultados.” PROLAM, vol. 1, p. 7-23.
  • SANTISO, Carlos (2002). “Promoção e Proteção da Democracia na Política Externa Brasileira.” Contexto Internacional, vol. 24. N. 2, p. 397-341.
  • SANTOS, Luís Cláudio Villafañe dos (2005). “A América do Sul no discurso diplomático brasileiro.” Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 48, n. 2, p. 185-204.
  • SARAIVA, Miriam Gomes (2007). “As estratégias de cooperação Sul-Sul nos marcos da política externa brasileira de 1993 a 2007.” Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 50, n. 2, p. 42-59.
  • SARAIVA, Miriam Gomes; BRICEÑO, José. Ruiz (2009). “Argentina, Brasil e Venezuela: As diferentes percepções sobre a construção do Mercosul.” Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 52, n. 1, p. 149-166.
  • VIGEVANI, Tullo; FAVARON, Gustavo de Mauro; RAMANZINI, Haroldo; CORREIA, Rodrigo Alves (2008). “O papel da integração regional para o Brasil: universalismo, soberania e percepção das elites.” Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 51, n. 1, p. 5-27.
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Unidos pela crise

Gustavo Glodes-Blum

Assinado na terça-feira, dia 02 de novembro, o tratado entre Reino Unido e França apresenta uma característica inovadora no processo de integração europeu: as novas direitas voltadas à restrição fiscal podem ser o seu novo motor.

No último dia 02, terminou em Londres, capital do Reino Unido, a primeira Cúpula Reino Unido-França. Reunidos desde o sábado, dia 30, os governos dos dois países liberaram uma declaração conjunta sobre assuntos de extrema importância e sensíveis para a política européia atual: defesa, segurança e imigração.
David Cameron e Nicolas Sarkozy tiveram caminhos políticos diferentes. Sarkozy foi Ministro do Interior e das Finanças (cargos parecidos com os de Chefe da Casa Civil e Ministro da Fazenda) durante a presidência de Jacques Chirac. Líder do partido de centro-direita União por um Movimento Popular, Sarkozy tem tido uma política estrita de reforma fiscal e tem enfrentado grandes problemas com relação à imigração e a reforma previdenciária numa França envelhecida e com sua população de imigrantes na sua segunda geração. No mesmo dia, era o alvo preferencial de um conjunto de cinco bombas enviadas a embaixadas na Grécia.
Por sua vez, Cameron é o jovem líder do tradicionalíssimo Partido Conservador do Reino Unido. Ao contrário do sistema francês, próximo daquele do Brasil, Cameron dependeu da formação do Parlamento em maio de 2010, e hoje governa não com a força de seu partido, mas tendo de negociar com a terceira força britânica, o partido dos Liberal-democratas do seu vice, Nick Clegg.
Mesmo assim, Cameron também enfrenta reformas fiscais e de previdência – e esse é um fenômeno que está se espalhando por toda Europa – mas, sobretudo, derivadas do governo trabalhista anterior. Cameron assumiu após 13 anos de governo trabalhista, enquanto o governo anterior a Sarkozy pertenceu à mesma linha ideológica.
 O principal a se notar é que duas das três principais economias européias, sob o governo de dois líderes que tendem à direita e à redução de gastos, podem dar início ao passo final para a unificação completa da Europa. A Declaração Conjunta sobre Defesa e Cooperação em Segurança, uma das duas liberadas após a Cúpula, aponta na direção do tema do qual aborda.
O grande medo dos unionistas, que defendem o aprofundamento da integração econômica e política da Europa, com relação aos governos desta ideologia que estão assumindo poder num número cada vez maior de países na Europa foi, justamente, que as restrições econômicas, fiscais e políticas deles poderiam impedir este processo. Tradicionalmente mais nacionalistas e isolacionistas, estes governos deixariam de aprofundar a integração em troca da solução de problemas estritamente nacionais.
Porém, e como a Declaração sobre Defesa vem demonstrar, a integração econômica pode, sim, ser uma solução para os problemas internos e aprofundar a União Européia. Como afirma a Declaração, por exemplo, uma unificação do Complexo Armamentista Britânico e Francês poderia trazer uma economia de 30% a ambos os países. Da mesma forma, os dois governos se responsabilizam a levar em conjunto seus programas de armamento nuclear, inclusive com a criação de um laboratório nuclear conjunto.
O cerne da questão, aqui, é a de que a redução fiscal e as necessidades econômicas enfrentadas pela Europa se assemelham às da época de depois da Segunda Guerra Mundial. E, como depois da Guerra surgiu o Tratado de Roma em 1957 e o início da integração européia, os governos que buscam reduzir seus gastos e melhorar sua atividade econômica podem aprofundar sua integração econômica não apenas na Europa, mas também em outros blocos, como o Mercosul, sejam governos de direita, esquerda ou centro.


Gustavo Glodes-Blum é acadêmico do curso de Relações Internacionais do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA), e Analista de Comércio Internacional da Câmara Americana de Comércio para o Brasil em Curitiba (AMCHAM Brasil – Curitiba).
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